O mais recente malabarismo da mídia para mitigar a denúncia do ex-diretor da área Internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, um dos delatores da Operação Lava Jato, contra o governo tucano do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) é um clássico do gênero.

A forma como o caso foi descoberto é um escândalo dentro do escândalo. Foi preciso a apreensão de documentos no gabinete do senador Delcídio Amaral (PT-MS), um ex-tucano de carteirinha, para que se soubesse do assunto – mais uma demonstração da esculhambação em que se transformou o tráfico de informações no grupo comandado pelo juiz Sérgio Moro. Cerveró afirmou que a venda da empresa petrolífera Pérez Companc envolveu uma propina ao governo FHC de US$ 100 milhões. As respostas furadas do ex-presidente ganharam mais destaques nas manchetes da mídia do que o fato em si.

Com esse episódio é possível ver com mais precisão o que existe por trás do denuncismo contra o governo da presidenta Dilma Rousseff e contra o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva para cassar seu direito de ser candidato em 2018. O que constitui bom momento para tentar entender, de uma vez por todas, o que significa a luta política no Brasil. Nunca se viu no país um governo tomar uma série de medidas tão duras contra a corrupção. Isso é fato, não slogan. Como diz o povo, é só olhar e ver. Goste-se ou não do governo Dilma, é impossível deixar de reconhecer o ineditismo da situação. Mas isso, para a mídia e a direita em geral, não conta. Ou seja: esconder informações é uma forma de lidar com questões que, uma vez saídas das sombras, virariam navalha em suas próprias carnes.

Dois ciclos políticos

Rezam os usos e costumes brasileiros, porém, que a corrupção é a essência da atividade política no Brasil. Fora do âmbito do barulho estridente da oposição, no entanto, existe uma constatação que pode ser útil: o mundo, ao contrário do tom empregado pela mídia, não vai acabar. O Brasil vai provavelmente enfrentar, sim, uma forte crise de confiança política, cuja extensão só se saberá com o correr dos dias e que atinge a esquerda no peito. Mas reveses das bandeiras progressistas, por mais desagradáveis que sejam, fazem parte da história da humanidade. O que precisa ser examinado, o quanto antes, é o alcance dessa crise. Em todos os países, a luta de classes sempre flutua. Ora cresce muito, ora cresce pouco, ora não cresce nada, ora diminui. Não esqueçamos, no entanto, que a flutuação da luta de classes é resultado das flutuações econômicas, os ciclos inelutáveis.

Essas práticas têm muito a ver com a transformação do capitalismo na América Latina nos anos da “era neoliberal”. Nessa “era”, pelo menos dois ciclos políticos se cumpriram. O primeiro foi o lançamento do novo projeto hegemônico, marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e liderado por Augusto Pinochet (Chile), Calos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Andrés Perez (Venezuela), Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Perseguidos pela lei — alguns ainda estão foragidos —, eles foram substituídos, num segundo ciclo também marcado pela condução anglo-saxã (desta vez com Bill Clinton e Tony Blair), por presidentes mais precavidos — chegaram a mudar a lei, com fez FHC, para criar proteções em caso de serem levados aos tribunais —, mas igualmente nefastos.

Esse pano de fundo das crises políticas aparece com nitidez quando olhamos para nossa história. Lembremos que o domínio da elite brasileira nunca foi um passeio político. Se ficarmos só na República, há o ascenso operário do início do século XX, a resistência dos tenentes, a Revolução de 1930, a insurreição de 1935 e o conflito entre “ortodoxos” e desenvolvimentistas inaugurado com a “Era Vargas”. Getúlio Vargas dizia, sem pejo, de “espoliação” e da luta do Brasil contra os “trustes internacionais”. Quando a tática de conciliação com a UDN ruiu, em meados de 1952 — o partido já havia tentado impedir a posse de Vargas, em 1950 —, o jornalista e militante anti-getulista Carlos Lacerda começou a liderar uma cruzada reacionária em larga escala.

Réplica enérgica

No Brasil de hoje, igualmente, cada crise é tratada como a última e definitiva. É como se não houvesse vida pós-crise, por maiores que sejam as provas em contrário. A mídia e sua laia da oposição repetem aquelas pirotecnias anti-getulista da UDN. Na ocasião, houve uma tragédia: o suicídio de Getúlio Vargas. Hoje, o que se repete é a farsa. Para essa gente, o Brasil é uma terra de horrores 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano. Pertencem ao país todos os recordes mundiais de estatísticas calamitosas. Faça um teste: examine a primeira página de hoje do jornal mais perto de você. Não é o caso de dizer que se conta uma mentira depois da outra. O problema é que se conta uma parte e não o todo. E o resultado é uma história distorcida, alicerçada em números e dados saídos freqüentemente sabe-Deus-de-onde, fornecidos pelo ativo tráfico de informações que a corrupção midiática instaurou como método de luta política.

A pergunta aqui é: existe alguém meio honesto? Essa forma facciosa de ver as coisas contribui para que se tenha uma imagem do país que às vezes nada tem a ver com a realidade. Porque a realidade certamente levaria a outros movimentos políticos. A República brasileira consolidou uma nova correlação das classes que partilham entre si o poder. A tentativa conciliadora inicial entre as aspirações da burguesia e as do latifúndio, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto.

Os florianistas se consideravam, com razão, os “revolucionários” do novo regime. Eram os burgueses e pequeno-burgueses radicais, predominantes nas cidades, sobretudo no Rio de Janeiro. Foram eles que, pela boca de Floriano Peixoto, inebriados pela vitória, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Substituiu o impulsivo Floriano Peixoto o “moderado” Prudente de Morais. Ele era o retrato perfeito da conciliação escandalosa entre a burguesia e o latifúndio. O “moderado” foi impiedoso ao esmagar a revolta camponesa de Canudos. O historiador Pedro Calmon escreveu: “O país varrera de si a fantasia dos dogmas franceses (…). Submerge a República teórica, que não fora exequível, e se impõe a Republica que podemos ter.”

Marca da maldade

Esse é um fato da maior importância na história da República. E compreendê-lo é compreender o atual capítulo decisivo da nossa história. Prudente de Morais era o símbolo da restauração das posições políticas perdidas pelo latifúndio. Hoje, o que se fala no Brasil é do papel progressista do desenvolvimento do capitalismo com feição nacional. Defende-se um mercado interno com consumidores de bens de consumo e matérias primas. Ninguém está pregando um deslocamento de classe no poder. Mas isso basta para que o setor desenvolvimentista do governo seja duramente golpeado.

No fundo, querem trazer de volta a política que o Brasil ajudou a despachar da região sul-americana, com expressões de pesar e desapontamento da mídia, para a vala comum onde jazem as carcomidas idéias neoliberais que no passado recente floresceram na região. Por aqui, a maior parte do encanto com o neoliberalismo já se desfez há tempos, moído por índices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na política. Com o tenebroso desfile público das práticas de gangsterismo que se sucederam em volta desses governos, os povos da região deram demonstrações de não querem mais ver seus países no balaio geral de roubalheira, irresponsabilidade e primitivismo que marcaram as políticas neoliberais. São práticas que fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.

Mas a verdadeira marca da maldade está impressa no DNA dessa gente. Infelizmente, a democracia do jeito que ela é entendida e praticada atualmente em boa parte do mundo abre as portas para todo tipo de aventureiro, impostor ou gângster que queira se aproveitar dela para impor seus desatinos. O resultado de tantas deformações é que essa gente acha que a vida pública deve ser uma vasta operação comercial. É o sistema que gera essa gente, da mesma maneira que a água parada gera o mosquito da dengue. Um sistema alicerçado na mídia, comandada pelos que chegaram onde chegaram por virtude de batistério, por habilidades (não por habilitações), pela politiquice ou pela correnteza das ascensões por bajulação aos poderosos de plantão.