Uma vida para os livros e a luta

– Nota da Fundação Maurício Grabois sobre o falecimento de José Saramago –

A Fundação Maurício Grabois consterna-se com a morte do escritor português José Saramago. Sua perda, ocorrida na manhã de hoje (18), deixa contritos não apenas o povo de Portugal e os admiradores da literatura em todo o mundo, mas também os apoiadores das causas democráticas, populares e progressistas, tanto quanto os defensores da perspectiva socialista.

Nascido em 1922, em Azinhaga – uma aldeia de camponeses no sul de Portugal –, Saramago formou-se de maneira autoditada, obrigado que foi a abandonar os estudos desde cedo em função da carência de recursos de sua família. Trabalhou diversas vezes como operário antes de se dedicar exclusivamente à literatura. A partir daí construiu uma carreira tão brilhante quanto meteórica, iniciada apenas aos 57 anos de idade.

O testamento literário de Saramago inclui 20 romances, 3 livros de contos, 5 peças de teatro, 4 livros de crônicas e 3 de poesias. Dono de escrita inconfundível, tecida ao longo de anos e revelada pela primeira vez em Levantado do Chão (1980), Saramago – com seu estilo ferino, por vezes irônico, sempre polêmico – ajudou a enriquecer o idioma português. São várias as marcas registradas de seu texto que se tornaram conquistas da língua. É o caso de seus períodos longos – aparentemente prolixos, mas na verdade tensionados por densa reflexão acerca de problemas agudos da condição humana. O mesmo pode ser dito da ausência deliberada, em seu texto, de aspas e travessões, artifício usado para “borrar” as fronteiras entre narrador e personagens, entre realidade objetiva e subjetiva, entre indivíduo e coletividade.

Comunista convicto, integrante das fileiras do Partido Comunista Português, Saramago levou essa tradição de engajamento para dentro de sua literatura. Foi, antes de tudo, um crítico da crise civilizatória por que passa o mundo de nossos tempos. Deixou isso patente em obras como Ensaio sobre a cegueira (1995) – engenhosa fabulação sobre a contemporânea falta de perspectivas. Profundo conhecedor do caldo cultural em que se insere o marxismo, jamais deixou de cultivar seu ateísmo militante. Foi um duro crítico do puritanismo católico, fato que o levou a se exilar – em 1991, após a publicação de O evangelho segundo Jesus Cristo – em Lanzarote, nas ilhas Canárias. O mesmo tema é abordado em diversos outros trabalhos, como Caim (2009), seu último romance.

Em 1998, Saramago tornou-se o único escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura. Na hora mesma de receber o prêmio, lembrou imediatamente dos países coirmãos de língua portuguesa ao perguntar: “Por que não o Jorge Amado?” O prêmio foi considerado, antes de mais, uma vitória mundial do idioma lusitano – fato que o próprio autor, apesar da modéstia, jamais desconheceu. Em Língua – vidas em português, documentário de 2004 coproduzido por Brasil e Portugal, afirma: “Muitos diziam que a língua portuguesa não tinha futuro. E está aí o Brasil a desdizer isso”.

Apesar de afirmar que não mudaria – “a esta altura da vida” – seu jeito de escrever, Saramago defendeu o acordo ortográfico firmado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). “Tenho certeza de que com o tempo verão que a mudança terá sido benéfica”, garantia o escritor.

Como todo comunista, Saramago foi um cultor de visões de mundo totalizantes. Gostava de revisitar o passado, mas sempre com os olhos no futuro. É o que pode ser conferido em livros como História do cerco de Lisboa (1989) ou A jangada de pedra (1986). Neste último revê a formação da Europa a partir da Península Ibérica – justo no momento em que Portugal adentrava a União Europeia.

Pela grandeza de seu caráter e pela magnitude de sua obra – ambas inextricavelmente ligadas –, Saramago será lembrado e revisitado pelos séculos afora, seu trabalho a iluminar os caminhos futuros seja da língua portuguesa, seja da luta progressista dos povos.

São Paulo, 18 de junho de 2010.

A diretoria da Fundação Maurício Grabois.