Karl Marx

1. O Processo de Trabalho ou o Processo de Produzir valores-de-uso

A UTILIZAÇÃO da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar. Este, ao trabalhar, torna-se realmente no que antes era apenas potencialmente: força de trabalho em ação, trabalhador. Para o trabalho reaparecer em mercadorias, tem de ser empregado em valores-de-uso, em coisas que sirvam para satisfazer necessidades de qualquer natureza. O que o capitalista determina ao trabalhador produzir é, portanto um valor-de-uso particular, um artigo especificado. A produção de valores-de-uso muda sua natureza geral por ser levada a cabo em benefício do capitalista ou estar sob seu controle. Por isso, temos inicialmente de considerar o processo de trabalho à parte de qualquer estrutura social determinada.

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza.

Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.

Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua tarefa, que lhe oferece por isso menos possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais.

Os elementos componentes do processo de trabalho são:

1) a atividade adequada a um fim, isto é o próprio trabalho;

2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho;

3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho.

A terra (do ponto de vista econômico, compreende a água) que, ao surgir o homem, o provê com meios de subsistência prontos para utilização imediata, 1 existe independentemente da ação dele, sendo o objeto universal do trabalho humano. Todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho, fornecidos pela natureza. Assim, os peixes que se pescam, que são tirados do seu elemento, a água, a madeira derrubada na floresta virgem, o minério arrancado dos filões. Se o objeto de trabalho é, por assim dizer, filtrado através de trabalho anterior, chamamo-lo de matéria-prima. Por exemplo, o minério extraído depois de ser lavado. Toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho só é matéria-prima depois de ter experimentado modificação efetuada pelo trabalho.

O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas, que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto.

Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas, químicas das coisas, para fazê-las atuarem como forças sobre outras coisas, de acordo com o fim que tem em mira. 2 A coisa de que o trabalhador se apossa imediatamente, – excetuados meios de subsistência colhidos já prontos, como frutas, quando seus próprios membros servem de meio de trabalho, — não é o objeto de trabalho, mas o meio de trabalho. Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumentando seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia. A terra, seu celeiro primitivo, é também seu arsenal primitivo de meios de trabalho. Fornece-lhe, por exemplo, a pedra que lança e lhe serve para moer, prensar, cortar etc. A própria terra é um meio de trabalho, mas, para servir como tal na agricultura, pressupõe toda uma série de outros meios de trabalho e um desenvolvimento relativamente elevado da força de trabalho. 3 O processo de trabalho, ao atingir certo nível de desenvolvimento, exige meios de trabalho já elaborados.

Nas cavernas mais antigas habitadas pelos homens, encontramos instrumentos e armas de pedra. No começo da história humana, desempenham a principal função de meios de trabalho os animais domesticados, 4 amansados e modificados pelo trabalho, ao lado de pedras, madeira, ossos e conchas trabalhados. O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho e Franklin define o homem como “a toolmaking animal”, um animal que faz instrumentos de trabalho. Restos de antigos instrumentos de trabalho têm, para a avaliação de formações econômico-sociais extintas, a mesma importância que a estrutura dos ossos fósseis para o conhecimento de espécies animais desaparecidas. O que distingue as diferentes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz. 55 Os meios de trabalho servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho. Os meios mecânicos, que em seu conjunto podem ser chamados de sistema ósseo e muscular da produção, ilustram muito mais as características marcantes de uma época social de produção, que os meios que apenas servem de recipientes da matéria objeto de trabalho e que, em seu conjunto, podem ser denominados de sistema vascular da produção, como, por exemplo, tubos, barris, cestos, cântaros etc. Estes só começam a desempenhar papel importante na produção química. 5a

Além das coisas que permitem ao trabalho aplicar-se a seu objeto e servem de qualquer modo para conduzir a atividade, consideramos meios de trabalho em sentido lato todas as condições materiais seja como forem necessárias à realização do processo de trabalho. Elas não participam diretamente do processo, mas este fica sem elas total ou parcialmente impossibilitado de concretizar-se. Nesse sentido, a terra é ainda um meio universal de trabalho, pois fornece o local ao trabalhador e proporciona ao processo que ele desenvolve o campo de operação (field of employment). Pertencem a essa classe meios resultantes de trabalho anterior, tais como edifícios de fábricas, canais, estradas etc.

No processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio do instrumental de trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o produto. O produto é um valor-de-uso, um material da natureza adaptado às necessidades humanas através da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou.

Concretizou-se e a matéria está trabalhada. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado do produto. Ele teceu e o produto é um tecido.

Observando-se todo o processo do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção 6 e o trabalho é trabalho produtivo.7

Quando um valor-de-uso sai do processo de trabalho como produto, participaram da sua feitura, como meios de produção, outros valores-de-uso, produtos de anteriores processos de trabalho. Valor-de-uso que é produto de um trabalho torna-se assim meio de produção de outro. Os produtos destinados a servir de meio de produção não são apenas resultado, mas também condição do processo de trabalho.

Excetuadas as indústrias extrativas, cujo objeto de trabalho é fornecido pela natureza (mineração, caça, pesca etc; a agricultura se compreende nessa categoria apenas quando desbrava terras virgens), todos os ramos industriais têm por objeto de trabalho a matéria-prima, isto é, um objeto já filtrado pelo trabalho, um produto do próprio trabalho. É o caso da semente na agricultura. Animais e plantas que costumamos considerar produtos da natureza são possivelmente não só produtos do trabalho do ano anterior, mas, em sua forma atual, produtos de uma transformação continuada, através de muitas gerações, realizada sob controle do homem e pelo seu trabalho. No tocante aos meios de trabalho, a observação mais superficial descobre, na grande maioria deles, os vestígios do trabalho de épocas passadas.

A matéria-prima pode ser a substância principal de um produto, ou contribuir para sua constituição como material acessório. O meio de trabalho consome o material acessório: assim, a máquina a vapor, o carvão; a roda, o óleo; o cavalo de tração, o feno. Ou o material acessório é adicionado à matéria-prima, para modificá-la materialmente: o cloro ao pano cru, o carvão ao ferro, a anilina à lá; ou facilita a execução do próprio trabalho: os materiais, por exemplo, utilizados para iluminar e aquecer o local de trabalho. A diferença entre substância principal e acessória desaparece na fabricação em que se processe uma transformação química, pois nesse caso nenhuma das matérias-primas empregadas reaparece como a substância do produto. 8

Tendo cada coisa muitas propriedades e servindo em conseqüência a diferentes aplicações úteis, pode o mesmo produto constituir matéria-prima de processos de trabalho muito diversos. O centeio, por exemplo, é matéria-prima do moleiro, do fabricante de amido, do destilador de aguardente, do criador de gado etc. Como semente, é matéria-prima de sua própria produção. O carvão é produto da indústria de mineração e, ao mesmo tempo, meio de produção dela.

O mesmo produto pode no processo de trabalho servir de meio de trabalho e de matéria-prima. Na engorda de gado, por exemplo, o boi é matéria-prima a ser elaborada e ao mesmo tempo instrumento de produção de adubo.

Um produto que existe em forma final para consumo pode tornar-se matéria-prima. A uva, por exemplo, serve de matéria-prima para o vinho. Ou o trabalho dá ao produto formas que só permitem sua utilização como matéria-prima. Nesse caso, chama-se a matéria-prima de semiproduto, ou, melhor, de produto intermediário, como algodão, fios, linhas etc. Embora já seja produto, a matéria-prima original tem de percorrer toda uma série de diferentes processos, funcionando em cada um deles com nova forma, como matéria-prima, até atingir o último processo, que faz dela produto acabado, pronto para consumo ou para ser utilizado como meio de trabalho.

Como se vê, um valor-de-uso pode ser considerado matéria-prima, meio de trabalho ou produto, dependendo inteiramente da sua função no processo de trabalho, da posição que nele ocupa, variando com essa posição a natureza do valor-de-uso.

Ao servirem de meios de produção em novos processos de trabalho perdem os produtos o caráter de produto. Funcionam apenas como fatores materiais desses processos. O fiandeiro vê no fuso apenas o meio de trabalho, e na fibra de linho apenas a matéria que fia, objeto de trabalho. Por certo, é impossível a fiação sem material para fiar e sem fuso. Pressupõe-se a existência desses produtos para que tenha início a fiação. Mas, dentro desse processo ninguém se preocupa com o fato de a fibra de linho e o fuso serem produtos de trabalho anterior, do mesmo modo que é indiferente ao processo digestivo que o pão seja produto dos trabalhos anteriores do triticultor, do moleiro, do padeiro etc. Ao contrário, é através dos defeitos que os meios de produção utilizados no processo de trabalho fazem valer sua condição de produtos de trabalho anterior. Uma faca que não corta, o fio que se quebra etc. lembram logo o cuteleiro A e o fiandeiro B. No produto normal desaparece o trabalho anterior que lhe imprimiu as qualidades úteis.

Uma máquina que não serve ao processo de trabalho é inútil. Além disso, deteriora-se sob a poderosa ação destruidora das forças naturais. O ferro enferruja, a madeira apodrece. O fio que não se emprega na produção de tecido ou de malha, é algodão que se perde. O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas, de arrancá-las de sua inércia, de transformá-las de valores-de-uso possíveis em valores-de-uso reais e efetivos. O trabalho, com sua chama, delas se apropria, como se fossem partes do seu organismo, e de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vida para cumprirem suas funções; elas são consumidas, mas com um propósito que as torna elementos constitutivos de novos valores-de-uso, de novos produtos que podem servir ao consumo individual como meios de subsistência ou a novo processo de trabalho como meios de produção.

Os produtos de trabalho anterior que, além de resultado, constituem condições de existência do processo de trabalho, só se mantêm e se realizam como valores-de-uso através de sua participação nesse processo, de seu contacto com o trabalho vivo.

O trabalho gasta seus elementos materiais, seu objeto e seus meios, consome-os, é um processo de consumo. Trata-se de consumo produtivo que se distingue do consumo individual: este gasta os produtos como meios de vida do indivíduo, enquanto aquele os consome como meios através dos quais funciona a força de trabalho posta em ação pelo indivíduo. O produto do consumo individual é, portanto, o próprio consumidor, e o resultado do consumo produtivo um produto distinto do consumidor.
Quando seus meios (instrumental) e seu objeto (matérias-primas etc.) já são produtos, o trabalho consome produtos para criar produtos, ou utiliza-se de produtos como meios de produção de produtos. Mas, primitivamente, o processo de trabalho ocorria entre o homem e a terra tal como existia sem sua intervenção, e hoje continuam a lhe servir de meios de produção coisas diretamente fornecidas pela natureza, as quais não representam, portanto, nenhuma combinação entre substâncias naturais e trabalho humano.
O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender, portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas sociais. Não foi por isso necessário tratar do trabalhador em sua relação com outros trabalhadores. Bastaram o homem e seu trabalho, de um lado, a natureza e seus elementos materiais, do outro. O gosto do pão não revela quem plantou o trigo, e o processo examinado nada nos diz sobre as condições em que ele se realiza, se sob o látego do feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista, ou se o executa Cincinato lavrando algumas jeiras de terra ou o selvagem ao abater um animal bravio com uma pedra. 9

Voltemos ao nosso capitalista em embrião. Deixamo-lo depois de ter ele comprado no mercado todos os elementos necessários ao processo de trabalho, os materiais ou meios de produção e o pessoal, a força de trabalho. Com sua experiência e sagacidade, escolheu os meios de produção e as forças de trabalho adequados a seu ramo especial de negócios, fiação, fabricação de calçados etc. Nosso capitalista põe-se então a consumir a mercadoria, a força de trabalho que adquiriu, fazendo o detentor dela, o trabalhador, consumir os meios de produção com o seu trabalho. Evidentemente, não muda a natureza geral do processo de trabalho executá-lo o trabalhador para o capitalista e não para si mesmo.
De início, a intervenção do capitalista também não muda o método de fazer calçados ou de fiar. No começo tem de adquirir a força de trabalho como a encontra no mercado, de satisfazer-se com o trabalho da espécie que existia antes de aparecerem os capitalistas. Só mais tarde pode ocorrer a transformação dos métodos de produção em virtude da subordinação do trabalho ao capital e, por isso, só trataremos dela mais adiante:

O processo de trabalho, quando ocorre como processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, apresenta dois fenômenos característicos.

O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção, não se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução do trabalho.

Além disso, o produto é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho. Sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho. Ao penetrar o trabalhador na oficina do capitalista, pertence a este o valor-de-uso de sua força de trabalho, sua utilização, o trabalho. O capitalista compra a força de trabalho e incorpora o trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os quais também lhe pertencem. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho é apenas o consumo da mercadoria que comprou, a força de trabalho, que só pode consumir adicionando-lhe meios de produção. O processo de trabalho é um processo que ocorre entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo pertence-lhe do mesmo modo que o produto do processo de fermentação em sua adega. 10

2. O Processo de Produzir mais Valia

O produto, de propriedade do capitalista, é um valor-de-uso, fios, calçados etc. Mas, embora calçados sejam úteis à marcha da sociedade e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica sapatos por paixão aos sapatos. Na produção de mercadorias, nosso capitalista não é movido por puro amor aos valores-de-uso. Produz valores-de-uso apenas por serem e enquanto forem substrato material, detentores de valor-de-troca. Tem dois objetivos. Primeiro, quer produzir um valor-de-uso, que tenha um valor-de-troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria.

E segundo, quer produzir uma mercadoria de valor mais elevado que o valor conjunto das mercadorias necessárias para produzi-la, isto é, a soma dos valores dos meios de produção e força de trabalho, pelos quais antecipou seu bom dinheiro no mercado. Além de um valor-de-uso quer produzir mercadoria, além de valor-de-uso, valor, e não só valor, mas também valor excedente (mais valia).

Tratando-se agora de produção de mercadorias, só consideramos realmente até aqui um aspecto do processo. Sendo a própria mercadoria unidade de valor-de-uso e valor, o processo de produzi-la tem de ser um processo de trabalho ou um processe de produzir valor-de-uso e, ao mesmo tempo, um processo de produzir valor.
Focalizaremos sua produção do ponto de vista do valor.

Sabemos que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em seu valor-de-uso, pelo tempo de trabalho socialmente necessário a sua produção. Isto se aplica também ao produto que vai para as mãos do capitalista, como resultado do processo de trabalho. De início, temos portanto de quantificar o trabalho materializado nesse produto.

Exemplifiquemos com fios.

Para a produção de fios é necessário, digamos, 10 quilos de algodão. No tocante ao valor do algodão, não é necessário investigar, pois supomos ter sido comprado no mercado pelo seu valor, 10 xelins. No preço do algodão já está representado o trabalho exigido para sua produção em termos de trabalho social médio. Admitiremos ainda que, na elaboração do algodão, o desgaste do fuso, que representa no caso todos os outros meios de trabalho empregados, atinge um valor de 2 xelins. Se uma quantidade de ouro representada por 12 xelins é o produto de 24 horas de trabalho ou de 2 dias de trabalho, infere-se que, de início, já estão incorporados no fio dois dias de trabalho.

Não nos deve levar à confusão nem a mudança de forma do algodão nem a circunstância de ter desaparecido inteiramente o que foi consumido do fuso. A equação valor de 40 quilos de fio = valor de 40 quilos de algodão + valor de um fuso inteiro seria verdadeira, segundo a lei geral do valor, se a mesma quantidade de trabalho fosse exigida para produzir o que está em cada um dos lados da equação; nas mesmas condições, 10 quilos de fio são o equivalente de 10 quilos de algodão mais ¼ de fuso.

No caso, o mesmo tempo de trabalho está representado, de um lado, no valor-de-uso fio, e, do outro, nos valores-de-uso algodão e fuso. Não altera o valor aparecer sob a forma de fio, fuso ou algodão. Se, em vez de deixar parados o fuso e o algodão, combinamo-los no processo de fiação que modifica suas formas de uso, transformando-os em fio, essa circunstância em nada alteraria o valor deles; seria o mesmo que os trocar simplesmente por seu equivalente em fio.

O tempo de trabalho exigido para a produção do algodão, a matéria-prima no caso, é parte do necessário à produção do fio e por isso está contido no fio. O mesmo ocorre com o tempo de trabalho exigido para a produção da parte dos fusos que tem de ser desgastada ou consumida para fiar o algodão. 11

No tocante ao valor do fio, o tempo de trabalho necessário à sua produção, podemos considerar fases sucessivas de um mesmo processo de trabalho, os diversos processos especiais de trabalho, separados no tempo e no espaço, a serem percorridos, para produzir o próprio algodão, a parte consumida dos fusos e, finalmente, o fio com o algodão e os fusos. Todo o trabalho contido no fio é trabalho pretérito. Não tem a menor importância que o tempo de trabalho exigido para a produção dos elementos constitutivos esteja mais afastado do presente que o aplicado imediatamente no processo final, na fiação. Se determinada quantidade de trabalho, digamos, 30 dias de trabalho, é necessária à construção de uma casa, em nada altera o tempo de trabalho incorporado à casa que o trigésimo dia de trabalho se aplique na construção 29 dias depois do primeiro. Basta considerar o tempo de trabalho contido no material e no instrumental do trabalho como se tivesse sido despendido num estágio anterior ao processo de fiação, antes do trabalho de fiar finalmente acrescentado.
Os valores dos meios de produção, o algodão e o fuso, expressos no preço de 12 xelins, constituem partes componentes do valor do fio ou do valor do produto.
Mas, duas condições têm de ser preenchidas. Primeiro algodão e fuso devem ter servido realmente à produção de um valor-de-uso. No caso, deve o fio ter surgido deles. O valor não depende do valor-de-uso que o representa, mas tem de estar incorporado num valor-de-uso qualquer.

Segundo, pressupõe-se que só foi aplicado o tempo de trabalho necessário nas condições sociais de produção reinantes. Se 1 quilo de algodão é necessário para produzir 1 quilo de fio, só deve ser consumido 1 quilo de algodão na fabricação de 1 quilo de fio. O mesmo vale para os fusos. Se o capitalista se der ao luxo de empregar fusos de ouro em vez de fusos de aço, só se computa no valor do fio o trabalho socialmente necessário, isto é, o tempo de trabalho necessário à produção de fusos de aço.
Sabemos agora à parte do valor do fio formada pelos meios de produção, algodão e fuso. É igual a 12 xelins, que representam dois dias de trabalho. Vejamos agora a porção de valor que o trabalho do fiandeiro acrescenta ao algodão.

Agora temos de focalizar o trabalho sob aspecto totalmente diverso daquele sob o qual o consideramos no processo de trabalho. Tratava-se, então, da atividade adequada para transformar algodão em fio. Quanto mais apropriado o trabalho, melhor o fio, continuando inalteradas as demais circunstâncias. O trabalho do fiandeiro, como processo de produzir valor-de-uso, é especificamente distinto dos outros trabalhos produtivos, e a diversidade se patenteia subjetiva e objetivamente, na finalidade exclusiva de fiar, no modo especial de operar, na natureza particular dos meios de produção, no valor-de-uso específico do seu produto. Algodão e fuso são indispensáveis ao trabalho de fiar, mas não se pode com eles estriar canos na fabricação de canhões. Mas, agora, consideramos o trabalho do fiandeiro como criador de valor, fonte de valor, e sob esse aspecto não difere do trabalho do perfurador de canhões, nem se distingue, tomando exemplo mais próximo, dos trabalhos do plantador de algodão e do produtor de fusos. É essa identidade que permite aos trabalhos de plantar algodão, de fazer fusos e de fiar constituírem partes, que diferem apenas quantitativamente, do mesmo valor global, o valor do fio. Não se trata mais da qualidade, da natureza e do conteúdo do trabalho, mas apenas da sua quantidade. Basta calcula-la. Pressupomos que o trabalho de fiar é trabalho simples, trabalho social médio. Ver-se-á depois que pressupor o contrário em nada altera a questão.

Durante o processo de trabalho, o trabalho se transmuta de ação em ser, de movimento em produto concreto. Ao fim de uma hora, a ação de fiar está representada em determinada quantidade de fio; uma determinada quantidade de trabalho, uma hora de trabalho se incorpora ao algodão. Falamos em trabalho, ou seja, no dispêndio da força vital do fiandeiro durante uma hora, porque o trabalho de fiar só interessa, aqui, como dispêndio da força de trabalho e não como trabalho especializado.

É da maior importância que durante o processo, durante a transformação do algodão em fio, só se empregue o tempo de trabalho socialmente necessário. Se sob condições sociais de produção normais, médias, se transformam x quilos de algodão durante uma hora de trabalho em y quilos de fio, só se pode considerar dia de trabalho de 12 horas, o que transforma 12x quilos de algodão em 12y quilos de fio. Só se considera criador de valor o tempo de trabalho socialmente necessário.

Como o trabalho, assumem a matéria-prima e o produto aspecto totalmente diverso daquele sob o qual os consideramos no processo de trabalho. A matéria-prima serve aqui para absorver determinada quantidade de trabalho. Com essa absorção transforma-se em fio, por ter sido à força de trabalho, a ela aplicada, despendida sob a forma de fiação. Mas, o produto, o fio, apenas mede agora o trabalho absorvido pelo algodão. E, numa hora, 1.2/3 quilos de algodão se convertem em1. 2/3 quilos de fio, 10 quilos de fio representam 6 horas de trabalho absorvidas. Quantidades de produto determinadas, estabelecidas pela experiência, significam determinada quantidade de trabalho, determinado tempo de trabalho solidificado. Apenas materializam tantas horas ou tantos dias de trabalho social.

Não importa que o trabalho seja de fiação, que seu material seja algodão e seu produto fio, nem interessa tampouco que esse material já seja produto, matéria-prima, portanto. Se o trabalhador, em vez de fiar, estiver ocupado numa mina de carvão, o carvão objeto de trabalho será fornecido pela natureza. Apesar disso, determinada quantidade de carvão extraído, 100 quilos, por exemplo, representará a quantidade de trabalho que absorveu.

Ao tratar da venda da força de trabalho, supomos seu valor diário = 3 xelins, objetivando-se nessa quantia 6 horas de trabalho. Essa quantidade de trabalho é, portanto necessária para produzir a soma média diária dos meios de subsistência do trabalhador. Se numa hora de trabalho nosso fiandeiro transforma 1.2/3 quilos de algodão em 1.2/2 quilos de fio, 12 é claro que em 6 horas converterá 10 quilos de algodão em 10 quilos de fio. Assim, durante a fiação, absorve o algodão 6 horas de trabalho. O mesmo tempo está representado numa quantidade de ouro com o valor de 3 xelins. Com a fiação, acrescenta-se ao algodão um valor de 3 xelins.

Vejamos agora o valor total do produto, os 10 quilos de fio. Neles se incorporaram 2.1/2 dias de trabalho, dos quais 2 se contêm no algodão e na substância consumida do fuso e ½ foi absorvido durante o processo de fiação. Esses 2.1/2 dias de trabalho correspondem a uma quantidade de ouro equivalente a 15 xelins. O preço adequado ao valor dos 10 quilos de fio é, portanto 15 xelins, e o de um quilo de fio, 1 xelim e 6 pence.

Nosso capitalista fica perplexo. O valor do produto é igual ao do capital adiantado. O valor adiantado não cresceu, não produziu excedente (mais valia), o dinheiro não se transformou em capital. O preço dos 10 quilos de fio é 15 xelins e essa quantia foi gasta no mercado com os elementos constitutivos do produto ou, o que é o mesmo, com os fatores do processo de trabalho: 10 xelins com algodão, 2 xelins com a parte consumida do fuso e 3 xelins com a força de trabalho. Pouco importa o valor agregado do fio, pois é apenas a soma dos valores existentes antes no algodão, no fuso e na força de trabalho, e dessa mera adição de valores existentes não pode jamais surgir mais valia. 13 Esses valores estão agora concentrados numa só coisa, mas já formavam uma unidade na quantidade de 15 xelins antes de ela se distribuir em três compras de mercadorias.

Considerado em si mesmo não há por que estranhar esse resultado. O valor de 1 quilo de fio é 1 xelim e 6 pence e por 10 quilos de fio nosso capitalista teria de pagar no mercado 15 xelins. Tanto faz que compre no mercado, já construída, sua casa particular ou que a mande construir: o modo de aquisição não alterará a quantia de dinheiro que tiver de empregar.
O capitalista, familiarizado com a economia vulgar, dirá provavelmente que adiantou seu dinheiro com a intenção de fazer com ele mais dinheiro. Mas, o caminho do inferno está calçado de boas intenções, e ele podia ter até a intenção de fazer dinheiro, sem nada produzir.14 Ameaça. Não o embrulharão de novo. Futuramente comprará a mercadoria pronta no mercado, em vez de fabricá-la. Mas se todos os seus colegas capitalistas fizerem o mesmo, como achar mercadoria para comprar? Não pode comer seu dinheiro. Resolve doutrinar. Sua abstinência deve ser levada em consideração. Podia ter esbanjado em prazeres seus 15 xelins. Ao invés disso, consumiu-os produtivamente, transformando-os em fio. Reparamos, entretanto, que tem agora fio em vez de remorsos. Que não se deixe dominar pela tentação de entesourar, pois já vimos a que resultados leva o ascetismo do entesourador. Além disso, o rei perde seus direitos onde nada existe. Qualquer que seja o mérito de sua renúncia, nada existe para remunerá-la, uma vez que o valor do produto que sai do processo apenas iguala a soma dos valores das mercadorias que nele entraram. Que ele se console com a idéia de a virtude ser a recompensa da virtude. Mas não, ele se torna importuno. O fio não tem para ele nenhuma utilidade. Produziu-o para vender. Se assim é, que o venda, ou melhor, ainda, que doravante só produza coisas para o próprio consumo, receita que MacCulloch,

O médico da família, já lhe prescrevera como infalível contra a epidemia da superprodução. O capitalista se lança ao ataque. Poderia o trabalhador construir fábricas no ar, produzir mercadorias? Não lhe forneceu ele os elementos materiais, sem os quais não lhe teria sido possível materializar seu trabalho? Sendo a maioria da sociedade constituída dos que nada possuem, não prestou ele um serviço inestimável à sociedade com seus meios de produção, seu algodão e seus fusos, e ao próprio trabalhador, a quem forneceu ainda os meios de subsistência? Não deve ele computar todo esse serviço? Mas, reparamos, não lhe compensou o trabalhador ao converter o algodão e o fuso em fio? Além disso, não se trata aqui de serviço.15 Serviço nada mais é que o efeito útil de um valor-de-uso, mercadoria ou trabalho. 16 Trata-se aqui de valor-de-troca. O capitalista pagou ao trabalhador o valor de 3 xelins. O trabalhador devolveu-lhe um equivalente exato no valor de 3 xelins, acrescido ao algodão. Valor contra valor. Nosso amigo, até a pouco arrogante,, assume subitamente a atitude modesta do seu próprio trabalhador. Não trabalhou ele, não realizou o trabalho de vigiar e de superintender o fiandeiro? Não constitui valor esse trabalho? Mas, seu capataz e seu gerente encolhem os ombros. Entrementes, nosso capitalista recobra sua fisionomia costumeira com um sorriso jovial. Com toda aquela ladainha, estava apenas se divertindo às nossas custas. Não daria um centavo por ela. Deixa esses e outros subterfúgios e embustes por conta dos professores de economia, especialmente pagos para isso. Ele é um homem prático que nem sempre pondera o que diz fora do negócio, mas sabe o que faz dentro dele.

Examinemos o assunto mais de perto. O valor diário da força de trabalho importava em 3 xelins, pois nela se materializa meio dia de trabalho, isto é, custam meio dia de trabalho os meios de subsistência quotidianamente necessários para produzir a força de trabalho. Mas, o trabalho pretérito que se materializa na força de trabalho e o trabalho vivo que ela pode realizar, os custos diários de sua produção e o trabalho que ela despende são duas grandezas inteiramente diversas. A primeira grandeza determina seu valor-de-troca, a segunda constitui seu valor-de-uso. Por ser necessário meio dia de trabalho para a manutenção do trabalhador durante 24 horas, não se infira que este está impedido de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho são, portanto duas magnitudes distintas. O capitalista tinha em vista essa diferença de valor quando comprou a força de trabalho. A propriedade útil desta, de fazer fios ou sapatos, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor, tem de ser despendido em forma útil. Mas, o decisivo foi o valor-de-uso específico da força de trabalho, o qual consiste em ser ela fonte de valor e de mais valor que o que tem. Este é o serviço específico que o capitalista dela espera. E ele procede no caso de acordo com as leis eternas da troca de mercadorias. Na realidade, o vendedor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor-de-troca e aliena seu valor-de-uso. Não pode receber um, sem transferir o outro. O valor-de-uso do óleo vendido não pertence ao comerciante que o vendeu, e o valor-de-uso da força de trabalho, o próprio trabalho, tampouco pertence a seu vendedor. O possuidor do dinheiro pagou o valor diário da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, o uso dela durante o dia, o trabalho de uma jornada inteira. A manutenção quotidiana da força de trabalho custa apenas meia jornada, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar uma jornada inteira, e o valor que sua utilização cria num dia é o dobro do próprio valor-de-troca. Isto é uma grande felicidade para o comprador, sem constituir injustiça contra o vendedor.

Nosso capitalista previu a situação que o faz sorrir. Por isso, o trabalhador encontra na oficina os meios de produção não para um processo de trabalho de seis horas, mas de doze. Se 10 quilos de algodão absorvem 6 horas de trabalho e se transformam em 10 quilos de fio, 20 quilos de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se converterão em 20 quilos de fio. Examinemos o produto do processo de trabalho prolongado. Nos 20 quilos de fio estão materializados agora 5 dias de trabalho, dos quais 4 no algodão e na porção consumida do fuso, e 1 absorvido pelo algodão durante a fiação. A expressão em ouro de 5 dias de trabalho é 30 xelins. Este é o preço de 20 quilos de fio. 1 quilo de fio custa agora, como dantes, 1 xelim e 6 pence. Mas a soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importa em 27 xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassa de 1/9 o valor antecipado para sua produção. Desse modo, 27 xelins se transformaram em 30 xelins. Criou-se uma mais valia de 3 xelins. Consumou-se finalmente o truque; o dinheiro se transformou em capital.

Satisfizeram-se todas as condições do problema e não se violaram as leis que regem a troca de mercadorias. Trocou-se equivalente por equivalente. Como comprador, o capitalista pagou toda mercadoria pelo valor, algodão, fuso, força de trabalho. E fez o que faz qualquer outro comprador de mercadoria. Consumiu seu valor-de-uso. Do processo de consumo da força de trabalho, ao mesmo tempo processo de produção de mercadoria, resultaram 20 quilos de fio com um valor de 30 xelins. O capitalista, depois de ter comprado mercadoria, volta ao mercado para vender mercadoria. Vende o quilo de fio por 1 xelim e 6 pence, nem um centavo acima ou abaixo de seu valor. Tira, contudo, da circulação 3 xelins mais do que nela lançou. Essa metamorfose, a transformação de seu dinheiro em capital, sucede na esfera da circulação e não sucede nela. Por intermédio da circulação, por depender da compra da força de trabalho no mercado. Fora da circulação, por esta servir apenas para se chegar à produção da mais valia, que ocorre na esfera da produção. E assim “tudo que acontece é o melhor que pode acontecer no melhor dos mundos possíveis”.

Ao converter dinheiro em mercadorias que servem de elementos materiais de novo produto ou de fatores do processo de trabalho e ao incorporar força de trabalho viva à materialidade morta desses elementos, transforma valor, trabalho pretérito, materializado, morto, em capital, em valor que se amplia, um monstro animado que começa a “trabalhar”, como se tivesse o diabo no corpo.

Comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais valia, veremos que o segundo só difere do primeiro por se prolongar além de certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais valia (valor excedente).

Se comparamos o processo de produzir valor com o processo de trabalho, verificaremos que este consiste no trabalho útil que produz valores-de-uso. A atividade neste processo é considerada qualitativamente, em sua espécie particular, segundo seu objetivo e conteúdo. Mas, quando se cogita da produção de valor, o mesmo processo de trabalho é considerado apenas sob o aspecto quantitativo. Só importa o tempo que o trabalhador leva para executar a operação ou o período durante o qual a força de trabalho é gasta utilmente. Também as mercadorias que entram no processo de trabalho não são mais vistas como elementos materiais da força de trabalho, adequados aos fins estabelecidos e com funções determinadas. São consideradas quantidades determinadas de trabalho materializado. Contido nos meios de produção ou acrescentado pela força de trabalho, só se computa o trabalho de acordo com sua duração, em horas, dias etc.

Mas, quando se mede o tempo de trabalho aplicado na produção de um valor-de-uso, só se considera o tempo de trabalho socialmente necessário. Isto envolve muitas coisas. A força de trabalho deve funcionar em condições normais. Se o instrumento de trabalho socialmente dominante na fiação é a máquina de fiar, não se deve pôr nas mãos do trabalhador uma roda de fiar. O trabalhador deve receber algodão de qualidade normal e não refugo que se parte a todo instante. Em ambos os casos gastaria ele mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um quilo de fio, e esse tempo excedente não geraria valor nem dinheiro. A normalidade dos fatores materiais do trabalho não depende do trabalhador, mas do capitalista. Outra condição é a normalidade da própria força de trabalho. Deve possuir o grau médio de habilidade, destreza e rapidez reinantes na especialidade em que se aplica. Mas, nosso capitalista comprou no mercado força de trabalho de qualidade normal. Essa força tem de ser gasta conforme a quantidade média de esforço estabelecida pelo costume, de acordo com o grau de intensidade socialmente usual. O capitalista está cuidadosamente atento a isto, e zela também por que não se passe o tempo sem trabalho.

Comprou a força de trabalho por prazo determinado. Empenha-se por ter o que é seu. Não quer ser roubado. Finalmente, e para isso tem ele seu código penal particular, não deve ocorrer nenhum consumo impróprio de matéria-prima e de instrumental, pois material ou instrumentos desperdiçados significam quantidades supêrfluamente despendidas de trabalho materializado, não sendo portanto consideradas nem incluídas na produção de valor.17

Vemos que a diferença estabelecida, através da análise da mercadoria, entre o trabalho que produz valor-de-uso e o trabalho que produz valor se manifesta agora sob a forma de dois aspectos distintos do processo de produção.

O processo de produção, quando unidade do processo de trabalho e do processo de produzir valor, é processo de produção de mercadorias; quando unidade do processo de trabalho e do processo de produzir mais valia, é processo capitalista de produção, forma capitalista da produção de mercadorias.

Observamos anteriormente que não importa ao processo de criação da mais valia que o trabalho de que se apossa o capitalista seja trabalho simples, trabalho social médio, ou trabalho mais complexo, de peso específico superior. Confrontado com o trabalho social médio, o trabalho que se considera superior, mais complexo, é dispêndio de força de trabalho formada com custos mais altos, que requer mais tempo de trabalho para ser produzida, tendo, por isso, valor mais elevado que a força de trabalho simples. Quando o valor da força de trabalho é mais elevado, emprega-se ela em trabalho superior e materializa-se, no mesmo espaço de tempo, em valores proporcionalmente mais elevados. Qualquer que seja a diferença fundamental entre o trabalho do fiandeiro e o do ourives, à parte do trabalho deste artífice com a qual apenas cobre o valor da própria força de trabalho não se distingue qualitativamente da parte adicional com que produz mais valia. A mais valia se origina de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho, tanto no processo de produção de fios, quanto no processo de produção de artigos de ourivesaria.18

Ademais, em todo processo de produzir valor, o trabalho superior tem de ser reduzido a trabalho social médio, por exemplo, um dia de trabalho superior a x dias de trabalho simples.19 Evita-se uma operação supérflua e facilita a análise, admitindo-se que o trabalhador empregado pelo capital executa trabalho simples, ao mesmo tempo trabalho social médio.

Notas

1 existentes em pequena quantidade, sem depender em nada do ser humano, parece serem forneci¬dos pela natureza do mesmo modo que se dá a um jovem uma pequena soma para pô-lo no caminho da diligência e do enriqueci¬mento” (James Steuart, “Principles of Pollt. Econ.,” ed. Dublin, 1710, v. 1, p. 116).

2 “A razão é ao mesmo tempo astuta e poderosa. A astúcia consiste, sobretudo na atividade mediadora, que, fazendo as coisas atuarem umas sobre as outras e se desgastarem reciprocamente, sem inter¬ferir diretamente nesse processo, leva a cabo apenas os próprios fins da razão” (Hegel, “Enzyklópadie,” Erster Teil, “Die. Logik,” Berlim, 1840, p. 382).

3 Ganilh em sua obra, pobre sob outros aspectos, “Théorie de l’Écon. Polit.,” Paris, 1915, enumera judiciosamente, em resposta aos fisiocratas, a longa série de processos de trabalho que constituem condição prévia para a existência da agricultura propriamente dita.

4 Em “Reflexions sur la Formation et la Distribution das Richesses,” 1766, Turgot discorre bem sobre a importância do animal domestica¬do para os primórdios da cultura da terra.

5 De todas as mercadorias são as de luxo, no sentido estrito, as menos importantes para a comparação tecnológica das diferentes épocas de produção.
5a Nota da 2.ª edição. Por escasso que seja o conhecimento revelado até agora pela historiografia a respeito do desenvolvimento da produção material que é o fundamento de toda vida social e, em conseqüência, da verdadeira história, pelo menos dividiu ela o tempo pré-histórico, utilizando as pesquisas da ciência natural e não a investigação histórica. Distinguiram-se, desse modo, na pré-história, a idade da pedra, a do bronze e a do ferro, de acordo com o material dos instrumentos de trabalho e das armas.

6 Parece um paradoxo, por exemplo, considerar o peixe que ainda não foi pescado meio de produção da pesca. Mas, até hoje não se inventou a arte de pescar em águas onde não haja peixes.

7 Essa conceituação de trabalho produtivo, derivada apenas do pro¬cesso de trabalho, não é de modo nenhum adequada ao processo de produção capitalista.

8 Storch distingue entre “matière”, a matéria-prima propriamente dita, e “materiaux,” os materiais acessórios; Cherbuliez chama os materiais acessórios “matières instrumentales.”

9 Coronel Torrens parte desse sólido fundamento, a pedra do selvagem, para descobrir a origem do capital. “Na primeira pedra que o selvagem atira ao animal bravio que persegue, no pau que apanha para derrubar a fruta que pende acima do seu alcance, vemos a apropriação de um objeto para o fim de obter outro e descobrirmos assim a origem do capital” (R. Torrens, “An Essay on the Production of Wealth etc.,” págs. 70, 71). Provavelmente aquele pau (em alemão, Stock) serve também para explicar por que stock em inglês é sinônimo de capital.

10 “Ocorre à apropriação dos produtos antes de se transformarem em capital; essa transformação não os livra daquela apropriação” (Cherbuliez, “Richesse ou Pauvreté,” édit. Paris, 1841, p. 54). “Ao vender seu trabalho por determinada quantidade de meios de subsistência, renuncia o proletário a qualquer direito de participar no produto. A apropriação dos produtos continua como era antes; não se modifica com o ajuste que mencionamos. O produto pertence exclusivamente ao capitalista que forneceu a matéria-prima e os meios de subsistência do trabalhador. É uma conseqüência rigorosa da lei da apropriação cujo principio fundamental era, ao contrário, o direito de propriedade exclusiva de cada trabalhador ao produto de seu trabalho” (ob. cit., p. 58). “Quando os trabalhadores recebem salários por seu trabalho, é o capitalista o possuidor não só do capital” (o autor quer dizer meios de produção) “mas também do trabalho. Se, como é costume, se inclui no termo capital o que se paga em salários, é absurdo falar de trabalho separadamente de capital. A palavra capital assim empregada compreende ambos, trabalho e capital” (James Mill, “Elements of Pol. Econ. Etc.,” págs. 70, 71).

11 “Influi no valor das mercadorias, além do trabalho nelas imediatamente aplicado, aquele que se empregou nos implementos, ferra¬mentas e edifícios com os quais se torna possível o trabalho imediatamente aplicado” (Ricardo, ob. cit., p. 16).

12 Os dados são arbitrários.

13 Esta é a proposição fundamental em que se baseia a doutrina fisiocrática da improdutividade de todo trabalho não agrícola; o economista ortodoxo não pode refutá-la. “Essa maneira de agregar numa coisa os valores de várias outras,”(acrescentar, por exemplo, à fibra de linho o custo de manutenção do tecelão) “de superpor, em camadas, diversos valores, formando um só, faz este crescer na medida dos acréscimos… A palavra adição designa muito bem o modo como se forma o preço dos produtos do trabalho; esse preço é apenas a soma de vários valores consumidos e acumulados; mas, adicionar não é multiplicar” (Mercier de la Rivière, ob. cit., p. 599).
14 De 1844 a 1847 retirou o capitalista parte do seu capital de negócios produtivos para especular em ações de empresas ferroviárias. Ao tempo da guerra de Secessão americana, fechou sua fábrica, lançando o trabalhador no olho da rua, para jogar na bolsa de algodão de Liverpool.

15 “Que se exaltem, se adornem e se ataviem… Quem toma mais ou algo melhor do que dá, pratica usura, e não presta serviço, mas causa prejuízo a seu próximo, como se tivesse furtado ou roubado. Nem tudo que se chama de serviço e favor é serviço e. favor ao próximo. Um adúltero e uma adúltera se prestam reciprocamente grande serviço e se dão mútuo prazer. Um cavaleiro presta um grande serviço ao incendiário e assassino, ajudando-o a roubar nas estradas, a pilhar terras e gentes. Os papistas prestam aos nossos um grande serviço, quando em vez de afogar, queimar, assassinar todos, ou pólos a apodrecerem nas prisões, deixam alguns viverem, desterrando-os ou despojando-os de seus haveres. O próprio diabo presta a seus seguidores grande, inestimável serviço… Em resumo, está o mundo cheio de serviços e favores consideráveis, excelentes e diários” (Martln Luther, “An die Pfarrherrn, wider den Wucher zu predigen etc.,” Wittenberg, 1540).

16 Em “Contribuição a Critica da Econ. Pol.,” p. 14, fiz sobre o assunto a seguinte observação: Compreende-se o “serviço” que a categoria “serviço” deve prestar a certa espécie de economistas como J. E. Say e F. Bastlat.

17 Esta é uma das circunstâncias que encarecem a produção baseada na escravatura. O trabalhador ai, segundo a expressão acertada dos antigos, se distingue do animal, instrumento capaz de articular sono, e do instrumento inanimado de trabalho, instrumento mudo, por ser instrumento dotado de linguagem. Mas, o trabalhador faz o animal e os instrumentos sentirem que ele não é seu semelhante, mas um ser humano. Cria para si mesmo a consciência dessa diferença, maltratando-os e destruindo-os passionalmente. Constitui por isso principio econômico só empregar, na produção escravista, os instrumentos de trabalho mais rudes, mais grosseiros, difíceis de serem estragados em virtude de sua rusticidade primária. Até à eclosão da Guerra de Secessão, encontravam-se nos estados escravocratas banhados pelo Golfo do México arados construídos segundo velho estilo chinês, que fuçavam a terra como um porco ou uma toupeira, sem fendê-la nem revirá-la. Vide J. E. Cairnes, “The Slave Power,” Londres, 1862, págs. 46 e segs. Em seu livro “Seabord Slave States,” [págs. 46, 47], diz Olmsted: “Mostraram-me aqui instrumentos que ninguém entre nós, no uso normal de sua razão, poria n’as mãos de um trabalhador a quem pagasse salário. Na minha opinião, o peso excessivo e a rusticidade deles tornam o trabalho, pelo menos, dez por cento mais difícil do que seria, se executado com os instrumentos que utilizamos. Asseguraram-me que, em face do modo negligente e inepto como os escravos os utilizam, seria mau negócio fornecer-lhes algo mais leve ou menos tosco, e que instrumentos como os que confiamos aos nossos trabalhadores, para nosso proveito, não dura¬riam um dia nos campos de trigo da Virgínia, embora a terra seja mais leve e maio livre de pedras que a nossa. Do mesmo modo, quando perguntei por que nas fazendas substituíam geralmente os cavalos por mulas, a primeira razão apresentada e a mais convincente foi a de que os cavalos não podem suportar o tratamento que lhes costumam infligir os negros. Em pouco tempo arruínam ou aleijam os cavalos, enquanto as mulas agüentam as bordoadas e a falta ocasional de uma ou duas rações, sem prejuízo para seu esta¬do físico. Não se resfriam, nem adoecem, quando não cuidam delas ou as submetem à estafa. Não preciso ir além da janela do quarto onde estou escrevendo para ver, quase a qualquer hora, o gado ser tratado de modo que levaria qualquer fazendeiro do Norte a despe¬dir imediatamente o vaqueiro.”

18 A diferença entre trabalho superior e simples, entre trabalho qualificado e não qualificado decorre, em parte, de meras ilusões, ou pelo menos de distinções que cessaram de ser reais, mas sobrevivem convencionalmente, por tradição; em parte, se origina também da situação precária de certas camadas da classe, trabalhadora, situação que as impede, mais que as outras, de reivindicarem e obterem o valor de sua força de trabalho. Circunstâncias fortuitas desempenham no caso papel tão importante que esses dois gêneros de trabalho chegam a trocar de posição. Onde, por exemplo, a substância física da classe trabalhadora está enfraquecida e relativamente esgotada, como nos países de produção capitalista desenvolvida, os trabalhos brutais que exigem muita força muscular são considerados superiores a muitos trabalhos mais refinados, que são rebaixados ao nível de trabalho simples. Na Inglaterra, um pedreiro ocupa uma posição superior á de um tecedor de damasco; já o trabalho de um aparador de veludo é considerado simples, embora exija grande esforço físico e seja nocivo á saúde. Além disso, não devemos supor que o trabalho superior, qualificado, represente grande proporção do trabalho nacional. Laing estima que mais de 11 milhões de. pessoas vivem de trabalho simples, na Inglaterra e no País de Gales. Desconta um milhão de aristocratas e um milhão e meio de indigentes, vagabundos, criminosos, prostitutas etc. da população de 18 milhões que existia ao publicar-se sua obra, ficando 4650 000 para a classe média. Nesta inclui pessoas que vivem de pequenos Investimentos funcionários, artistas, professores etc. Para chegar a esses 4.2/3 milhões, considera parte trabalhadora da classe média, além de banqueiros etc., todos os trabalhadores de fábrica melhor remunerados. Neste grupo incluiu também os pedreiros. Restaram-lhe, então os referidos 11 milhões (S. Laing, “National Distreas etc.,” Londres, 1844, [págs. 49 a 52 passim]). “A grande classe que só dispõe de trabalho comum para dar em troca de alimento, constitui a grande maioria da população” (James Mill, no artigo “Colony”, “Supplement to the Encyclop. Brlt. ,“ 1831).

19 “Quando se fala de trabalho como medida de valor, subentende¬se necessariamente uma espécie determinada de trabalho.., sendo fácil de averiguar a proporção em que se encontra em relação às outras espécies” ([J. Cazenove], “Outlines of Polit. Economy,” Lon¬dres, 1832, págs. 22, 23).