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A Greve de 1917 em Campinas

“Aquele local onde ocorreu a chacina ainda está manchado de sangue, sangue dos inocentes, até de crianças atiradas pelas costas, sendo de se notar que, quando da colocação de um epitáfio no túmulo das vítimas no Cemitério da Saudade, as autoridades se opuseram a isso, mandando substituí-lo. A verdade é que, depois de mencionar os nomes das vítimas da carnificina, o epitáfio dizia: ‘barbaramente assassinados pela Polícia na Porteira do Capivara’. Essa parte foi apagada, mas ficou na memória de Campinas. Dela ninguém arranca nem apaga palavra alguma, ainda que manchada de sangue dos inocentes. É que a tradição não perdoa nunca, nem ao mármore de uma catacumba. É sempre a verdade que fala silenciosamente” (palavras de Jolumá Brito, num artigo publicado no jornal Diário do Povo).

No seu livro Falsa Democracia, escreve Álvaro Ribeiro:  “As grandes ideias não triunfarão sem o sacrifício dos grandes mártires. As vidas sacrificadas pelas balas dos fuzis dos soldados surgirão como rebentos de outras grandes conquistas populares.”. Álvaro Ribeiro tinha razão.

Mil novecentos e dezessete, um ano de extraordinários acontecimentos externos e internos: a vitória da revolução na Rússia sob a liderança de Lênin; a entrada do Brasil na Guerra, depois do afundamento de dois navios nacionais por submarinos alemães; e a eclosão, em São Paulo, da maior greve da história, que se iniciou no Cotonifício Crespi, ganhando numerosas adesões,contagiou trabalhadores de diversas categorias, envolvendo o pessoal dos bondes e provocando algumas cenas de violências, tumulto de choques dos grevistas com policiais. Toda a cidade parou. O povo solidarizou-se com os grevistas, manifestando o seu repúdio à ação repressiva da polícia (na qual um operário tombou morto) e criticando a atitude dos patrões que, ganhando muito dinheiro com o aumento das exportações, se negavam sistematicamente a conceder qualquer aumento salarial, por menor que fosse, aos explorados trabalhadores.

A capital paulista viveu dias verdadeiramente dramáticos com a greve, sacudida por uma onda de boatos sobre explosões de bombas, mortes e prisões em massa. Um boletim largamente distribuído pela comissão que liderava a greve dizia:

“Soldados! Chega de violências! Não vos presteis a servir de instrumentos de opressão a serviço dos Matarazzos, Gambas, Crespis e de outros exploradores do povo. São esses capitalistas que levam a fome e a miséria aos lares dos trabalhadores. Soldados! Recusai-vos o papel de carrascos.”.

Everardo Dias, no seu livro História das lutas sociais, conta em detalhes o que foi a greve de 1917 na capital, que teve vários desdobramentos e uma significação marcante para os trabalhadores. No acervo que pertenceu a Edgard Leuenroth existem também documentos preciosos e informes abundantes sobre essa greve, que começou, segundo alguns autores, com as operárias daquela indústria reivindicando uma série de benefícios – melhores salários, jornada de oito horas, melhores condições de trabalho – e, ao mesmo tempo, protestandocontra a alta do custo de vida.

O governo e a classe empresarial, colhidos de surpresa, tentaram por todos os meios contornar a situação, promovendo várias reuniões e adotando uma série de medidas para conter o ímpeto dos trabalhadores. À época, era presidente do estado o senhor Altino Arantes, e ocupava a Secretaria de Segurança Pública o senhor Artur Leite de Barros, pertencente, aliás, à tradicional família de Campinas. Numa dessas reuniões, foi deliberado o reforço do policiamento na capital com os soldados da Força Pública que serviam em unidade do interior, sendo expedidas urgentes ordens nesse sentido.

O contingente sediado em Campinas partiu para a capital em trem especial, sob o comando do capitão José Dias dos Santos, ficando o policiamento da cidade entregue ao Tiro de Guerra 176, à Guarda Noturna e ao Corpo de Bombeiros.

Quando os soldados de Campinas já se encontravam na capital, cumprindo a missão que lhes fora confiada, eclodiu aqui a greve nas oficinas da Mogiana. A notícia repercutiu talvez de forma exagerada. E daí o motivo pelo qual as autoridades deliberaram o imediato retorno do contingente policial a esta cidade que estaria, segundo boatos, à mercê de um bando de baderneiros...

Ora, o movimento grevista aqui decorria pacificamente, coordenado por uma comissão formada pelos torneiros Godofredo Carvalho, José Siemens e o ajustador Francisco Duarte. Não havia ocorrido nenhum ato de vandalismo. Os operários grevistas saíram às ruas pedindo apoio aos colegas de outros setores, recebendo várias adesões. As autoridades locais – o prefeito na época, doutor Celso da Silveira Rezende, o presidente da Câmara Municipal, doutor Heitor Penteado e o próprio presidente do Tiro de Guerra 176, sargento Otacílio Camargo – procuravam uma solução conciliadora para a greve, entrando em contato com a direção da Mogiana.

 

Um episódio aparentemente banal aconteceu: a prisão do operário Ângelo Soave, tido como um dos “cabeças” do movimento, que, segundo rumores, havia sido enviado sob escolta para São Paulo viajando num trem que deixaria a plataforma da Paulista às 15 horas. A notícia dessa prisão circulou célere. Os grevistas se movimentaram, procurando o advogado Pedro de Magalhães, que foi à Delegacia pleitear do doutor Juvenal Toledo Piza a imediata soltura do preso, obtendo solene promessa nesse sentido. Mas os boatos persistiam. Soave estaria no trem! Havia sido levado preso para São Paulo. Por via das dúvidas, os operários resolveram esclarecer de vez a situação, dirigindo-se à Estação, minutos antes de o trem partir.

As versões do que aconteceu daí por diante são desencontradas. Existe a do jornalista Benedito Barbosa Pupo, segundo a qual, para impedir a saída do trem, os grevistas colocaram pedras na linha férrea, tendo um deles subido num poste, e tentado cortar os fios telegráficos. Acontece que o referido historiador, como ele mesmo diz, não testemunhou o fato. Estava em sua casa, nas proximidades, e apenas ouviu o barulho dos tiros e uma multidão que corria. Na versão do jornalista Jolumá Brito do Diário do Povo, não houve a tentativa de impedir a saída do trem. Houve, isso sim, na opinião dele, um “espantoso ato de malvadeza e selvageria por parte dos soldados da Força Pública que retornavam de São Paulo.”.

 

Eis a versão real do que aconteceu naquela fatídica tarde de 17 de julho, uma terça-feira – baseada num amplo noticiário do Diário do Povo. O trem, trazendo de volta os soldados, parou a um quilômetro distante do local onde os operários estavam aglomerados junto à Porteira do Capivara (onde se ergue hoje o viaduto “Miguel Vicente Cury”). Os soldados desceram do trem. Caminharam sorrateiramente, com suas armas embaladas, como se fossem enfrentar uma corja de bandidos. Mal avistaram os operários, “fizeram fogo”. Atiraram, num ato de extrema covardia. Três descargas de fuzil. Pânico geral. Gritaria. Corre-corre, um verdadeiro salve-se quem puder. Três operários, atingidos pelos tiros, morreram no local: Antônio Magoto, Tito de Carvalho e Pedro Alves. Outros, também baleados, puderam ser socorridos, conduzidos às pressas para hospitais da cidade. Dezesseis ao todo, alguns com ferimentos graves.

A notícia dessa chacina consternou e revoltou a cidade – que levantou um grito unânime de protesto e indignação. Não se falava em outra coisa no centro, nos bairros e nas casas. Os jornais, no dia seguinte, abriram manchetes nas primeiras páginas, noticiando o fato com detalhes e verberando a atitude dos soldados. Nada, absolutamente nada, justificava a ação traiçoeira e violenta.

Álvaro Ribeiro, redator-chefe do Diário do Povo, escreveu um artigo acerta altura, dizendo: “Desembarcados, vieram os soldados pela linha que ali, junto a uma máquina beneficiadora de café da firma Piconi, faz uma curva, agachados e sorrateiros, pé-ante-pé, como caçadores de feras, ergueram-se diante dos inofensivos operários e alveja-os covardemente! Tudo o que aconteceu foi simplesmente horroroso.”.

Não menos contundente, a linguagem empregada pelos outros jornais. Pediam justiça. Punição aos culpados. Um inquérito rigoroso para apurar o caso em todos os seus detalhes. O jornalista Benedito Florêncio, conhecido pelo seu espírito combativo, em sinal de protesto e de solidariedade, não publicou no Diário a sua seção Tome nota.

O enterro das vítimas, no dia seguinte, ocorreu num ambiente de profundo pesar, com uma multidão no acompanhamento, até o cemitério da Saudade, notando-se a presença de um grupo de operários grevistas de São Paulo que tinham ido a Campinas num gesto expressivo de companheirismo e de solidariedade.

A imprensa da capital, preocupada com a greve, registrou com destaque os acontecimentos em Campinas.

A direção da Companhia Mogiana, em nota distribuída aos jornais, dizia-se “consternada” com o sucedido e prometia estudar as reivindicações dos seus operários, tão logo a situação se normalizasse nas oficinas. Os cinemas não funcionaram na noite do dia 17 de julho.

Texto de um boletim que circulou no dia do enterro das três vítimas dizia: “Os chacais de farda, não satisfeitos com a brutal selvageria de anteontem, procuram agora prosseguir na sua obra sinistra de nos perseguir. Companheiros! Estejamos alertas e unidos para assim obtermos a vitória final. A vitória de nossos direitos. Não nos curvemos diante das ameaças e da prepotência policial.”.

Jornalistas se reuniram e enviaram ao secretário de Segurança Pública, Eloy Chaves, o seguinte telegrama: “A Imprensa de Campinas, traduzindo impressão dolorosa e indignação geral do povo desta cidade, vem pedir enérgicas providências, punição e recolhimento dos soldados responsáveis pelas cenas de selvageria praticadas contra civis inermes, ocasionando mortes e ferimentos em adultos e crianças, sem aviso prévio e sem emprego de recursos políticos” (aa) – Amilar Alves, Correio de Campinas;Henrique Voguel, Comércio de Campinas e Álvaro Ribeiro, Diário do Povo.

O secretário, numa resposta cheia de evasivas, tentou “justificar” a ação dos soldados, os quais, segundo ele, “agiram no estrito cumprimento de seus deveres e só recorreram a medidas extremas quando atacados quando na defesa da ordem social.”. Disse ainda que os operários grevistas estavam armados (deslavada mentira) com carabinas e revólveres e tentavam obstruir a linha e retirar os trilhos e que alvejaram os policiais.

Pouco a pouco, a cidade foi retornando à normalidade, com a volta dos operários às fábricas e oficinas. Os jornais continuaram, contudo, a comentar o episódio, acrescentando-lhe novos detalhes, dando informações sobre o estado dos feridos nos hospitais. Todos puderam ser salvos, graças ao empenho e à dedicação dos médicos.   

Mereceu elogios da imprensa a atitude assumida pelo doutor Antônio da Costa Carvalho, o “doutor Costinha”, que colocou seus serviços profissionais à inteiradisposição dos operários da Mogiana e de outras empresas que participaram da greve. Ao que consta, não houve nenhuma represália contra os grevistas.

Uma pergunta ficou pairando no ar. Até hoje. Quem liderou a greve nas oficinas da Mogiana, uma vez que naquele tempo não havia sindicatos nem atuantes organizações operárias como as de hoje? O movimento foi espontâneo. Nasceu da vontade de todos. A exemplo de outra grande greve que, em 1906, paralisou a cidade de Jundiaí e que teve início na Companhia Paulista de Estrada de Ferro. Há quem afirme que nessa greve existiu o dedo dos anarquistas. É possível. Eles estavam presentes em todos os movimentos reivindicatórios, para o que desse e viesse.

Oportuno lembrar que esse movimento, de 1906, também teve o seu desfecho trágico. Morreram nos choques e conflitos de rua, um soldado e vários trabalhadores. Os policiais chegaram a invadir as casas dos grevistas para levá-los à força à oficina. Violência inominável e revoltante.

 

* Este é um capítulo do livro Lutas sociais em Campinas: Subsídios para a História, editado pela União Paulista de Educação em 1988. 

** Bráulio Mendes Nogueira é jornalista, tendo sido diretor da seção regional do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, presidente da Associação Campineira de Imprensa (ACI) e do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA).