Quem tem muito, logo, logo,
Muito mais vai ter ainda.
Quem tem pouco, até o pouco
Perde e fica na berlinda.
Heinrich Heine (“Weltlauf”, 1851)

Movimentações para um macro-golpe contra a democracia brasileira já estão em pleno curso, como aliás ocorre ciclicamente nesta seção periférica do capitalismo global. No Brasil, quase sempre, à esquerda e à direita, confundimos a ideia de democracia com o respeito à soberana e livre vontade das urnas. Daí chamarmos “golpe” um ataque que demova do poder o governante democraticamente eleito. Se a garantia fundamental de exercício pleno da vontade popular é um aspecto decisivo da vida democrática, entretanto, ela é apenas um dos sustentáculos de uma construção muito maior, que tem a ver com a existência de uma nação soberana, que funciona por meio de mecanismos institucionais em suporte ao equilíbrio, à justeza e à racionalidade de direitos e deveres que cabem às diversas classes e grupos sociais. A democracia, portanto, mais do que a garantia do voto, diz respeito à garantia de uma certa dinâmica de correção contínua das desigualdades sociais numa dada materialidade histórica. O quiproquó do momento é que, sem sustentar o aspecto eleitoral, ou seja, o mandato legítimo da Presidenta Dilma, o macro-golpe se consumará com mais velocidade e intensidade sobre as camadas mais fragilizadas da população. Há quem não tenha entendido isso, ou tenha dificuldade para defender o Governo diante de ajustes amargos. Mas é preciso manter-se firme na defesa da legalidade para que se mantenha a esperança, ainda que futura, de radicalização da democracia brasileira, em sentido amplo. 
É escusado demonstrar com dados e exemplos que esta noção ampla de democracia, nos últimos tempos (ao menos dois ou três anos), vem sendo violentada de maneira cínica e explícita por diversos agentes sociais a serviço dos graúdos do Capital: o Congresso Nacional mais retrógrado desde 1964; a mídia vendida aos interesses do grande capital financeiro; instâncias policiais e judiciais para lá de partidarizadas; uma elite ressentida, estúpida e espúria que ainda vive com um esquema de afetos a funcionar como se na Casa-grande estivesse. Para nenhum desses grupos a democracia de verdade vale alguma coisa e, para golpeá-la em favor de seus interesses, vale tudo. Até, e principalmente, o ancestral e brasileiríssimo “pega-pra-capar”. Note-se por exemplo a sanha hipócrita com que reagiram os Congressistas à recente proposta do Governo de recriação da CPMF, que atinge equanimemente a verticalidade do tecido social e ainda dificulta a sonegação.
Ao longo de sua história, o Brasil conheceu momentos de intensificação democrática, geralmente ocasionados por pactos interclassistas, que sempre se alternaram, entretanto, com retrações da democracia, de ruptura dos tais pactos, sob os mais diversos argumentos. Apesar de algum pequeno resíduo de avanço permanecer nesses casos (quase sempre alcançado pela via da concessão), quando se intensificou a racionalidade do modelo republicano brasileiro em favor da correção das desigualdades estruturais da nação, os “donos do poder” tupiniquins fizeram desrecalcar a irracionalidade que lhes sustenta um bom lugar ao sol há muitos séculos. A súmula dessa irracionalidade não é nada democrática: direito não existe e o que vale é o privilégio contra o “abuso” de miseráveis que “não sabem o seu lugar”. Sempre que assoma no horizonte um aceno de agudização do projeto nacional e popular para reequacionar questões profundas da “essência” social brasileira rebelam-se os velhos senhores de escravos, sua corriola, seus capangas, jagunços e agregados infiltrados nas instituições da República e nos veículos da mídia burguesa. Em uníssono disparam a esculhambação geral, injetando medo nas classes médias e vomitando ódio contra os que estão no andar de baixo. Manter os seus históricos privilégios é algo que não consegue sem violência e muito conluio por debaixo dos panos; isto é: o velho e bom fascismo brejeiro e do país.
A “crise econômica” por que passamos hoje é apenas uma expressão local de um grande desconcerto do capitalismo global que já dura alguns anos. No âmbito da cultura verde-e-amarela é mais uma epifania do “pega-pra-capar” contra a ousadia da “mulatada que quer mais direitos”. A crise possui várias dimensões, não tão novas assim. Ela é econômica, é do presidencialismo de coalizão, é de lideranças políticas, é de governabilidade, é do sistema eleitoral. E a chave para a sua compreensão crítica e para a sua superação prática é política: trata-se compreender que ela, a crise, tem o condão de revelar as especificidades da luta de classes à brasileira. É assim que a crise precisa ser vista, caso contrário seremos todos engolidos pelas saídas “técnicas” do economês e pelo golpismo hipócrita dos achacadores vendidos do Congresso, que têm protagonizado a cena dos noticiários. É simples assim: corruptos que querem derrubar quem deixa investigar a corrupção; coroinhas do mercado internacional que querem aproveitar a crise para atropelar direitos e conquistas sociais.
Coloque-se, pois, a luta de classes como grande filtro da leitura da nossa “crise”. Não é difícil perceber que há um grande consenso sobre o fato de que “o Brasil superará a crise”. O consenso não é o mesmo, entretanto, a respeito de quem pagará a conta e qual é o preço dessa conta. Pelo que se viu até aqui em 2015, a escolha do Governo é, em grande medida, pela ortodoxia recessiva. O preço disso é que o macro-golpe do “pega-pra-capar” não será tão cedo superado, pois já todos sabemos que a superação da crise se dará pela suspensão (ou no mínimo desaceleração) do ensaio de projeto desenvolvimentista e nacional popular que se viu nos últimos anos (é claro, consideradas e bem pesadas todas as contradições que não se resolvem em uma década). Um ensaio de projeto para o qual estava pactuada uma certa ideia de crescimento e de sociedade brasileira, que se sustentava no cobertor comprido da bonança internacional. Esse pacto precisa ser refeito e no momento as condições objetivas e subjetivas não parecem disponíveis, porque, encolhido o cobertor, “iô-iô não quer mais pactuar nada”.
Às vezes parece inocente querer crer que houve amadurecimento das instituições e do, por assim dizer, “caráter nacional brasileiro”. Logo caímos nos desmentidos que as redes sociais cada vez mais expõem em ritmo de atacado. Como tratar racionalmente uma República cuja elite desbragadamente usa o irracional como dínamo dos seus interesses e privilégios? Como exigir comprometimento com a salvaguarda da nação a uma elite que age cinicamente, com o agravante de hoje em dia nem sequer precisar fazer o jogo da desfaçatez ideológica. Lembrem o emblemático e bestial lema que empunharam alguns dos verde-amarelistas nas passeatas fascistas de poucos dias atrás: “sonegação não é crime”; é ou não é a quintessência do cinismo de elite brazuca? Nesse diapasão, hoje se diz claramente, e sem vergonha, contra ideias, partidos e movimentos de esquerda: “não, não é só mata; é esfola”. O que desejam é não apenas a queda da presidenta, mas também o linchamento em praça pública da esquerda nacional. Não se iludam alguns incautos que se resguardam no luxo da “decepção”. Não haverá ninguém à esquerda que não saia chamuscado, caso, por exemplo, se leve a termo o vandalismo público do impeachment da Presidenta Dilma. É preciso avaliar os variados graus da derrota para bem agir.
Componha-se ainda esse quadro grave (de tonalidades macabras) com o discurso do tecnicismo econômico, a princípio partilhado (ao menos na aparência) acriticamente por setores do Governo e alguma oposição “boa-praça”, como se essa fosse a reserva técnica de racionalismo que nos restasse para a superação da dita crise. Esse economês isolado, que despreza a política e o valor interpretativo da luta de classes, é, no fundo uma negação da teoria, um rebaixamento da práxis e um caminho auxiliar para o irracionalismo das nossas velhas classes dominantes e da avalanche do grande capital especulativo. Tudo travestido de bom-senso matemático. Todo aparato liberalóide é jogado na mesa para provar que a culpa é do gasto com (pasmem!) “privilégios para os pobres” (Ah! os liberais!, esses conservadores de férias!). Atraso e novo combinando-se em favor da irracionalidade antidemocrática das elites brasileiras: uma vez mais.
O golpe caminha porque ele, ao menos momentaneamente, aproveitando os abalos da economia global, fez capitular a radicalização do processo democrático que em algum momento se anunciou na disputa eleitoral de 2014. Os pontos dessa velha disputa, na atual partida, por enquanto, contam a favor da ânsia em superar a crise e “acalmar o mercado” contra o aprofundamento democrático que poderia ser atingido com esperanças por ora adiadas. Esperanças tais como: uma reforma política e eleitoral decente, com uma reforma tributária e fiscal que não fosse de emergência e atacasse desigualdades estruturais, com reformulações do pensamento a respeito do meio-ambiente e das cidades, com a reforma agrária ampla e necessária para a dignidade das famílias do campo, entre tantas outras coisas. O “inevitável” (para quem? para quê?) arrocho atual e a perda real de salário acelerada são péssimas, mas não são os piores assaltos que o macro-golpe contra a democracia pode produzir aos trabalhadores e aos muito pobres deste país. O que este golpe aborta, feito assim com a velha violência do “pega-pra-capar”, é a possibilidade de intensificação do protagonismo popular nas decisões dos rumos da nação. Esse, caso seja consumado de fato, será um golpe mais profundo na democracia do que aquele que promove a queda de um governo, mas acontecerá em decorrência da fragilização deste Governo. O xadrez é espinhoso, não é para amadores e exige a interferência de quadros políticos de grande habilidade.
Avaliar a contundência desse golpe é levar em conta as velhas e as novas contradições da luta de classes à brasileira nessa estranha quadratura da decadência do capitalismo. Ao que parece, só as forças populares politizadas e organizadas em alto grau de sinergia podem reagir a isso. E elas nunca tiveram uma oportunidade como essa. Ou se organizam e se ordenam para compreender sua posição no processo e intervir no verdadeiro sentido da história brasileira, ou precisarão de boas pernas, para fugir, mais uma vez, ao “pega-pra-capar” violento da sanha senhorial brasileira. 

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). Acaba de lançar o livro de poemas e outros nem tanto assim (7letras, 2015). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.