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Empresários e trabalhadores depõem sobre repressão das empresas durante a ditadura

O papel das empresas na repressão aos trabalhadores, durante o regime militar, esteve na pauta da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, coordenada pelo deputado Adriano Diogo (PT), nestas sexta-feira, 27/2, e segunda-feira, 1/3. Foram ouvidos depoimentos de trabalhadores da siderúrgica Aliperti, fundada em 1924, no bairro da Água Funda, mas que arrendou seu parque industrial para a Gerdau em 1998. Trabalhadores da Cobrasma, da Volkswagen, do Metrô, da Embraer e da Docas também registraram seus depoimentos para apurar a colaboração do empresariado paulista na repressão aos trabalhadores durante o período civil-militar. A mediação coube a Sebastião Neto, do Projeto Memória da Oposição Sindical Metalúrgica.

Segundo José Felix da Silva, 77 anos, que trabalhou na empresa de 1961 a 1995 e atuou na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), direitos à segurança do trabalhador eram desrespeitados e, depois de 1964, tudo ficou diferente, pois precisavam ter cuidado com o que falavam dentro da empresa, uma vez que a polícia civil estava presente no ambiente de trabalho.

Silva lembrou que a segurança interna da Aliperti era feita por homens armados e, a pretexto de conter qualquer ato de contestação, "empurravam o funcionário com a carabina, ameaçando atirar". A intimidação aos trabalhadores, seja para reclamar direitos ou para tentar organizar greves, segundo Silva, tinha como figura-símbolo o tenente Lauro Portugal, militar reformado encarregado da segurança na empresa. O domínio de Portugal só acabou, quando houve uma greve bem-sucedida na empresa, em 1986, afirmou o depoente.

Más condições de trabalho

Falta de equipamentos de segurança (uniformes e luvas) e de área para refeição, local inadequado para banho dos trabalhadores foram alguns dos problemas apontados por Absolon Gaspar de Souza, que trabalhou na Aliperti de 1980 a 1987 e foi vice-presidente da Cipa. O resultado disso seria o número de mortos na empresa: 12 em apenas três anos, de 1986 a 1989, destacou Absolon.

Ele afirmou ainda que as mortes eram atribuídas a descuidos dos empregados, "como se eles gostassem de morrer". Com militância sindical anterior à entrada na Aliperti, Absolon contou que seu nome passou a constar em registros do Serviço Nacional de Informações (o extinto SNI) na época em que trabalhou na siderúrgica paulistana.

A ligação da empresa com órgãos da ditadura também foi denunciada por Anizio Batista de Oliveira, da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM/SP). Ele contou que, na época do regime militar, após distribuir panfletos convocando assembleia para discutir a poluição causada pela Aliperti no bairro, ele foi preso a cerca de três quadras da Aliperti por seguranças da empresa. Foi levado ao 35º Distrito Policial e de lá foi mandado ao Dops, tendo o delegado alegado que o panfleto que ele distribuía era subversivo.

Poluição

A poluição provocada pela Aliperti foi relatada pelo ex-padre Raimundo Perillat. Natural da França, ele chegou ao país em 1968 e esteve na paróquia da Água Funda de 1971 a 1976. "A empresa criava um clima de terror no bairro, impondo à comunidade o medo de discutir problemas. É o poder de morte. Quantas vidas foram levadas pelo pó e pelos gases venenosos da Aliperti? E os casos de doenças de pele, de pulmão, de visão, do sistema nervoso?", disse Perillat.

Sebastião Neto, do Projeto Memória da Oposição Sindical Metalúrgica, afirmou que esta discussão sobre a ligação de empresas com a ditadura militar procurava dar conta de "uma tarefa inconclusa da Comissão Nacional da Verdade". Ele leu carta aberta assinada pelo Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação, mostrando "insatisfação com a postura da extinta Comissão Nacional da Verdade de não acatar como recomendação formal à Presidência da República a responsabilização das empresas que colaboraram com a repressão no período da ditadura militar".

Segundo trecho da carta, "perseguições, delações, elaboração de listas sujas, demissões, torturas são algumas das ações provocadas pelo empresariado contra a classe trabalhadora ao longo do regime". Mas a CNV optou por responsabilizar os militares, omitindo para fins de reparação o papel dos empresários como organizadores do golpe civil-militar de 1964, acrescenta o documento lido por Neto.

Repressão na Cobrasma e na Volkswagen

Os trabalhadores da Cobrasma e da Volkswagen relataram demissões, tortura e incomunicabilidade de funcionários que reivindicavam melhores condições de trabalho, em pleno horário de expediente.

Os primeiros depoimentos foram os dos ex-funcionários da Cobrasma S.A., João Batista Cândido e Antonio Espinosa. Cândido contou que trabalhou durante oito anos na empresa, primeira fábrica de equipamentos ferroviários em São Paulo, localizada em Osasco. “Eram 4 mil trabalhadores, sem restaurante ou refeitório. Dois terços da fábrica trabalhavam em condições de insegurança e insalubridade. "Eu mesmo assisti à morte, por acidente, de três trabalhadores", relatou.

Cândido e alguns companheiros formaram comissões de fábrica, com a assistência do advogado trabalhista Mário Carvalho de Jesus. Ele transferiu para os trabalhadores da Cobrasma a experiência acumulada no Sindicato de Cimento de Perus, que, à época, já era bastante representativo no Estado paulista, pela greve de 90 dias em represália à demissão de trabalhadores.

A greve da Cobrasma eclodiu em 16 de julho de 1968, e inspirou a paralisação em outras fábricas da região do ABC paulista, sendo referência para as greves dos metalúrgicos que se sucederam na década de 70. Dois mil trabalhadores da Cobrasma, ou seja, metade do efetivo da empresa, cruzou os braços em represália às mortes e más condições de trabalho.

A antiga Força Pública - atual Polícia Militar-, além da Polícia Federal e representantes do Ministério Público, ocuparam a fábrica e detiveram os líderes.

Antonio Roberto Espinosa, filósofo formado pela USP e ativista de esquerda, relatou que no primeiro dia foram presas 400 pessoas; no segundo, 250; e no terceiro, mais 250. Essas últimas prisões ocorreram em igrejas, onde padres haviam acolhido os grevistas, já que o Sindicato também estava ocupado.

Os que não participaram do movimento grevista foram liberados. Para Espinosa, ficou clara a relação de intimidade entre empresários e órgãos da repressão. "Tudo foi acertado por telefone".

Ex-funcionário da Cobrasma lembrou que a empresa era emblemática para movimentos da esquerda e da direita. Tinha uma longa tradição de greve e ocupava um espaço estratégico em Osasco, dentre 11 quartéis militares. Trabalhava com fundição prensada para vagões de trem, mas poderia se transformar numa fábrica de armas.

Após ser demitido, Cândido não conseguiu emprego na região "por um bom tempo", apesar da oferta de trabalho na época. Seu nome e de outros 17 líderes grevistas constavam de documento enviado pela Cobrasma ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Atestado de antecedentes de líderes sindicais foram solicitados aos que já eram funcionários da empresa.

Foi exibido vídeo produzido pelo Sindimetal (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região), com entrevistas do então presidente da Cobrasma, Luis Bueno Vidigal Filho, e de Roberto Pinto, ex-chefe do departamento pessoal da empresa. Ambos disseram desconhecer as solicitações de atestado de antecedentes, apesar de a assinatura de Roberto Pinto constar em papel timbrado da Cobrasma. Sobre a greve, Vidigal Filho contestou o fato de sua empresa ter enviado o documento para o Serviço Nacional de Investigação (SNI).

A historiadora Joana Monteleone lembrou que a atuação da família Vidigal estendia-se à Cianorte, empresa localizada no nordeste do Paraná, e ao Banco Mercantil. "Havia o consentimento de várias formas de repressão nas empresas, mas Vidigal Filho se tornou líder do empresariado paulista no regime democrático", afirmou Joana.

Militares na Volks

Expedito Soares, ex-deputado estadual, denunciou a existência de uma lista do DOPS que circulava pelos departamentos de RH de todas as empresas do ABC paulista. Segundo ele, constavam da lista os nomes de trabalhadores que estavam à frente de movimentos por melhores condições de trabalho e por garantia de emprego. "Quem constava da lista estava condenado a não arranjar emprego em nenhuma fábrica da região, como eu", assinalou.

Com base nessa lista, a Comissão Municipal da Verdade de São Bernardo do Campo, presidida por José Ferreira, localizou trabalhadores e produziu um vídeo com seus testemunhos, também exibido nesta audiência. Além do vídeo, a pesquisadora Amanda Menconi Hornhard apresentou documentos sobre o monitoramento de trabalhadores feito pela Volks de Taubaté, no Vale do Paraíba. O dossiê foi entregue à Comissão da Verdade.

A pesquisadora esclareceu que as próprias empresas monitoravam seus trabalhadores, mesmo sem serem coagidas pelos militares. "Havia uma afinidade de interesses entre os militares e as empresas". Segundo ela, documentos comprovaram que o principal objeto desse monitoramento eram os sindicatos de São Bernardo do Campo e de Diadema, os integrantes do PCdoB, do MR-8, da Convergência Socialista e do PT. A lista detalhava a finalidade, a estrutura e o investimento dessas organizações dentro da fábrica.

Exibindo documento do Centro Comunitário de Segurança do Vale do Paraíba, Amanda declarou que a Volks estava na vanguarda desse monitoramento, "um exemplo para mais de 20 empresas da região", ironizou. A lista da Volks encaminhada ao DOPS continha 470 nomes, com endereço residencial.

Lúcio Antonio Bellintani, funcionário da Volks de 1964 a 1972, ano em que foi preso, citou o coronel Adhemar Rudge, então chefe de Segurança da Volks como um marco da presença de militares na empresa. "Fui preso e levado ao departamento pessoal. Lá mesmo fui estapeado. Depois me mandaram ao DOPS, onde fui torturado pela equipe do delegado Fleury e fiquei 45 dias incomunicável". Sua esposa ia todos os dias à Volks e saia sem notícias.

Bellintani relatou que o delegado Fleury, envolvido em casos de tortura e morte de militantes, frequentava a Volks, na companhia do cel. Rudge, em ronda sistemática, para flagrar reuniões em banheiros ou panfletos de greve.

A resposta da VW

Rogério Luiz Vargas, gerente jurídico da Volkswagen do Brasil, participou da audiência e, em nome da empresa, frisou que "a Volks tem uma extensa lista de contribuições sociais e se orgulha de fazer parte da história do Brasil há mais de 60 anos". Lembrou que a região do ABC, onde se situa a fábrica, é o berço do sindicalismo brasileiro e a Volks foi precursora na formação de comissões de fábrica.

Disse que o papel da empresa não é contrapor ou julgar os depoimentos e documentos. Sobre a lista com os nomes dos líderes sindicais, respondeu que a Volks estaria disposta a colaborar nos esclarecimentos, mas não reconhece a importância desse documento. "Em nenhum momento a Volks contribuiu para a violação dos direitos humanos; ao contrário, vê com muito respeito os movimentos de reparação".

Vargas confirmou que o coronel Adhemar Rudge trabalhou como chefe da Segurança da Volks até 1991, mas refutou a informação de que o sistema de segurança da empresa havia sido criado pelo criminoso nazista Franz Stangl, ex-dirigente do campo de concentração Treblinka. Stangl foi funcionário da empresa até 1967, ano em que foi preso e extraditado para a Alemanha.

Metrô, Embraer e Docas 

Nesta segunda-feira, a audiência ouviu trabalhadores do Metrô. Sebastião Neto, um dos coordenadores do Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras, falou de um levantamento acerca da repressão aos trabalhadores do Metrô, feito por Alexandre Carvalho Leme (foto acima), da Secretaria de Relações Intersindicais do PSTU. Segundo Leme, há importantes indícios de relação direta entre a repressão mais recente no Metrô e fatos da época da ditadura.

Conforme documentos apresentados por Neto, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) vigiava constantemente as atividades metroviárias, sendo que informações dadas ao DOPS partiam de dentro do Metrô. "Queremos saber quem era o informante e o porquê", afirmou.

Paulo Roberto Soler, funcionário do Metrô entre 1976 e 1988, relatou sua participação, como diretor do sindicato, na greve de 1983. Soler foi demitido juntamente com 357 funcionários. Wagner Gomes, também ex-funcionário do Metrô, afirmou: "Não tenho dúvidas de que pessoas ligadas à repressão continuam nas estatais até hoje".

Embraer

No período da tarde, a reunião abordou a repressão a trabalhadores na Embraer e na Companhia Docas de Santos. Amanda Menconi Hornhard, da Comissão da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos e São José dos Campos e região, apresentou suas pesquisas feitas no Arquivo Nacional e o do Estado de São Paulo. Segundo os dados, até 1987 os trabalhadores da Embraer eram vigiados, com articulação entre a polícia e outros órgãos repressivos, como o Dops e a Polícia da Aeronáutica.

A Embraer participava do Centro Comunitário de Segurança do Vale do Paraíba (Cecose), entidade organizada por empresários que trocava informações de vigilância e repressão aos trabalhadores, sendo que o movimento operário era descrito como "inimigo". O Cecose era composto por 25 empresas. Destas, 14 eram multinacionais, como Ford e Johnsons, oito nacionais, como Villares, e quatro estatais, grupo que incluía Telesp e Embraer.

Luiz Carlos Prates (Mancha), também da Comissão da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos, lembrou que a região do Vale do Paraíba é estratégica, por estar entre Rio e São Paulo e concentrar indústrias. Portanto, na época da ditadura, houve grande repressão aos trabalhadores, com perseguição, prisões e demissões, sendo que os seus nomes iam para a lista suja, o que os impedia de arrumar novo emprego. Para Mancha, é preciso esclarecer o passado, pois até hoje as reuniões sindicais continuam monitoradas.

Coronel Ozires Silva (na foto acima com Arnaldo Silva e Hélio Nishimoto), primeiro presidente da Embraer, disse à comissão que a empresa seguia a política do governo, por estar vinculada ao Ministério da Aeronáutica. Ele presidiu a empresa, erguida em terreno cedido pelo Centro Técnico Aeroespacial (CTA), até 1986. Participou do processo de privatização da empresa, em 1994.

Silva disse que, como engenheiro aeronáutico, sua missão era fabricar aviões, portanto não tinha conhecimento de questões de segurança. As questões administrativas eram de responsabilidade da Aeronáutica, disse. "Recebíamos instruções a as cumpríamos", afirmou.

Getúlio Guedes e Antonio Donizetti Ferreira (na foto acima) falaram de sua atuação nos movimentos sindicais dentro da Embraer, principalmente na década de 1980. Foi exibido o vídeo Arquivo: Dossiê Embraer clique aqui

Companhia Docas

A Companhia Docas de Santos foi uma empresa privada, fundada e controlada pela família Guinle em 1890. Foi substituída, em 1980, pela estatal Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp). "Foram 90 anos de exploração, no sentido amplo da palavra", falou o ex-sindicalista Antonio Fernandes Neto. Ele lembrou que a família Guinle jamais pagou impostos à União e nem investiu no porto ou em Santos. Apoiaram o golpe de 1964 e foram recompensados por isso: seus prejuízos na década de 1970 foram cobertos pelo governo.

A situação dos trabalhadores da Companhia Docas piorou muito a partir de 1965, quando direitos como descanso semanal e férias foram revogados. "O sindicato era dirigido por "pelegos" que agiam contra os trabalhadores", informou Fernandes Neto, que lançará em breve o livro Nem os pombos apareceram no cais, sobre o movimento sindical na Docas entre 1964-1980.

O advogado Nobel Soares de Oliveira reportou o clima de terror que havia entre os trabalhadores da Docas depois de 1968, sob vigilância exercida principalmente por um grupo apelidado de 70. Havia casos de trabalhadores que sumiam por algum tempo. Entre os trabalhadores, principalmente os militantes da causa operária, reinava clima de medo da prisão, da tortura, de rebaixamento profissional e transferências. Por participar da greve de 1980, Nobel foi demitido, e, impedido de trabalhar, lutou para formar-se em Direito.

Everandy Cirino dos Santos foi da guarda portuária e tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Portuária de Santos (Sindaport). Ele confirmou que os trabalhadores são monitorados até hoje.

Sebastião Neto, do Projeto Memória da Oposição Metalúrgica de São Paulo, reiterou a necessidade de as empresas abrirem seus arquivos, para que o Ministério Público possa prosseguir com as investigações, agora que a Comissão Nacional da Verdade está extinta.

Procurador da Codesp, Rodrigo Otávio Mugera disse que as informações estão disponíveis nos arquivos da companhia, que preza pela transparência. Ele ainda negou haver na empresa vigilância e repressão aos trabalhadores.

Adriano Diogo informou que na próxima sexta-feira, 6/3, a partir das 10h, haverá nova reunião da Comissão da Verdade, onde será abordado o Esquadrão da Morte. Estarão presentes o jornalista Percival de Souza e o jurista Hélio Bicudo.

Verdade e reparação

Ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade, a advogada Rosa Cardoso afirmou que a CNV centrou foco no confronto com os militares e omitiu a justiça e reparação aos trabalhadores e também o papel dos empresários como organizadores do golpe civil-militar de 1964. Fez menção à carta aberta assinada pelo Fórum dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação e, a pedido de Adriano Diogo, fez uma comparação entre o ano de 1964 e os dias de hoje.

"A história nunca se repete. O confronto ocorreu em momento diferente da agenda política de hoje, quando há questões ambientais, tecnológicas e globalização". Entretanto, a tentativa de desnacionalizar empresas, fragmentar o movimento sindical é algo parecido com o que se viu em 1964. "A indignação da população está sendo manipulada para mudar interesses que não são os dela".