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Canções de resistência à ditadura são resgatadas e lançadas em CD

Um grupo de militantes da Ação Popular (AP), com financiamento coletivo obtido pela internet, conseguiu produzir e lançar a gravação de 21 canções inéditas compostas para impulsionar o trabalho educativo e político entre 1960-1970, no âmbito do Movimento de Educação de Base (MEB) em Goiás, Maranhão e Bahia. O lançamento ocorreu por meio de um show que se tornou uma festa de confraternização de militantes que não se viam há décadas, no Memorial da Resistência, em São Paulo, neste sábado (7 de novembro).

As apresentações das canções foram feitas na voz de Annete Rabelo, com acompanhamento de banda comandada pelo maestro Gualtieri Beloni Filho. Annete contextualizou cada uma das canções, revelando peculiaridades da época da composição ou da situação em que eram cantadas.

O contexto de intensa mudança social e efervescência cultural às vésperas do golpe militar está refletido nas canções, marcadas pela crítica social. A poética da resistência à violência militar também comparece nas canções que eram entoadas nas prisões por onde passaram presos políticos. O projeto procurou resgatar as canções, muitas delas sob os cuidados individuais de militantes, não apenas pela importância que têm para a compreensão daquele período e daquela militância, como também para estimular a continuidade do trabalho em outras partes do país. Há centenas de outras canções guardadas em acervos pessoas sem gravação pública.

Frente cultural de resistência

Em entrevista a Fernando Garcia, do Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois, Annete Rabelo autografa o CD "Cantos da Resistência".

Em entrevista ao Portal Grabois, Annete salientou que a resistência à ditadura também precisa ser lembrada pelo seu sentido cultural, e não apenas da luta armada, como tem sido. “O trabalho feito por Ação Popular foi um trabalho de conscientização, criando uma nova visão do que seria um mundo futuro, humanitário e cheio de esperança. A cada vez que essas canções são cantadas renovam a nossa força e esperança nesses ideais”. A cantora gostaria que as canções pudessem continuar vivas, não apenas arquivadas como acervo de museu, mas que continuassem sendo usadas em contextos atuais, seja em atividades políticas, filmes, novelas, peças teatrais ou mesmo na sala de aula, como ocorria naquela época.

A professora de história, Ronilde Rocha Machado, é uma das principais personagens do projeto, pela concepção e produção, e ressaltou que o início dos trabalhos não contava com esse recrudescimento da ofensiva conservadora no país. Por isso, o lançamento da gravação ganha uma conotação política ainda maior. “É uma reafirmação da democracia e sua condição de direito à memória para que as novas gerações conheçam em seu devido contexto”.

Ela destaca as canções da Betinha (Elisabeth Hermano) como parte do contexto de esperança e renovação que se apontava no início dos anos 1960, ainda que algumas canções já sinalizem uma radicalização política. As demais foram compostas no contexto da carceragem, como denúncia da violência de estado, pontuando um ideário socialista. “Elas têm um ponto de vista de luta de classe e exploração do trabalho, como as do Odilon [Pinto], que conseguem traduzir esse ideário de AP de uma forma magnífica”, analisa Ronilde.

Um dos militantes da luta contra a tortura, que contribuíram para a pesquisa de canções, Carlos Pereira, o Carlão, destacou a importância cultural dos movimentos de esquerda antes da ditadura. “Essa história de imaginar que revolução só se faz no enfrentamento armado está furada; nós temos que combater essas ideias atrasadas da direita também na frente cultural. Não podemos deixar que esse pessoal tome conta da área cultural, em que sempre fomos fortes”, sugeriu ele.

Segundo Carlão, quando se faziam atividades no campo ou na cidade, tanto festas como reuniões políticas, cantavam-se “nossas músicas” não aquelas que estavam no mercado. Ele contou que numa de suas viagens por volta de 1968, testemunhou um grupo de lavadeiras cantando “Só a luta armada derrota a ditadura”. “Não se faz revolução só com cara fechada, somos um povo alegre e temos que levar essa frente cultural para a luta. Não podemos ficar a mercê da proposta da burguesia e da direita para a juventude.”

MEB e AP
O MEB surgiu em 1961, a partir de um convênio entre a igreja católica e o estado, visando a alfabetização de trabalhadores rurais, inspirado nas escolas radiofônicas da Colômbia. A conscientização, a politização, a valorização e reconhecimento dos participantes era suporte em seu processo educativo, construindo um significativo e original projeto político-pedagógico de participação popular, nos anos 1960.

A Ação Popular, por sua vez, foi uma organização política que, entre os anos 1962-1975, reuniu profissionais liberais, estudantes, operários e camponeses, dentre outros, com o objetivo de discutir um projeto político democrático-popular (mais tarde, socialista) para o Brasil. Com o golpe civil-militar de 1964, a organização incorporou a luta contra a ditadura como condição fundamental para continuar a desenvolver o seu projeto político, uma vez que a ditadura cerceou e proibiu toda e qualquer atividade política baseada na liberdade de expressão, organização e manifestação. A organização se integra ao PCdoB ainda durante a ditadura para se incorporar à resistência armada ao regime militar.