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Guarnieri e a virada nacional-popular do teatro brasileiro

O ambiente naquele “simpático teatrinho” da rua Theodoro Bayma estava tenso. Os ensaios haviam sido feitos a toque de caixa e os atores ainda tropeçavam no texto. Nada que anunciasse o que ocorreria poucas horas depois, quando um pequeno e seleto público presenciaria extasiado o início de uma verdadeira revolução no teatro brasileiro. A peça apresentada, sem grandes pretensões, tinha um estranho nome, Eles não usam Black-tie, e seu autor era um jovem desconhecido com apenas 21 anos de idade, Gianfrancesco Guarnieri. A partir daquela noite, o teatro e a cultura brasileiros não seriam mais os mesmos.

O Encontro com a arte e o socialismo

Gianfrancesco Guarnieri nasceu no dia 6 de agosto de 1934 em Milão, durante uma turnê de seus pais, o músico e regente Edoardo Guarnieri e a harpista Elsa Martinenghi. Nessa época a Itália vivia sob a ditadura fascista de Benito Mussolini.

O casal Guarnieri, adversário do fascismo, recebeu com alegria o convite para trabalhar no Brasil. Primeiro viajou Elsa, que ingressou na Orquestra Sinfônica Brasileira. Poucos meses depois chegou Edoardo trazendo o pequeno Gianfrancesco com apenas dois anos de idade. Mas algo ainda os incomodava. Pelas janelas do local onde viviam era possível ver as passeatas integralistas. Os fascistas tupiniquins esperavam repetir o que seus congêneres haviam feito na Itália e Alemanha. O país estava prestes a mergulhar no sombrio período do Estado Novo. Depois de certa vacilação a família resolveu ficar. O Brasil, a partir de então, seria o seu novo lar, para o bem ou para o mal. 

Edoardo se juntou à luta antifascista e apoiou o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos aliados, contra as potências nazifascistas. Ainda de casaca, saindo de suas apresentações musicais, se incorporava às pichações organizadas pelo Partido Comunista. Assim, o garoto Gianfrancesco herdaria dos seus pais o amor pelas artes, pelo socialismo e pelo Brasil.

Quando moleque cabulava as aulas para assistir às comédias do Teatro Glória na antiga capital federal, o Rio de Janeiro. Contudo, sua primeira experiência teatral ocorreu no Colégio Santo Antônio. Ali iniciou sua carreira como “ponto”, aquele que fica na boca do palco dizendo a fala inicial ou corrigindo os lapsos de memória dos atores na cena. Rapidamente passou a compor o elenco principal. Aos 14 anos redigiu sua primeira peça: Sombras do Passado – comédia que obteve sucesso entre os colegas.

Para o seu azar, um de seus personagens chamou a atenção da administração do respeitável estabelecimento de ensino. Era o de um senhor que gaguejava igualzinho ao vice-diretor, um homem considerado autoritário e que mantinha uma severa disciplina sobre os alunos. Começaram aí os seus problemas com a censura. Depois de parabenizado pela qualidade do texto, foi convidado a abandonar o colégio.

Logo após o incidente, Gianfrancesco ingressou na União da Juventude Comunista (UJC) e começou a escrever no jornal Novos Rumos, órgão oficioso daquela organização juvenil. Sua participação ativa no movimento estudantil lhe valeu a indicação para a presidência da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (AMES) e para a vice-presidência da União Nacional dos Estudantes Secundaristas (UNES), então presidida por Dynéas Aguiar.

Em 1953, por razões profissionais, os Guarnieri mudaram-se para São Paulo. A experiência adquirida no movimento estudantil carioca fez Gianfrancesco ser alçado ao cargo de secretário-geral da União Paulista dos Estudantes Secundarista (UPES). Mais tarde comentaria: “Eu não conhecia nada na cidade, não tinha amigos e não sabia o nome de nenhum estudante, ainda assim me colocaram num posto daqueles. Um tremendo cargo de confiança”.

Foi nesta função que participou das grandes manifestações populares que se seguiram à deposição e ao suicídio de Vargas, ocorrido em agosto de 1954. É ele mesmo que descreve sua atuação naquele evento: “Corri para a região do Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro, acompanhando aquela romaria. Daí chegou o pessoal do Exército, que queria dispersar a manifestação (...). E eu gritava que não iríamos embora, que não iríamos recuar de jeito nenhum (...). Quando um cavalo avançou sobre mim eu gritei para os soldados: eu sou jovem e não tenho medo de morrer (...). Nossa, eles ficaram revoltadíssimos. Primeiro porque eu os chamei de velhos, e depois por dizer que não tinha medo de morrer (...). Este episódio serviu para reforçar o caráter anti-imperialista da minha atuação no Movimento Estudantil”.

Aqueles acontecimentos também representaram o esgotamento de uma determinada forma da ação política. Ele deixou de ser um “agitador estudantil” e passou a se dedicar à organização cultural dos estudantes paulistas. Foi neste processo que – ao lado de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha – fundou o Teatro Paulista dos Estudantes (TPE). Os objetivos eram os mesmos, mas a luta passou a ser travada com novas armas: a arma da cultura. Afirmou Guarnieri: “o teatro começou a aparecer como um meio de organização nas escolas e faculdades. Através dele se procuraria discutir a questão social. Nós precisávamos fazer que a questão do movimento estudantil chegasse às massas. Estávamos afastados das massas, tinha-se que formar o teatro, aí se discute etc. e tal (...) Chegamos assim ao teatro do estudante”. Esta decisão teve total apoio da direção regional do PC do Brasil. Organizar o TPE se transformou na principal tarefa dos jovens Guarnieri e Vianinha.  

O grupo de teatro foi criado no início de 1955 e começou com o pé direito. Logo na estreia ganhou o Festival de Teatro Amador de São Paulo e, em seguida, o próprio Guarnieri levou o prêmio de melhor ator. Naquele ano participaram da campanha de JK à presidência. Na Praça da Sé fizeram apresentações nas quais recitavam poemas de Castro Alves, sempre sob os olhos atentos da polícia.

Black-tie: o teatro como expressão da realidade nacional

Paralelamente ao TPE, desenvolvia-se outra experiência cultural inovadora: o Teatro de Arena. Seus fundadores eram atores formados pela recém-criada Escola de Arte Dramática de São Paulo, comandados por José Renato. No início de 1955 eles conseguiram montar, nas palavras de Vianinha, um “simpático teatrinho para 163 espectadores”. Por uma dessas coincidências do destino, a sede do TPE e a do teatro de Arena ficavam na mesma rua.  

Como o TPE não tinha lugar fixo para ensaiar e se apresentar, resolveram fazer um acordo com o Arena. Este cederia o espaço e colaboraria na formação dos jovens atores do TPE e ambos apoiariam os textos com temáticas sociais e nacionais e fariam sua divulgação nas escolas, fábricas, nos bairros e interior do estado. Um dos seus marcos foi a encenação de Ratos e homens, de Steinbeck.

Na prática, o teatro acabou ficando nas mãos dos jovens do TPE. Guarnieri afirmou: “éramos unidos e solidários. O nosso objetivo era chegar depressinha à revolução”. Contudo, em 1957, o Teatro de Arena entrou numa profunda crise financeira e resolveu fechar as portas.

A última obra a ser apresentada deveria ser uma espécie de “discurso em defesa da dramaturgia brasileira”. A opção foi encenar uma peça de temática nacional, inédita, e produzida por um autor jovem. Guarnieri viu nisso uma oportunidade para apresentar o texto que estava escrevendo. Em tom de brincadeira, ele descreveu assim a decisão do grupo: “Então, Guarnieri, a gente monta a tua pecinha, apresenta durante uns dois, três meses, e depois cada qual vai para o seu lado, que ninguém é de ferro e não dá mais para aguentar”.

A peça de despedida chamava-se inicialmente O cruzeiro lá no alto – um nome pouco atraente e que não refletia bem o espírito rebelde e combativo do texto. O autor em pouco tempo encontrou uma saída e mudou o nome para Eles não usam Black-tie. Continuava soando meio estranho, mas, pelo menos, correspondia mais aos objetivos contestatórios do grupo.

Black-tie levou para os palcos, pela primeira vez, a vida e a luta dos operários, dos moradores dos subúrbios e favelas brasileiros. Era fortemente inspirada no neorrealismo italiano e tinha uma linguagem simples e despojada. O cenário era minimalista, até para uma favela carioca onde se desenrolaria uma grande parte das cenas. Num palco de três por quatro havia apenas alguns caixotes de madeira.

A peça estreou em fevereiro de 1958 e foi um estrondoso sucesso. Ficou em cartaz durante um ano – com 512 apresentações em quarenta cidades, além de sindicatos e circos do interior. Lélia Abramo, uma das atrizes do espetáculo, descreveu assim aquele acontecimento: “Nas cidades por onde passávamos, o teatro floresceu. Num circo, vimos verdadeiras torcidas divididas entre Tião e Otávio, duas encarnações do social que se confrontavam”. A peça salvou o teatro da falência, e Guarnieri – com seus 21 anos de idade – tornou-se um dos mais prestigiados autores teatrais brasileiros.

A partir daí, operários, camponeses, jogadores de futebol, donas de casa – além de políticos e empresários corruptos – passaram a habitar os palcos do Arena e dos demais teatros brasileiros. Segundo Vianinha, Black-tie confirmou “que as conquistas formais precisam ser ajustadas à capacidade perspectiva de um povo, se se quiser realmente instalar sentimentos novos e originais na consciência do povo. Black-tie afirma ainda que a arte é uma arma do homem na sua luta de libertação”.

Em 1959 Guarnieri publicou na Revista Brasiliense o artigo O teatro como expressão da realidade nacional. Ali afirmou: “Não vejo outro caminho para uma dramaturgia voltada para os problemas de nossa gente, refletindo uma realidade objetiva, do que uma definição clara ao lado do proletariado, das massas exploradas. Sonhamos com um teatro que atinja realmente as grandes massas. Com espetáculos realizados para todas as classes e não apenas para uma minoria”.

Mas o projeto revolucionário dos jovens artistas esbarrava com os limites físicos do Teatro de Arena. Apesar do esforço, era ainda um teatro de minoria – um teatro de “classe média”. Por isso, acirraram-se as divergências no seu interior. Vianinha escreveu mais tarde: “O Arena era porta-voz das massas populares num teatro de 150 lugares. Não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para o seu trabalho. A urgência de conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectualidade, dos estudantes, do próprio povo e a quantidade de público existente estavam em forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa”.

Vianinha era um dos que achavam que a experiência do Teatro de Arena estava esgotada e precisavam ser encontradas novas alternativas. Guarnieri se opôs a essa ideia. Numa entrevista realizada posteriormente esclareceu sua posição: “Chegou a ser proposto o abandono do espaço já conseguido. Quer dizer: o Arena não vale mais, o que vale é esse outro treco. E aí se contestava: ‘não, temos que preservar este espaço’. Você tomou uma colina, agora larga a colina para lutar outra vez? Não!”

Vianinha e Chico de Assis resolveram ficar no Rio de Janeiro, onde o Arena fazia uma de suas turnês, e ali começaram a escrever e montar A mais-valia vai acabar, seu Edgard. A peça foi ensaiada no pátio da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil. A atividade reunia diariamente inúmeros estudantes. Na estreia, realizada em julho de 1960, centenas de pessoas lotaram o anfiteatro. Ficou cerca de 8 meses em cartaz, com um público médio de 400 pessoas. Era o início do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE.

A vida deu razão à Guarnieri e mostrou que no Brasil havia lugar para experiências revolucionárias como o CPC e o Arena. Inclusive, este último serviu de base para a criação de CPC no próprio estado de São Paulo. Em 1964, os dois seriam vítimas da mesma truculência.

Um teatro contra a opressão e a ditadura

Após o sucesso de Black-tie o grupo de Maria Della Costa encomendou outra peça a Guarnieri. Em poucos dias ele escreveu Gimba, ambientada nos morros cariocas, que obteve grande sucesso. Desta vez, no lugar de operários e greves, retratava sambistas e malandros.

Seguindo a mesma trilha, em 1961, escreveu A Semente. Novamente ele renovava e radicalizava na temática abordada. Pela primeira vez foi levada aos palcos brasileiros a atuação do Partido Comunista e dos seus militantes durante uma greve operária. Estávamos em meio à guerra fria e a reação dos setores conservadores foi imediata. Houve forte pressão para que a encenação não fosse autorizada e a peça acabou sendo proibida.  

Às vésperas do golpe militar de 1964, Guarnieri estreou O filho do Cão, cujo tema era a vida dos camponeses no Nordeste brasileiro, um tema explosivo na época. A sua última apresentação foi justamente no dia 31 de março. Não somente a peça saiu de circulação, como também o próprio Arena foi obrigado a fechar suas portas por algum tempo.

Perseguido pela ditadura militar, Guarnieri teve que fugir do país. Pegou o “trem da morte” com destino à Santa Cruz de La Sierra e depois seguiu para La Paz. No seu segundo dia na capital boliviana, presenciou outro golpe militar. Naquela época a América do Sul não era um lugar muito seguro para um intelectual crítico, especialmente se fosse comunista. O exílio, no entanto, durou apenas três meses. De volta a São Paulo teve que se apresentar ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), mas não foi preso e pôde voltar às suas atividades no teatro.

Ele elaborou um novo – e ousado – projeto: colocar nos palcos as lutas do povo brasileiro. A primeira dessas peças se intitulou Arena conta Zumbi e foi escrita em parceria com Augusto Boal.  Edu Lobo compôs as músicas do espetáculo. Por um descuido da censura, ela foi aprovada e obteve sucesso de público. A peça logo se tornou uma arma na luta contra a ditadura recém-implantada.

Foto: Guarnieri durante evento do PCdoB

Os grupos de extrema-direita, acobertados pelo regime, passaram a ameaçar os atores e expectadores. Diariamente chegavam ameaças de bombas. A produção seguinte foi Arena conta Tiradentes, que estreou em 1967. As provocações direitistas se mantiveram e aumentaram de tom. No ano seguinte escreveu e encenou Marta Saré, novamente em parceria com Edu Lobo.

O endurecimento do regime militar após a decretação do AI-5 [Ato Institucional número 5], em dezembro de 1968, criou enormes dificuldades para a criação artística. Não se podia mais criticar minimamente a situação em que vivia no país. Neste clima Guarnieri escreveu e encenou Castro Alves pede passagem (1971), dando sequência aos temas sobre a história do Brasil; Um grito parado no ar (1972), Botequim (1972) e Ponto de Partida (1976). Todas sofreram algum tipo de mutilação por parte da censura, e a peça Basta! (1972) foi integralmente proibida. Nos estertores do regime, escreveu Que país é esse, Que zorra! (1979) e Crônica de um cidadão sem nenhuma importância (1979).

Durante a ditadura as metáforas passaram a substituir o discurso direto. Através delas, os escritores e compositores habilmente denunciavam a censura, a falta de liberdade política e até mesmo a tortura que atingia milhares de brasileiros. Em Um grito parado no ar contou a história da montagem de uma peça constantemente interrompida pelos credores, que levavam os equipamentos necessários ao espetáculo. Em Botequim retratou a situação de frequentadores de um bar impossibilitados de sair por causa de um temporal que assolava a cidade. Em Ponto de partida a referência à tortura não podia ser mais explícita. Tratava-se da história de um pastor de cabras que, certo dia, foi encontrado enforcado. A peça foi aos palcos pouco tempo depois do assassinato do jornalista Wladimir Herzog.

Afirmou Guarnieri: “o público tinha medo de ir ao teatro para ver esta peça, eles achavam que uma bomba – sempre as bombas, meu Deus, que mania de bomba que o regime tinha – podia explodir o teatro. Mas as pessoas enfrentavam o medo e iam ver a peça mesmo assim, e isso era lindo. Eu batizei este meu ciclo de peças sobre a repressão de ‘teatro de ocasião’, ou seja, o teatro que eu fui obrigado a fazer durante aquele período específico do Brasil”. Um período que “nenhuma crítica, nenhuma denúncia podia ser direta. Tinha sempre de ser indireta”.

Assim, através de suas peças e de sua vida militante, Gianfrancesco Guarnieri deu uma contribuição inestimável para a conquista da democracia e para valorização da cultura nacional e popular em nosso país. Há dez anos, no dia 26 de julho de 2006, não perdemos apenas um grande ator e autor, perdemos também um grande brasileiro.

* Artigo publicado originalmente em julho de 2006, no Portal Vermelho, por ocasião da morte de Gianfrancesco Guarnieri.

** Augusto C. Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

BARCELLOS, Jalusa. CPC: Uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

BERLINCK, Manoel T. CPC da UNE. São Paulo: Papirus, 1984.

MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: O Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

MORAES, Denis de. Vianinha: cúmplice da paixão. São Paulo: Record, 2000.

ROVERI, Sérgio. Gianfrancesco Guarnieri, um grito solto no ar. São Paulo: Cultura/Imprensa Oficial, 2004.