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Genoíno: Éramos uma geração emparedada entre a prisão, o exílio ou a luta armada

 

Em meio à tensão da crise política que atinge o Governo Dilma, tendo como alvo personalidades do PT, o ex-deputado federal José Genoino (PT-SP) evita dar entrevistas, ou mesmo ser fotografado, após a perseguição da mídia tê-lo envolvido num furacão de acusações, das quais foi absolvido, mas que deixaram cicatrizes em toda a família. Falar sobre a conjuntura política, em particular sobre os atuais ataques ao presidente Lula ou à crise econômica em que o país encontra-se mergulhado, também estão fora da pauta. Foi nesse contexto que a Revista Princípios encontrou o ex-deputado em sua casa para falar de um assunto que lhe agrada discutir, ou mesmo refletir a respeito, em particular neste momento de ataques aos valores da esquerda. Genoino queria relembrar Osvaldão e a Guerrilha do Araguaia, da qual foi um dos atores. E o ex-guerrilheiro não tem perdido nenhum dos espetáculos da atual onda de resgate da memória daquele movimento de luta contra a ditadura militar. Opinou sobre o filme “Osvaldão”, sobre as peças “Guerrilheiro Não Tem Nome” e “Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos”, na qual foi assistir acompanhado da reportagem de Princípios e de sua companheira Rioco Kayano, também ex-guerrilheira. Leia a seguir trechos das observações e reflexões do petista sobre os espetáculos que viu:

Eu queria saber de você como foi ver o Osvaldão naquele filme tcheco? É um grande mérito do filme o modo como resgata essa imagem inédita dele, falando e em movimento. Para quem conviveu com ele deve ter um impacto...

Eu fiquei muito emocionado. Em primeiro lugar, porque eu compreendo que a memória é transformadora, é revolucionária; como diz Leonardo Boff, é subversiva. A memória transforma o presente e o futuro. E esse movimento desses jovens, dessas pessoas que fizeram o filme “Osvaldão”, e as duas peças, é um resgate fundamental da memória. Por isso, eu queria também parabenizar o apoio que o PCdoB, a Fundação Mauricio Grabois, e outras instituições dão a essa iniciativa. Porque nós estamos rompendo com uma tradição no Brasil de esconder a memória, destruí-la, e matar a imagem dos líderes populares. Foi assim com Tiradentes, com Zumbi, com Antonio Conselheiro. Foi assim com Frei Caneca, foi assim com os índios. O que é a idéia de cortar a cabeça? Porque significa o pensamento, o futuro. E isso esteve presente no Araguaia, como também em outras experiências.

Eu fiquei particularmente emocionado, porque eu me lembrei de dois momentos muito marcantes. O primeiro momento, quando eu cheguei no Araguaia, quem me recebeu foi o Osvaldão. Nunca esqueço que foi 26 de julho de 1970. Eu cheguei lá no barraco onde ele estava, e ele me entregou o calendário do dia, que era aquela folhinha que camponês usa. Ele disse: “Essa é uma data revolucionária de Cuba.” Que era a tomada do Quartel de Moncada. E um revólver 38. Então foi uma coisa muito forte aquele dia. Aquela figura de quase dois metros, forte, como negro, aquele sorriso branco, largo. Eu fiquei lá com outro companheiro e ele. Foi uma imagem que veio à tona.

A segunda imagem foi quando eu me despedi. Porque, na verdade, eu não me despedi. No dia 17 de abril, um dia antes da minha prisão, eu fui com ele para a mata cavar um buraco para depósito e o instrumental que a gente levou não deu certo. A gente voltou. À noite, chegou o aviso que a gente tinha sido atacado nos destacamentos C e A, e não o B que era o nosso. Ele saiu, por ser o comandantem, e eu fui no dia seguinte de madrugada me despedir do meu grupo. Já tinha me despedido dele, e ele ia me reencontrar depois que levasse a mensagem para o destacamento C. Então essas duas imagens foram muito fortes.

Como eu morava no mesmo barraco dele, eu era sócio dele para efeito legal. Eu andava muito com ele, ouvia muito aquelas histórias. Era um dos guerrilheiros mais conhecidos no Araguaia, era um cara muito alegre, era um cara que todo mundo confiava, tanto os guerrilheiros, como a população. Ele era uma espécie de conselheiro. Tanto, que na eleição de 70, os Mutrans, que eram os representantes da oligarquia de Marabá, o convidaram para ser candidato a vereador pela Arena. Ele andava naqueles barcos, a gente circulava naqueles povoados e ele era muito cumprimentado, muito conhecido.

Nesse sentido, o filme é muito interessante, porque trás a memória dele em vida. Não é uma memória morta, não é uma memória parada no tempo. É uma memória que resgata a figura humana de um revolucionário que deu a vida de maneira heróica numa experiência política revolucionária. Eu tinha essa relação muito forte com ele. Inclusive a botina que ele mandava fazer em São Geraldo (o pé dele era 48), eu que fazia a encomenda. Porque eu circulava.

Os treinamentos que a gente fazia, ele imprimia muita confiança, porque conhecia as técnicas muito bem, pois foi um dos primeiros a ir para lá e conhecia a mata como ninguém. Então as coisas da mata, as histórias da mata, os segredos da mata, ele conhecia muito. E atirava muito bem, porque foi mateiro, caçador, garimpeiro e lavrador. Eu acho que todos os guerrilheiros com quem eu convivi, que eram do destacamento B, tinham essa relação muito forte com ele.

Isso veio à tona quando eu estava vendo o filme, porque eu não conhecia as cenas de antes da guerrilha. Eu conheci o Osvaldão, a partir do dia 26 de julho, quando eu cheguei lá. Quando a gente tinha tempo, ele ouvia jogo do Botafogo pelo rádio. Ele comentava que esteve na Tchecoslováquia. A gente sabia disso, mas não tinha as cenas.

Uma vez, ele teve uma malária muito violenta, que, se não tomasse soro com quinino, complicava. E eu com o Ribas, o outro companheiro que estava lá, - acho que era o Flávio -, fomos pegar o braço dele. E, tremendo com a febre, ele ajudava a pegar a veia para aplicar soro. E a gente amarrava a coisa do soro em cima de uma árvore porque a febre estava muito alta, 40 graus. Quer dizer, não tinha tempo ruim. Estava sempre à disposição. Fazia tudo, era o primeiro. O Osvaldão aplicava aquela máxima da guerra do Napoleão. “Como você comanda uma tropa se tem possibilidade da derrota?” Ele disse: “Você tem que ir na frente.” Ele era assim. Estava sempre na frente.

Na guerrilha, a liderança não é burocrática, nem imposta, ela é natural, porque ela se dá no concreto. Nós tínhamos uma relação muito companheira, era uma relação de camaradagem com todo mundo. E você não fazia nada sozinho. Ele incentiva muito isso: “A vida de um depende do outro. A solidariedade está no nosso sangue, está no nosso olhar, está no gesto.” Realmente, ele era um comandante forte, que dirigia as coisas, mas era um cara muito humano, muito alegre e transmitia isso para a gente.

Você de repente se depara com essas imagens dele em movimento, falando, você se depara com o sorriso branco, que você falou. Qual é a sensação ali na sala de cinema, Genoíno?

Olha, a sensação foi de uma viagem que eu fiz e trouxe para o momento. Porque quem quer transformar o mundo não pode olhar o passado apenas como uma estátua. Você tem que trazer para o momento. Então, eu fazia essa transposição sempre. Eu tinha vivido uma experiência, que foi forte também, nos anos 90, quando eu encontrei o irmão dele na sede do PT. Eu tomei um susto! Muito parecidos. Até mexi com as mãos, de susto, porque era muito parecido com o irmão dele.

Eu fiz uma viagem àquele cotidiano dos dois anos que eu vivi com ele. No treinamento, rios, caçadas, cavar buraco, camuflagem. As histórias que a gente vivia com a população, a maneira como a população se relacionava, pelo respeito que tinha por ele. Inclusive, à noite, eu sonhei com aquelas imagens da guerrilha, dos companheiros, lá. A gente fazia treinamentos pesados de reconhecimento da mata, treinamento de emboscada, de natação, camuflagem, cavar buraco. Mas ao mesmo tempo a gente fazia cantorias, fazia festas, assava um porco queixada no mato, um veado, uma paca. E ele era muito alegre em todos esses momentos, porque ele era realmente um líder. Ele agregava as pessoas, não só do ponto de vista da população, como ele agregava os guerrilheiros do destacamento B.

Desses depoimentos todos que as pessoas fazem no filme, amigos de infância, os camponeses, o que te chamou a atenção? Teve alguma coisa que você não sabia ou que você lembrou?

Olha, eu conhecia a história daquelas pessoas que falaram, né? E a coisa que me chamou a atenção foram os depoimentos das pessoas que conviveram com ele. Chamou-me a atenção o depoimento sobre o filho dele. Porque eu tenho algumas dúvidas se, realmente... Porque, senão, a gente saberia. Na guerrilha, no âmbito do destacamento e do grupo, o segredo era entre os destacamentos. O segredo era do ponto de vista militar, mas a nossa vida era muito conhecida.  Então, eu fiquei assim meio: Será? Eu fiquei com essa pergunta.

Como ele era muito conhecido na região, onde ele andava, ele era conhecido. Quando a gente andava de barco no Araguaia, até hoje eu me lembro, os Mutran, os Claros, que eram a oligarquia daquela região no sul do Pará, conversavam muito com ele. Naquela época, o sul do Pará era uma espécie de refúgio; quem atravessasse o rio Araguaia estava garantido. Como tinha muitos conflitos no lado do Tocantins, que era Goiás, o pessoal fugia. Uma vez, uma pessoa tinha participado de um conflito de terra e fugiu para o lado do Pará e passou lá onde a gente morava para falar com o Osvaldão. E o Osvaldão deu um conselho para ele de como ele devia ir para o mato: “Você vai por aqui, não vai por esse caminho.” Dito e feito, porque os caras que estavam procurando ele foram pelo caminho que iam pegá-lo. Ele conhecia muito a selva, porque ele vivia ali há muitos anos, com garimpo, como caçador.

Tanto, que, quando eu ia chegando lá, eu já ouvia as pessoas falarem do Osvaldão, o negão. Eu fui de ônibus de São Paulo até Imperatriz (MA), seguindo de barco pelo rio Tocantins (TO), e então ao Araguaia (PA). Inclusive, eu perguntei para o companheiro que levava a gente, o Bronca, e ele disse: “Fica tranquilo, que uma hora você vai conhecer o Osvaldão.” Chego, lá, estava ele.

Os depoimentos apontam para um medo muito grande que os militares tinham do Osvaldão. Como é que isso era presente, Genoíno?

Eu acompanhava isso como preso. Isso era presente nas histórias de como ele se escondia, nas histórias de que ele atirava bem. O primeiro enfrentamento que teve lá foi com ele. O Cabo Rosas foi seu primeiro enfrentamento, que dizia que ele atirava bem, se escondia. Tinha pacto com o Pai da Mata. Era fantasma. Tinha muitas histórias. Naquela região de selva existiam as histórias e as lendas. Quando eu estava lá, a gente assistia sessão de Terecô, uma espécie de macumba adaptada à selva, que nasceu no Codó do Maranhão. O Osvaldão ia nesses terreiros e era muito querido. A gente ia com ele, porque o Terecô aglutinava pessoas. Tirando a igreja de Marabá, não tinha mais nada sob o trabalho da igreja naquela região.

Então a lenda dele se espalhou e eu acompanhava isso. Inclusive, um lavrador ficou preso no mesmo buraco que eu e depois foi pra Brasília, porque ele era compadre do Osvaldão e não aceitava que falassem mal do compadre dele. “Ele não é isso que vocês estão falando não, é uma pessoa boa, que ajuda. Não tem nada disso.” E ficou preso por causa disso. Aliás, isso aconteceu também com o João Carlos, o médico, o Bula, com a Tuca, que era enfermeira, e com a Dina. As pessoas diziam: “Eles não são assim, não é isso.” E apanhavam, porque eles encaravam como se fosse uma defesa. E do Osvaldão falavam mais, porque era o mais conhecido. Como ele participou do primeiro combate, que foi lá na Gameleira, perto do Araguaia, que teve essa morte, a lenda dele se espalhou.

Por isso que é interessante a gente notar que a dominação política ideológica se materializa além da força física, a força mental, a força simbólica. Por exemplo, por que é que era importante pendurar o corpo dele e sair da mata com o corpo dele pendurado? Para todo mundo ver que ele tinha morrido. Se não mostrassem aquilo, o pessoal ia achar que ele não tinha morrido. Até porque a figura dele facilitava e produzia essa lenda. As pessoas, ora tinham medo de falar bem dele, porque sofriam, ora tinham medo de falar mal. (risos) Então, era uma contradição muito pesada que eu via quando estava preso.

Queria que você pensasse, agora, o que é que você gosta de lembrar na sua convivência com o Osvaldão?

O que eu gosto de lembrar eram os treinamentos que a gente fazia. A gente fazia treinamentos muito especiais, muito fortes, as caçadas... A vida, lá, era uma mistura de treinamento com o normal, que já era um treinamento. Eu me lembro disso, porque era agradável fazer essas coisas com ele. Era muito duro o treinamento da selva, então ele transformava aquilo em algo possível e liderava. A imagem dele, para mim, é a imagem daquela pessoa. Ele tinha até um lema: “O difícil a gente faz hoje e o impossível amanhã.” (risos) Que era o lema da Revolução Americana! Ele buscava uma maneira de construir soluções, de construir alternativas naquela vida difícil que a gente tinha. Seja quando pegava uma malária, seja quando ia para um treinamento e chovia muito. As feridas nas pernas. A gente sempre dava um jeito de se tratar. E ele era essa imagem muito forte de um cara que não se acomodava. Estava sempre alegre, de cabeça erguida e com coragem. Ele transmitia alegria, coragem e confiança no tipo de treinamento que fazia.

Vocês devem ter imaginado um monte de coisas que podia ter acontecido. Que o exército podia aparecer, ou podiam passar por violência, tortura. Estavam preparados para algumas coisas. O que era o inimaginável, Genoíno? Olhando agora para trás?

Ser preso.

Isso vocês não conseguiam conceber? Imaginavam que podiam morrer, mas...

Podia morrer... A gente dizia o seguinte: “Ou a gente volta morto, ou volta vivo para a cidade.” Como a gente conhecia muito a selva, treinava muito, apesar da precariedade de armamentos... A guerrilha sobreviveu dois anos e pouco não foi por acaso. A gente tinha uma autoestima muito grande, que produziu num primeiro momento uma subestimação do inimigo, porque a gente dominava a região. A gente fazia os mapas para a gente se guiar por lá. A gente conhecia a sobrevivência mesmo. A gente entrava no mato para ficar uma semana só com farinha e sal. Acabou, o resto você tinha que se virar. E a gente se virava. Então, aquilo criava uma autoestima muito grande.

E a vida coletiva que a gente tinha. De uma certa maneira, era o reencontro de uma geração que, parte dela, a gente se conheceu aqui. O Flávio era do Rio de Janeiro e eu conhecia-o do Congresso de Ibiúna. O Guilherme Ribas, Congresso de Ibiúna. A Sueli era da base da Letras, que eu conhecia com a minha companheira Rioco. A Helenira era diretora da UNE comigo. Só pra exemplificar alguns contatos. O Osvaldão eu conheci lá, mas esses outros a gente já se conhecia de antes. O encontro era, vamos dizer assim, uma coisa que embalava muito fortemente.

Olhando para trás, vocês eram muito jovens, envolvidos numa situação inédita para vocês. Qual perspectiva era a mais presente? A vitória sobre a ditadura ou uma derrota violenta para o Exército?

Eu tinha 24 anos quando cheguei lá. E a gente era embalado por uma generosidade de fazer a revolução, que vinha da geração de 68, que vinha de uma espécie de disponibilidade. Aquela geração foi emparedada, colocada contra uma parede de ferro. Ou ficava em casa e era preso, ou saía do país, ou então ia para a luta. Para a luta, naquele momento, nossa compreensão era a resistência armada. Da minha experiência no Araguaia, acho que é correto dizer que era uma geração que estava muito mais disposta, estava muito desprendida para morrer, do que para matar. Porque era um sonho que embalava.

Quando a gente ficou sabendo que tinha sido descoberto, a gente não ficou num clima de apreensão e de preocupação. Eu estava lá, havia dois anos; tinha gente que estava a três, cinco anos. Aquela vida da gente treinando, vivendo, trabalhando na roça. E quando é que ia, né? Então foi assim: “Finalmente!” Eu acho que era isso que embalava muito.

Quando eu fui preso, foi como se tivessem cortado um pedaço do meu corpo. Porque, pra mim, foi muito barra pesada não estar junto. Na guerrilha, você constrói uma relação de solidariedade no sangue e na carne, porque tua vida depende do outro. A gente era igual em tudo, companheiros e companheiras, a gente fazia as mesmas coisas: lavar roupa, cozinhar, treinar, atravessar o rio. Havia um rodízio. E tua vida dependia do outro, a gente aprende isso. Por isso que a gente não fazia nada sozinho.

Então, naquele ambiente, que a gente já vinha de uma visão libertária de 68, depois vem o AI-5, esse emparedamento, eu acho que a resistência armada foi uma tentativa heroica de quebrar o emparedamento. É claro que a discussão da viabilidade das condições da época não pode esconder esse nível de despreendimento, de bravura, que marcou uma geração. Eu vi companheiros que nunca tinham cortado de machado, segurava o machado com a mão fechada e estourava a mão. Eu tinha trabalhado na roça até 15 anos de idade, mas tinha companheiros que nunca tinham trabalhado. A companheira Tuca era uma enfermeira do Hospital das Clínicas e começou a salvar mulheres no parto, como se fosse uma camponesa. Porque ela morava com o companheiro dela, então ela podia, não era estranho ela assistir aos partos. E salvava pessoas. A própria vida, lá, a gente vivia de maneira feliz. Tanto, que a gente começava a discutir entre nós que não podia haver uma adaptação excessiva. Porque a gente começava a gostar muito da selva. Tinha que gostar da selva, gostar dos rios, porque treinava nos rios; gostar da comida da região, das frutas e tal.

Como a gente ouvia através das rádios, que eram as Rádios Tirana, Pequim, Moscou, Havana, Voz da América, a gente tinha muita informação que não circulava aqui, que a gente ouvia lá. Aquilo também unia. Muitos companheiros que a gente conhecia de antes. No meu caso, por exemplo, eu conhecia muitos companheiros que eram do movimento estudantil de 68, do Congresso de Ibiúna, que foram para o Araguaia. A gente se reencontrava. Aquilo ia construindo uma coisa de uma utopia possível. Aquela música que o Chico canta muito bem: “sonhar o sonho impossível”.

Mas você tem que aprender a sonhar. Eu acho que um dos problemas que nós estamos vivendo hoje é não sonhar com o futuro. Parece que falta o direito de sonhar com o futuro. Você tem que sonhar, porque senão você não anda, não enfrenta as dificuldades do presente.

Não era brincadeira. Quando eu fui para lá, eu saí de São Paulo no dia em que o Brasil comemorou a chegada dos atletas do tricampeonato no Anhangabaú. Eu peguei a Belém-Brasília durante três dias, que não era asfaltada. Seguindo um companheiro com quem eu não podia falar, pois ele era o meu contato para entrar na guerrilha. As coisas eram feitas assim. Quando chegava um companheiro que a gente conhecia do movimento estudantil, aí a gente botava a pauta em ordem: “Conta as histórias aí, como é que está?” Eu acho que era aquilo que embalava uma visão ideológica, política, que tem esse sentido de resgate. Eu acho que é muito importante a gente resgatar para não cair na mesmice, na subserviência, nesse obscurantismo fascista, em que as pessoas não se rebelam, não se revoltam. As pessoas são destinadas a isso e pronto. Nesse sentido, o resgate do Araguaia tem um aspecto muito importante.

A gente está vivendo esse momento particularmente reacionário entre a juventude. Qual a importância de um filme como esse ou, até mesmo, desse conjunto de trabalhos sobre a Guerrilha do Araguaia aparecer nesse momento?

Nós estamos vivendo uma fase de restauração conservadora com graves conseqüências. Uma espécie de neofascismo, com um pensamento de direita destrutivo, que se baseia na destruição, na negatividade, na violência, no preconceito, na truculência. Um dos elementos importantes para a gente construir uma contra-hegemonia a essa restauração conservadora é resgatar a nossa história. Esses filmes, essas peças, têm um papel muito importante.

É claro que, ao resgatar a história, nós fazemos isso em nome de um projeto de transformação do país. Um projeto nacional, um projeto democrático, um projeto popular. Porque essa é a maneira das pessoas conhecerem a história do Brasil. Porque tem uma memória que sempre foi negada ao povo brasileiro. A Lei de Acesso à informação foi muito importante para a gente acabar com o sigilo eterno. Você não pode negar a uma geração o direito à memória do seu país. O direito à memória e à verdade não pode ser negado. Porque nós temos a tradição no Brasil de negar. Canudos é conhecido por causa das reportagens de Euclides da Cunha e depois do livro de Vargas Llosa, que é mais recente. Você pega as rebeliões coloniais, as rebeliões populares, o fenômeno do cangaço, os 18 do Forte, a fundação do Partido Comunista, 1935. Há toda uma maneira de dominar e eliminar a memória. A eliminação da memória faz parte de uma ação no simbólico e na imagem. Porque a classe dominante brasileira sempre exerceu o seu domínio no simbólico, destruindo as referências. Não basta só matar, tem que destruir. Destruir o sentido da história, apagar. Eu acho que são muito importantes essas iniciativas naquilo que eu chamo de uma contracultura, de uma contra-hegemonia, a um risco que nós estamos vivendo de uma restauração conservadora.

Esse filme é muito especial, no sentido de que, além dele ter sido feito pela Fundação Maurício Grabois e por esses jovens militantes, depois ele foi levado para a internet em busca de financiamento para garantir a exibição nas salas de cinema. As pessoas doaram e ultrapassaram a meta. E o filme está sendo levado para as salas de cinema. Ou seja, é uma coisa inédita na esquerda, não?

Eu acho. A esquerda não pode se adaptar ao status quo que pressupõe a não compreensão política e uma certa covardia do bom mocismo. Você tem que trabalhar com uma atitude subversiva, de transformação. Essas iniciativas e o ineditismo delas mostram que tem um potencial; que se a gente coloca a cara, discute e forma, tem espaço. Agora, se a gente fica no adaptacionismo; se a gente fica no comodismo; se a gente fica no medo... O fascismo trabalha com a idéia do medo. A dominação capitalista, ao longo da história das dominações que vêm de antes do capitalismo, é da servidão. Tratar o ser humano dominado como um serviçal, como um indolente, como um povinho, como uma pessoa que não tem autoestima. Assim, você não vai querer subverter a ordem, não vai querer levantar a cabeça. Então, eu acho que essa atitude é muito importante. E, de uma certa maneira, no meu modo de entender, esses jovens que estão com essas iniciativas merecem todo o apoio. Primeiro, porque tem espaço, segundo, tem dificuldade? Tem, porque as coisas não estão prontas. Você tem que furar o cerco.

Assim como era muito difícil imaginar, nos anos 70, uma resistência heroica como foi a Guerrilha do Araguaia, é difícil, hoje, você sair do bom mocismo, do modus operandi, desse comodismo e não furar esses bloqueios. Porque há um bloqueio da dominação na política, na economia e na informação. O tripé do bloqueio. Quer bloquear essa tentativa de restauração conservadora, - que é um fenômeno mundial de uma era -, pega nesses três pontos. Eu acho que essa contra-hegemonia, esse movimento, tem que ser muito valorizado e resgatado.

Qual sua impressão sobre a peça Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos?

Elas destacam o papel das mulheres, mas elas fazem isso dando uma ideia geral do que aconteceu na guerrilha, com o povo, com os guerrilheiros e guerrilheiras, e a situação da época, os discursos, os pronunciamentos. É muito interessante, porque ao destacar as guerrilheiras, e o papel das guerrilheiras, isso é feito dando uma visão ampla e global do que aconteceu lá. A repressão, a relação como o povo foi tratado, como as pessoas não sabiam do que acontecia lá. Através da participação das mulheres, se resgata a memória de uma maneira muito viva, muito concreta e interessante.

Ao colocar a questão da resistência, da luta, da rebeldia, da luta por causa e por ideais, numa situação daquela, bate muito no momento que a gente está vivendo hoje. Porque, hoje, há uma espécie de pessimismo, de senso comum de que não há alternativa, uma visão muito negativista. E, mesmo naquela situação extremamente difícil, você tem uma resistência muito grande, um heroísmo que esbanjava coragem, amor, valentia.

Acho muito interessante o modo como elas misturam a linguagem teatral com a linguagem cinematográfica na peça. A terra é o centro da cenografia, fazendo com que a compreendamos como a mãe dos desaparecidos e deserdados. A mãe-terra é um personagem importante da peça que nos envolve em muita emoção.

Em relação à peça de teatro Guerrilheiro Não Tem Nome, como foi para você ver aquelas coisas todas sendo tratadas por jovens que não viveram aquilo, mas que tentaram fazer uma reflexão sobre temas tão difíceis?

Eu acho que eles foram felizes em botar na pauta temas que eu chamo na política, “cabeludos”, difíceis. Primeiro, porque eu acho que eles sacaram o que é que estava na essência do exemplo heróico dos guerrilheiros e das guerrilheiras, ao colocar aquela temática na pauta. O heroísmo, a dificuldade, a bravura, os desafios, o hoje. O fato de você não ter identificado os corpos da maioria dos companheiros. O próprio conceito da morte. Eles trabalham com esse conceito, trazendo a vida no sentido da imagem, que é uma maneira de dizer que os guerrilheiros estão vivos. É uma temática complexa que eles colocam, e eu achei muito interessante.

A gente olhando hoje, fazendo um passeio pelo que a gente viveu naquela época, é muito forte, porque a gente se lembra dos companheiros. Muitos que não estão vivendo o que a gente está vivendo. A guerrilha foi na época da ditadura, a gente está vivendo na democracia. E como é importante também, nesse debate, a democracia. Como é importante a democracia com a soberania popular, a democracia com direito à divergência, a democracia com tolerância, a democracia com uma sociedade que as pessoas podem lutar pela felicidade, a democracia sem medo. Quando eles trazem para hoje, também, a gente pode fazer essa leitura. É você dizer o seguinte: os companheiros que deram a vida, a gente está resgatando a vida deles. O maior gesto do ser humano é dar a vida por uma causa. A maior homenagem que a gente faz a quem dá a vida por uma causa é resgatar os valores e o ideário. Eu acho que eles foram felizes nesse sentido.

Eu percebo um fascínio muito grande, principalmente nessa peça, pelo Major Curió. O modo como eles olham para esse personagem como a própria personificação do mal. O que você acha do modo como ele aparece na peça ou até no filme quando se fala dele?

Ali no Araguaia tudo era forte. Tudo era marcante. As lendas. Tinha uma lenda que quem não atravessasse o Araguaia nos anos 70, não atravessaria mais, porque a água, ia pegar fogo. Uma lenda do padre Cícero do Juazeiro, do Ceará. As lendas do Pai da Mata. A maneira como a guerrilha foi combatida. As torturas eram públicas. Os corpos eram tirados de helicóptero. Pessoas eram presas porque eram amigas da guerrilha. Eu fiquei com um jovem preso num buraco, e ele dizia: “Eu nunca imaginava que fazer mal a uma moça fosse me dar tanto sofrimento.” Ele tinha transado com uma menina, e estava fugindo para não se casar. E ele achava que era por isso que ele estava sofrendo. Eu disse: “Não é não!” Teve um outro que conheceu a modernidade através do arcaísmo medieval. Ele dizia que nunca tinha visto eletricidade, então ele perguntou: “O que é que tem naqueles fios que bota aqui [na orelha] e eu pulo como sapo?” Aí eu fui explicar a eletricidade, porque ele não conhecia a eletricidade, porque não tinha luz no Araguaia. Na região do mato não tinha luz, não tinha estrada, não passava carro. Era selva. Então, tudo lá era muito forte. Tudo lá era forte.

Fascinante, porque... mistérios, histórias, pessoas. Veja bem, todo mundo foi marcado por uma coisa que, vamos dizer assim: “Esse é o Brasil!” As próprias lendas sobre a Transamazônica quando aquelas máquinas começaram a quebrar, a destruir aquelas árvores, o pessoal dizia: “Esse é o cão que está destruindo a selva.” Aquelas plataformas de abrir caminho. Quando vem tiro, metralhadora, helicóptero. Helicóptero, o pessoal nunca tinha visto, eles chamavam de pássaro voador. Era um besouro! Aquele barulho que para chegar vai espalhando tudo.

Então, os personagens de um lado e de outro, viveram intensamente aquilo ali. Marcou todo mundo, porque era muito forte. As condições sociais eram fortes, as condições econômicas estavam iniciando um processo que deu no que deu. Serra Pelada, a gente conhecia, a gente sabia que tinha ouro ali, a Serra das Andorinhas, a mata derrubada. Para nós, a castanheira, o mogno, eram coisas sagradas. Aquilo não existe mais.

Eu me lembro muito, a viagem que eu fiz de Imperatriz até o Gameleira para ir para a guerrilha, que eu viajei de barco, três dias. Dormindo naquele barquinho: tuc, tuc, tuc. Essas coisas marcam, e não tem como não marcar. Nesse sentido, tem que resgatar a memória e essa memória ser publicizada. Porque durante a existência dessa experiência tinha censura. Imagine se não fosse Euclides da Cunha com as reportagens sobre Canudos, em “Os Sertões”. Tinha desaparecido.