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Sobre a Memória histórica da ditadura militar

No clássico de Erich Auerbach sobre a evolução da representação da realidade na tradição literária ocidental, Mimesis, é citado um trecho das Memórias do Duque de S.

Simon em que este conta o encontro reservado que teve em Versalhes com o confessor de Luis XIV, o jesuíta Tellier, que lhe pedia apoio político a uma perseguição religiosa, episódio este que o Duque descreveu , muitos anos mais tarde, horrorizado diante da sua recordação de um jesuíta que, “nada podendo esperar para sua família, nem, pelo seu estado e votos, para si mesmo, nem uma maçã ou um copo de vinho a mais que outros; que, pela sua idade mesma, estava a ponto de prestar contas a Deus, mas que, deliberadamente e através de grandes artifícios, lançaria o Estado e a religião na mais terrível combustão, e começaria uma perseguição terrível por questões que não lhe diziam respeito [...]

Tudo isto me lançou num tal êxtase, que, subitamente percebi-me perguntar enquanto o interrompia: ‘Meu padre, que idade tendes?’ [Mon Père, quel âge avez vous?]”.

O Duque descobre, então, que o jesuíta tinha então 73 anos – o que, no século XVIII, era obviamente uma idade mais do que provecta. E Auerbach comenta: quando S. Simon olha Tellier de tous ses yeux, ele percebe , para além do indivíduo, “a essência de qualquer comunidade solidária rigidamente organizada” – a noção daideologia como algo que “torna-se uma força material ao tomar a mente das massas”.

Quando, no Rio de Janeiro, três séculos após o encontro de S.Simon, vê-se uma comunidade de velhos torcionários, dos quais, pela idade igualmente provecta, poder-se-ia esperar que estivessem concentrados no seu memento mori , e ainda mais necessitados que o bom Padre Tellier em compenetrarem-se do julgamento divino (ou da posteridade, c’est égal) ; um bando de octogenários , muitos com dificuldades de locomoção, dirigirem-se , mesmo trôpegos, a um lugar público para aí darem vivas, da maneira mais acintosa, numa provocação meticulosamente preparada, a um atentado contra a mera legalidade burguesa, à tortura e ao homicídio, e encontrarem apoio na repressão policial para provocarem , num breve espaço de tempo, uma combustão que pouco faltou para concluir-se com uma morte entre seus opositores – diante de tal espetáculo, cabe novamente a pergunta do Duque: qual, afinal, a idade dessa gente? Pois tanto endurecimento no prazer perverso na extrema velhice não pode ser considerado como justificativa, e sim como agravante…

Seja como for, em si mesma, tal comemoração deveria suscitar mais a repugnância do que a cólera, e o maior paradoxo da manifestação de 29 de março de 2012 estava em que os mais encarniçados na denúncia aos golpistas eram, na maioria, pessoas que, pela idade, não eram nem nascidas quando terminou a ditadura.

Só que, em política, nenhuma evocação do passado existe “em si mesma”; quando o morto “ressurge”, é porque ele não estava , de fato, morto… ou porque se trata de outra coisa.

De certo modo, o Golpe de 1964 e os vinte e um anos de ditadura que a ele se seguiram representaram a conclusão da nossa Revolução Burguesa, a “Revolução Brasileira” dos isebianos – apenas (três)lida pela ótica do interesse mais reacionário.

Neste processo, tudo que havia sobrevivido de pré-capitalista na nossa cultura e política – as tradições paternalistas, a “cordialidade” privada temperando a brutalidade das relações econômicas, a democracia informal dos botequins cariocas , etc.etc. – tudo isto, entre 1964 e 1985, foi extirpado, eliminado , aniquilado – em função do simples interesse econômico mais grosseiro, o pagamento a vista do Manifesto Comunista.

De lá para cá, chegamos finalmente à modernidade – mas uma modernidade inteiramente reacionária, e daí o nosso sentimento difuso de habitarmos uma sociedade profundamente embrutecida.

Já que estamos falando de política por meio da literatura, vem a propósito lembrar a sátira do falecido Millôr Fernandes, que, diante do deserto do pós-ditadura e do governo Sarney, fazia um pasticho de Manuel Bandeira para falar do Brasil como país da falsa modernidade , onde “Telefone não telefona/A droga é falsificada/E prostitutas aidéticas/ Se fingem de namoradas”.

Estava, lamentavelmente, errado: trinta anos depois, ainda que os telefones (privatizados) telefonem (a preços extorsivos) e as drogas talvez possam ser mais confiáveis, o grande problema da modernidade brasileira presente é que ela nada tem de “ideológico” no seu sentido de senso comum, de mistificação; as prostitutas não “se fingem” mais de namoradas – ou de qualquer outra coisa; o interesse capitalista nu e cru mostra em toda parte a sua cara.

Os tempos não se prestam mais à sátira – e é precisamente por isso que enquanto os octogenários da repressão fanfarroneiam na rua, dos octogenários da Turma de Ipanema, “os que teimam em viver, estão entrevados” (ou aderiram…). No Brejal dos Guajajaras high-tech , o “latifúndio feudal” virou agribusiness e imperialismo “globalização”.

A Direita neoliberal, quando quer se dessolidarizar da ditadura, adora dizer que esta foi “de Esquerda” (i.e., nacionalista e estatista). O que há de falso neste sofisma é considerar que o nacionalismo e a intervenção estatal, possam, em si mesmos, serem de “Esquerda”. Mas uma coisa é certa: a ditadura foi desenvolvimentista; de certa forma, ela confirmou Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos quando estes, no ISEB, escreviam que a consciência da necessidade do desenvolvimento econômico era algo que penetrava todas as classes da sociedade brasileira.

Estavam completamente corretos: no meio século seguinte, o que caracterizou todos os atores políticos brasileiros foi compartilharem da crença no desenvolvimento econômico como supremo dissolvente do “atraso” , em versões mais ou menos “igualitárias” – a trajetória do PT, por exemplo, só faz sentido se vista por esta ótica.

O erro, se erro houve (pois, bem ou mal, uma teoria passada não pode dar conta das tarefas do futuro) estava na incapacidade de prever que a “base” econômica, em si mesma, não é capaz de dar direção aos eventos; o desenvolvimento econômico, superposto a relações sociais e políticas atrasadas, só é capaz de gerar um desenvolvimento ….atrasado: a promessa dos arcos de Brasília encontrou sua realização prática… no ecocídio de Belo Monte.

Num certo sentido, trata-se de algo que já estava anunciado no aforisma de outro isebiano, Roland Corbisier : “na Colônia, tudo é colonial”. Ou, mais exatamente: desenvolvimento desigual e combinado.

Chegamos a um ponto em que temos de reconhecer o simples fato de que nossa modernidade está completa – e, por isso mesmo, desprovida de todo e qualquer elemento progressista (com a exceção recente de um distributivismo limitado, que começa a dar sinais de esgotamento).

E assim, quando em 2012 vemos uma repetição em miniatura das batalhas de rua de 1968, o que faz com que esta repetição não seja uma “farsa” à maneira do 18 Brumário, é que, quando os jovens de 2012 tentam reabrir o processo de 1964, não é apenas o processo de 1964, mas o processo de 1964 e de toda a dominação burguesa a ele subsequente, que está em jogo. E, como não se podem criticar os subsequentes sem os precedentes, podemos concluir dizendo que, no limite é toda a nossa história que está em jogo. 
 

Fonte: Sul21