Desde 2014, entre surpresos, indignados e por fim assustados, acompanhamos uma polarização que extrapola o período eleitoral e se torna crônica. Grupos e segmentos ligados às elites propõem a aniquilação dos adversários, disseminando ódio à melhora de vida dos mais pobres e desprezando os avanços democráticos dos últimos trinta anos.

Com ligações em diversos níveis da sociedade e um complexo midiático ideologicamente articulado, os agentes dessa polarização mobilizam todas as formas de consciência social e, travestindo-a em cobranças por rigor no combate à corrupção, alimentam uma moralidade seletiva para demonizar o Partido dos Trabalhadores e atingir toda a agenda popular democrática. Para tanto, sem critérios de verdade ou razoabilidade, imputam aos adversários mazelas do modelo autoritário, excludente e concentrador produzido pelas elites que lhes dão sustentação.

Dentro desse quadro, num esforço crítico do campo progressista para jogar luz sobre o contexto atual, foram produzidas interpretações sobre a crise política percebida como geradora do quadro de polarização, as quais se agruparam em três macrocenários.

Um, mobilizado pelo tema da corrupção, privilegia a dimensão moral e procura explicar o “antipetismo” em expansão na sociedade. Outro, focalizado na dimensão econômica, envolve temas como o agravamento do quadro recessivo global, a resistência do grande capital à redução das margens rentistas e o esgotamento da inclusão pelo consumo por meio da expansão do mercado interno. O terceiro, voltado para a dimensão política, divide-se entre debates sobre o esgotamento do “presidencialismo de coalizão” pós-Constituinte e aqueles ligados à governabilidade, como a “perda do centro”, o erro de promover uma mobilidade consumista e acrítica e as resistências da presidenta ao debate público.

Merecem destaque análises que atribuem a polarização à perda do centro para a direita, ora identificando esse centro com o próprio PMDB, ora com estratos médios decepcionados com o reformismo fraco do petismo governista, descolado de compromissos históricos do campo progressista. E ora, ainda, identificando o centro com uma classe média democrática, porém conservadora, desiludida com o baixo nivelamento moral da política.

Uma convergência entre analistas é a ausência de um “projeto” que aglutine as forças progressistas para além da dualidade continuidade/retornoe da opção pelos pobres e trabalhadores. A outra recorrência é a que pretendemos explorar: a necessidade de interpretar as contradições entre polarização e crescimento econômico, melhora da qualidade de vida e de distribuição de renda nos últimos dez anos.

A dimensão dos avanços econômicos está fartamente evidenciada. Um exemplo é o levantamento “Vinte anos da economia brasileira – 1995-2014”,1 que reúne 73 indicadores que exibem um cenário econômico inédito e virtuoso. Outro é o artigo de Marcio Pochmann2 revelando aumento de renda e salário transversal a todos os segmentos sociais, numa associação inédita entre democracia, crescimento econômico e redução das desigualdades.

Além disso, ainda que sejam inquestionáveis e urgentes as reivindicações por mudanças efetivas na estrutura social brasileira, seus impactos permanecem: o emprego em 2014 atingiu picos históricos; 92% dos reajustes salariais tiveram aumento real; as empresas com ações na Bovespa lucraram em média 46%; os bancos viram seu lucro aumentar quase 30%. Então, por que tal escalada de repúdio a um projeto transversalmente compensador? Por que o crescimento da renda, a oferta de trabalho e a melhora da qualidade de vida se tornaram objeto de ódio?

Para tentar desfazer esse aparente paradoxo, propomos uma troca: em vez de tentar entender a polarização por meio da compreensão da conjuntura da crise política, vamos procurar na própria polarização as explicações para a crise política. Isso é possível quando adotamos a hipótese de que ela é um fenômeno estrutural, recorrente e articulado à conservação de um modelo de dominação política.

É uma hipótese alinhada às teorias que partem da singularidade da integração do Brasil à ordem capitalista e percebem a centralidade do modo de dominação para a compreensão dos nossos processos econômicos e sociais. Assim fazem, por exemplo, Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, em interpretações que envolvem o contexto do golpe militar e seus desdobramentos.3

Deste modo sintetiza Oliveira em seu trabalho seminal Economia brasileira: crítica à razão dualista: “conforme o andamento da análise tratará de demonstrar, as ‘passagens’ de um módulo a outro, de um ciclo a outro ciclo, não são inteligíveis economicamente ‘em si’, em qualquer sistema que se revista de características de dominação social”.4

Nesse sentido, a pretensão deste artigo é refletir sobre as funcionalidades da polarização num modelo repactuado na “abertura” e na redemocratização, dentro de um processo controlado de “negação com assimilação” do “estado de exceção” ditatorial. E ressaltar a importância de esforços como os de Florestan Fernandes, Celso Furtado, Paul Singer, Otávio Ianni, Francisco de Oliveira, Wanderley Guilherme dos Santos, Luiz Werneck Vianna, Maria da Conceição Tavares e certamente do próprio Fernando Henrique Cardoso, entre outros, que nos anos 1960 e 1970 produziam interpretações integradoras das transformações da sociedade brasileira.

Ao analisar temas relacionados ao desenvolvimento, Florestan constata que o conjunto crescimento econômico/instabilidade políticarepresenta um traço essencialda nossa vida social– exemplificado pela forte polarização política do período desenvolvimentista (rebelião paulista em 1932; Estado Novo em 1937; suicídio de Getúlio Vargas em 1954; tentativa de golpe em 1955; renúncia de Jânio Quadros, nova tentativa de golpe e campanha da legalidade em 1961; e golpe militar em 1964).

Dessa forma, propõe um vínculo entre crescimento e instabilidade dentro dos processos de integração do Brasil ao capitalismo a partir de sua base política, de forma que as características assumidas pelo desenvolvimento econômico são condicionadas pelo modo de dominação (nos anos que antecederam ao golpe de 1964, por ajustes entre padrões de dominação oligárquico/rurais e interesses de acumulação empresariais/urbanos). O cimento desses ajustes: o assalariado, substituindo o escravo, como objeto a ser dominado e explorado.5

Por isso, é interessante cotejar o postulado por Florestan com a análise de Róber Iturriet Ávila6 sobre as correlações entre ataques à democracia e ganho real de salários nos anos de 1954, 1964 e 2014. E esta com as análises de Oliveira sobre a centralidade da exploração intensiva do trabalho assalariado na estruturação do nosso modelo urbano industrial de acumulação: “a ampla exploração de sua força de trabalho, fenômeno que está na base da constituição de um seleto mercado para as indústrias dinâmicas ao mesmo tempo que da distribuição desigualitariamente crescente da renda”.7

Concomitantemente, também é oportuno relacionar a polarização atual aos impactos objetivos e subjetivos dos contrastes apontados por estudo do Ipea sobre a evolução da desigualdade de renda: “A quase totalidade dos países apresenta uma taxa anual de crescimento da renda per capita menor do que a observada para os 10% mais pobres brasileiros (7%) […] a percepção dos mais pobres no Brasil é a de estarem vivendo em um país com elevado nível de crescimento econômico, como a China. No outro extremo da distribuição de renda, mais de 70% dos países investigados apresentaram uma taxa anual de crescimento maior do que a observada para os 10% mais ricos brasileiros (1%). A percepção desse grupo, portanto, é de estar vivendo em um país estagnado como o Senegal”.8

Considerando os últimos trinta anos – recessão nos anos 1980, desindustrialização, baixo crescimento e ampliação da desigualdade nos 1990 –, torna-se significativo que é num período de crescimento com redução da desigualdade que surgem as condições para a emergência desse traço essencial da nossa vida social.

Nesse ponto, ganham peso análises que percebem em 2012 uma inflexão nas elites, de resignadas para ativistas da desestabilização política. Quais seriam as novas variáveis da equação?O “ensaio desenvolvimentista” da presidenta Dilma Rousseff? Projeções de ampliação do hiato China-Senegal num contexto de redução de receitas? Implicações entre o modelo de exploração do pré-sal e a preservação dos padrões de acumulação, concentração e dominação?

Uma hipótese seria que, mesmo num “reformismo fraco” sem foco em mudanças estruturais, a convergência de ações pontuais – como políticas de valorização salarial, proteção ao trabalho doméstico, combate intensivo aos trabalhos infantil e análogo ao de escravo, políticas de equidade e universalização de direitos, regionalização da produção cultural e garantia de liberdade na internet etc. – fragilizou o modo de dominação compartilhado pelas elites e por uma “classe média” associada aos seus privilégios.

Essas transformações pontuais dialogam com um quadro de vetores que evidenciam alterações em padrões históricos de concentração regional e exclusão social:

1) convergência dos PIBs estaduais: crescimento do PIB per capita do Nordeste em 3,32% ao ano, superior ao do Sudeste, com 2,05%;

2) desconcentração industrial: emprego desloca-se para oeste, sul, metrópoles do Nordeste e sul da Bahia. Em 1990, cinco das dez microrregiões mais industrializadas em São Paulo; em 2007, apenas duas e nenhuma no Rio de Janeiro;

3) crescimento vigoroso das cidades médias (100 mil a 500 mil habitantes): PIB de 4,43% ao ano, contra 3,65% ao ano do PIB nacional;

4) crescimento puxado pelo consumo dos mais pobres: entre 2002 e 2008, na região Norte foi de 11% e, no Nordeste, de 7,6% – média nacional de 7,4%;

5) queda da desigualdade salarial: em 2002, os 10% mais ricos de regiões metropolitanas ganhavam 1,19 a mais que moradores de cidades médias. Em 2009, esse número caiu para 1,08. Em cidades pequenas, caiu de 1,47 para 1,18;

6) queda nas desigualdades socioeconômicas: Norte e Nordeste apresentam IDH-Ms com crescimento superior à média nacional. Em educação, duas vezes mais que o Sudeste;

7) redução da mobilidade de mão de obra: o fluxo de migrantes tem trajetória descendente;

8) políticas nacionais agindo como política regional: Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Pronaf e Minha Casa Minha Vida têm reflexos diretos na redução das disparidades regionais;

9) diversificação dos investimentos produtivos para a região Nordeste: investimentos do BNDES no Nordeste vão de 7% para 13% em 2012. No Sudeste, diminuem para 46%. Petroquímica, indústria naval, eólica, siderúrgica, ferroviária, de celulose e automobilística se diversificaram e adensam cadeias produtivas nordestinas;

10) políticas de fomento à agricultura familiar: Pronaf pulou de R$ 4,6 bilhões para R$ 11,5 bilhões ao ano. E, depois de 2011, para R$ 13,3 bilhões, num setor que corresponde a 84% dos estabelecimentos e a 74% da mão de obra rural;

11) maior crescimento das vagas no ensino superior (público e privado): as matrículas em cursos de graduação passaram de 1,76 milhão para 5,45 milhões entre 1995 e 2010.9

A hipótese de transformações difusas que impactam as bases de dominação política é reforçada ao explorarmos os alvos da polarização: ataques aos bancos públicos e às estatais; desmonte do sistema de proteção ao trabalho; informações distorcidas sobre políticas sociais e desqualificação dos beneficiários; ódio às políticas de equidade; resistência à democratização da produção cultural e dos meios de comunicação; críticas às regras de conteúdo local, ao modelo de partilha do pré-sal e a uma política externa independente; e restrições à ação indutora e reguladora do Estado.

Dessa forma, surge uma polarização funcional aos beneficiários de padrões concentradores e excludentes que demanda estudos integradores das transformações micro e macrossociais na sociedade brasileira nos últimos trinta anos que atualizem os ajustes entre capital financeiro, capital produtivo e as estruturas de poder. E sugere uma segunda hipótese: a localização do núcleo ideológico de polarização em São Paulo – que perde com a redução da desigualdade e regionalização, irradiando insatisfação aos segmentos locais e globais associados aos seus ganhos políticos e econômicos.

Nesse sentido, caberia explorar como um “Brasil aos Cacos” torna-se funcional para mascarar a falência do modelo de gestão financista vigente há 25 anos em São Paulo: a decadência política/econômica de um estado que perde empregos, perde arrecadação, volta a debater-se com déficits de saúde pública e educação numa estrutura energética e hídrica dos anos 1970, e vê sua participação no PIB reduzir de 33,5% para 25%. Isso torna a polarização também funcional à pretensão de recuperar o Brasil para um projeto econômico fracassado, mas potente no campo da dominação política para reconquistá-lo por meio de uma liderança de verniz “conciliador”.
Por tudo isso, cinquenta anos após o golpe e dispondo de canais democráticos para absorção de tensões e conflitos sociais, tornam-se atuais reflexões como as de Florestan sobre os vínculos funcionais entre polarização e estabilidade política(ungida objeto de devoção como vaca sagrada), providencial justificadora de sacrifícios historicamente manipulados para abortar processos de ampliação de equidade social, política e econômica. E bastante oportuna sua advertência: “ao crescimento econômico não só devem corresponder crises e convulsões políticas mais ou menos violentas; como, se elas forem extirpadas sem a solução conveniente das tensões econômicas, sociais e políticas que lhes são latentes, o crescimento econômico não levará a nada no terreno político”.10

Paulo Augusto André Balthazar é mestre em Ciências Sociais e pesquisador do Núcleo de Ruralidades (CPDA/UFRRJ).

Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil

1  Ver em: .

2  Ver em: .

3  Florestan Fernandes. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. p.134-164; e Francisco de Oliveira. A economia brasileira: crítica à razão dualista. São Paulo: Cebrap, 1972. Disponível em: .

4  Oliveira, op.cit., p.5.

5  Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005. p.247. Oliveira, op.cit., p.37.

6  Ver em: .

7  Oliveira, op.cit., p.5.

8  Ipea, Texto para Discussão n.1460.

9  Ipea, Texto para Discussão n.2054.

10       Ibidem nota 5, p.147.