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A construção em abismo da história

Cinco décadas após o Golpe Militar de 1964, duas de ditadura e três de democracia, o país vive a publicização dos trabalhos de apuração do período ditatorial. São os relatórios das comissões da verdade em suas várias instâncias. No último dia 12 de março foi lançado o Relatório da Comissão da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo. Em pouco mais de dois anos de trabalhos, especialmente focados nos casos de mortos e desaparecidos, a Comissão teve como método principal de reconstituição da história a audição das pessoas que viveram o período.

No material publicado constam narrativas de sobreviventes, testemunhas, militantes, ex-presos políticos, familiares de vítimas, pessoas que eram crianças e adolescentes na época. Centenas de documentos, publicação aberta de livros e a biografia dos mortos e desaparecidos na ditadura estão entre os principais conteúdos do Relatório. O primeiro capítulo se dedica a elencar recomendações para as instituições do Estado de Direito, seja para as políticas de memória, seja para cobrar a ausência de atos de justiça, com a reinterpretação da Lei de Anistia e a punição dos torturadores.

Uma característica forte deste documento é a relação feita entre a repressão e a violência do período ditatorial e a repetição de certa estrutura autoritária na democracia. Os mecanismos de repressão policial, de acobertamento destas ações por parte de outras instituições e a presença de um discurso legitimador da violência do Estado são identificados como estruturas que permanecem em democracia, tendo como alvo principal a população pobre da periferia. No ato de lançamento do Relatório estavam lado a lado familiares das vítimas da ditadura e familiares das vítimas do estado democrático. À Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos juntou-se o movimento Mães de Maio para denunciar a presença de um projeto político autoritário presente e forte no país.

Apesar do tom de vitória, afinal são estes os anos em que apuramos minimamente o que foi a ditadura militar, percebe-se naquilo que não foi dito a ausência do alívio e da conclusão da elaboração de um luto.

Constata-se que o Estado brasileiro não abriu seus arquivos e que as informações das Forças Armadas continuam sonegadas no debate público. Navegando pelas biografias das vítimas fatais da ditadura percebe-se que há versões diferentes para um mesmo indivíduo, ou mesmo dúvidas sobre as circunstâncias de suas mortes. No caso dos desaparecidos políticos, muito continua ainda em aberto em função da ausência de seus corpos, de suas histórias… Os poucos que foram resgatados das valas clandestinas nas quais a ditadura os lançou tiveram esta sorte única e exclusivamente por conta do esforço e da ação individual dos seus familiares. O Estado até agora não localizou ou identificou um único desaparecido. Em 2015, não temos um único torturador condenado em juízo penal. Poucos são os processos. A história contada hoje é aquela sem vida, sem presença no fluxo de nossas existências. Correm o sério risco de ficarem empoeiradas nos museus e nas teses acadêmicas.

Os trabalhos das comissões da verdade, as várias instaladas no país desde 2012, configuram-se como construções em abismo. É como se todo o esforço de apuração tivesse chegado à constatação do vazio da experimentação deste passado recente. Abismo porque quanto mais se lança em direção à chamada verdade, mais se confirma que nada será desvelado. A memória que se constrói é a do irrealizável acesso às informações determinantes dos acontecimentos. É aquela que a “correlação de forças permitiu”. A avaliação que se extrai é a de que certo projeto político autoritário permanece atuante e segue ainda mais fortalecido. Aos familiares de vítimas da ditadura a construção em abismo vem a corroborar a sensação de que vivem a impossibilidade do luto e de que sua luta terminará apenas com a própria morte de suas existências.

Quanto mais se deslocam no tempo, menos potência temos para fazer daqueles eventos uma experiência. O abismo seria a cena do anjo de Paul Klee, como observou Walter Benjamin, que sofre o sopro do progresso impedindo a compreensão das ruínas da história.

Este vazio da experiência torna-se ainda mais concreto nas manifestações alienadas e conservadores dos últimos dias. Assistir à encenação do discurso de polarização da luta política é, de certo modo, a vitória dos golpes contra a democracia. Não há golpismo a caminho, nós já fomos atingidos. Quando a história se apresenta fria, sintetizada pelos pactos políticos, sem a pulsação das ruas é porque a potência da ação política de criar novos caminhos foi golpeada. Assistir jovens serem espancados e presos pela polícia em manifestações contra aumento da tarifa do transporte, neste contexto de ocultação da experiência vivida pela geração desaparecida na ditadura, é o sinal de que não há o que comemorar. Estes relatórios servem como ferramentas para a repetição de velhos questionamentos, para os quais mesmo que não se tenha respostas, precisam ser feitos e refeitos:

Onde está André Grabois?*

Onde está Amarildo?

Onde estão?

Neste abismo entre o passado e o futuro é sempre bom lembrar de Hannah Arendt, para quem os “tempos sombrios” podem ser a abertura para processos criativos.

* André Grabois é meu tio, desaparecido na Guerrilha do Araguaia, provavelmente no final do ano de 1973. Conferir a parte conhecida de sua história no portal desaparecidospoliticos.org.br.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012).

Publicado em Blog da Boitempo