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Historiadores pesquisam repressão militar sob pontos de vista inusitados

Alessandra, Anderson e Mariana apresentaram em São Paulo, neste sábado (17 de agosto), o resultado dos “interrogatórios” que fizeram para investigar as entranhas da ditadura. Em tempos de Comissões da Verdade, por todo o país, os pesquisadores lançaram os três livros contemplados com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas 2010. Uma tríade historiográfica que se debruça sobre personagens normalmente ignorados ou até mesmo rejeitados pelos pesquisadores identificados com o pensamento de esquerda. Os heróis da resistência à ditadura, localizados na militância de organizações de esquerda, sempre foram os depoentes preferenciais a serem resgatados. Outras vozes, especialmente aquelas vinculadas aos órgãos de repressão, são frequentemente silenciadas na pesquisa acadêmica pelo desinteresse em sua versão supostamente distorcida da realidade.

Em “Todo o leme a bombordo”, Anderson da Silva Almeida inquiriu a Marinha, aparato repressivo que sufocou militares de esquerda, personagens que o historiador resgatou do esquecimento. Mariana Joffilly “interrogou os interrogadores”, como diz Sérgio Adorno na apresentação de “No centro da engrenagem”, livro que busca entender a lógica funcional por trás dos interrogatórios da Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo. No trabalho mais claramente polêmico, intrigava a Alessandra Gasparotto os motivos que teriam levado militantes de esquerda a se arrepender de combater a ditadura e gravar depoimentos de retratação pública na Rede Globo, rádios e jornais. O resultado da pesquisa sobre essas pessoas renegadas pela militância de esquerda, pelo prejuízo que causaram aos que permaneciam sob tortura, presos ou exilados, é “O terror renegado”.

Desta forma, o castelo acadêmico, de costas para estes personagens, vira-se e olha no olho de personagens controversos em busca de alguma verdade. O resultado, para além de qualquer falsa polêmica, é um minucioso e surpreendente registro dos sofisticados mecanismos de repressão militar à dissidência política. Como disse Ivan Seixas, presente no lançamento dos livros no Memorial da Resistência, Joffily mostra o funcionamento do Doi-Codi de um modo que ele, que esteve preso e foi torturado lá, não conhecia. Anderson revela a violência das Forças Armadas no enfrentamento de um inimigo interno, os militares que não eram coniventes com o direitismo que avançava na Marinha e se organizavam para resistir. Alessandra, por sua vez, mostra como o regime se preparou para a guerra de propaganda com a finalidade de apagar na imagem do país a repressão, as prisões políticas e a tortura.

Fontes primárias de pesquisa

Outro aspecto comum dos livros, que justifica o prêmio do Arquivo Nacional, é a forma como os autores exploram as fontes documentais disponíveis sobre aquele período. Todos os pesquisadores foram unânimes em afirmar que o trabalho penoso que tiveram ao enfrentar a burocracia dos detentores dos arquivos, deverá ser mitigado, agora que os arquivos vão sendo abertos e disponibilizados até mesmo na internet.

Alessandra enfrentou dificuldades particulares em resgatar suas fontes documentais no Rio Grande do Sul. Segundo ela, a eficiência da integração de inteligência policial da época da ditadura foi o que contribuiu para sua pesquisa. Mesmo que todo o acervo gaúcho tenha sido queimado, como alegam alguns, grande parte dos documentos têm cópias mantidas em acervos de outros estados. Anderson também teve seu trabalho facilitado pelo acervo da Marinha encontrado em São Paulo, já que no Rio de Janeiro, o acesso é mais difícil.

Silêncios impostos pela anistia

Anderson diz que ainda não houve repercussão visível de sua pesquisa nas Forças Armadas. Ele acredita que, pela prática observada na instituição, é provável que algum historiador oficial tente restabelecer a versão da Marinha sobre os fatos. Segundo ele, a Marinha mantém corrente a versão de que a rebeliões de marinheiros ocorridas na década de 1960 tinham caráter disciplinar e não político. A esquerda também evita o reconhecimento político daqueles marinheiros ao tratar a questão como “coisa deles com a Marinha” e reafirmar o papel uno e indivisível das Forças Armadas, durante aquele período. De acordo com o autor, mesmo entre os marinheiros que se opunham ao comando de direita, havia uma multiplicidade de pensamentos.

Esta multiplicidade de trajetórias também se revela no trabalho de Alessandra. Há uma impressão de que os “arrependidos” eram poucos e teriam capitulado frente à tortura e à violência da ditadura. Foi assim, por exemplo, que a presidenta Dilma Rousseff se referiu aos “meninos que foram à televisão”, ela mesma, um personagem único ao assumir a Presidência da República após ter sido presa e torturada pelas instituições que hoje comanda. O livro matiza de cinza esse cenário dualista de opositores e apoiadores do regime militar, ao resgatar cerca de 40 personagens, alguns com o perfil descrito pela presidenta e outros que reafirmam o arrependimento sem aspas e a defesa da ditadura. Talvez o trabalho de escrita mais delicado ao exigir uma relação ética com as memórias relatadas, e um distanciamento próprio da história para entender suas implicações, num momento em que os exilados começavam a disseminar no exterior informações sobre a violência do regime, demandando uma resposta institucional, dada por meio da criação da Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas).

Para além de compreender aonde queria chegar o interrogador com aquela série mecânica de perguntas, Mariana persegue os silêncios por trás das perguntas que não são feitas. A palavra dita e a não dita falam da funcionalidade desses interrogatórios na engrenagem da repressão. São instrumentos que explicam, em alguma medida, os objetivos, o alcance e a falha histórica que esses órgãos representam, na tentativa de eliminar o pensamento dissidente. Para ela, mais que uma ferramenta para obtenção de informações, o interrogatório, aliado à tortura, tinham objetivos de submissão, normalização e afirmação do regime de poder.

Assim como Anderson que se debruçou sobre processos que representavam dez caixas de papeis para cada marinheiro investigado, Mariana também tinha como fonte primária papeis que representam 1.324 presos inquiridos em 5.419 sessões. Volume de documentos que, todos admitem ser apenas parte do todo. Ainda assim, uma pesquisa importante ao promover uma primeira olhada especializada sobre papéis que permaneciam ocultos sob a desculpa de preservar a segurança nacional.

O modo como o Dops procurava dar ares de legalidade a práticas clandestinas e inconstitucionais do Doi-Codi é uma faceta curiosa da ditadura brasileira, que contrastava com as demais ditaduras argentina e chilena, que não se davam a esse trabalho, expondo sem hipocrisia o clima de exceção que instaurou naqueles países. Um esforço sutil dos agentes policiais que, embora aparentemente inexplicável, faz parte da mesma lógica conciliatória que marca a história do país, desde o fim da escravidão, por exemplo, como também na anistia “ampla e irrestrita” instaurada ao fim da ditadura. Este é um dos mecanismos da engrenagem trazidos à luz pela pesquisa de Mariana.

Espaço da memória coletiva

Enquanto o teatro do Memorial da Resistência recebia os três autores para o lançamento de livros paradigmáticos para aquele espaço, no piso de exposições, uma multidão circulava por entre as celas do espaço cultural que já foi o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops). Enquanto aqueles ouviam gravações dos relatos em primeira pessoa, sentados nos mesmos catres que os presos ocuparam, o auditório reunia pessoas que estiveram presas naquele mesmo local e agora atuam para restabelecer a verdade sobre aquele período.

Os historiadores Augusto Buonicore e Fernando Garcia, ambos da Fundação Maurício Grabois e do seu Centro de Documentação e Memória, participaram do lançamento, assim como vários outros pesquisadores presentes. Mas a plateia do “Sábado Resistente” também reunia personalidades como a ativista política Clara Charf, viúva do guerrilheiro Carlos Marighella, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), além de um grupo de alunos da rede pública de ensino médio. A mesa foi coordenada por Maurice Politi (diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política).

Para ler o livro de Mariana Joffily, No Centro da Engrenagem, CLIQUE AQUI

Para ler o livro de Alessandra Gasparotto, O terror renegado, CLIQUE AQUI

Para ler o livro de Anderson Almeida, Todo o leme a bombordo, CLIQUE AQUI