Acossada por inclementes catástrofes naturais – o temporal no Norte Grande, o incêndio de Valparaíso e a erupção do vulcão Calbuco, ocorridos entre março e abril de 2015 –, desde suas férias de verão, em fevereiro, a presidente chilena Michelle Bachelet tentava conter um terremoto político, cujo efeito demolidor se iguala alegoricamente à devastação causada pelo sismo de Iquique, de abril de 2014: as denúncias do caixa 2 de financiamento de campanhas eleitorais e de sonegação tributária, que até o final de 2014 pareciam circunscritas aos partidos da oposição, de direita (ver “Bachelet fecha 1º ano do segundo mandato com reformas e Conselho contra Corrupção”), mas que atingiram a própria mandatária com o “Caso Caval” – tráfico de influência e demissão do governo de seu filho, Sebastián Dávalos Bachelet –, e um aluvião de denúncias de emissão de notas frias de “prestação de serviços” por parlamentares e ministros do próprio governo em favor de megaempresários sonegadores.

Atingida por “fogo amigo” sobre os rumos supostamente erráticos de seu governo e rumores sobre sua renúncia, a presidente do Chile resolveu “chutar o balde”, demitindo seus 23 ministros, e apostar em uma recomposição que lhe permita retomar a agenda das reformas e reverter a mais baixa aprovação (30%) desde seu primeiro mandato (2006-2010).

A notícia apanhou de surpresa o Chile, quando – em torno das 22h da quarta-feira (6/9) – a presidente confidenciou ao entrevistador Mario Kreutzberger, em seu programa T13 – transmitido pela Canal 13, de propriedade da família Luksic, a mais rica e poderosa do país – que acabara de demitir seus 23 ministros e solicitar um prazo de 72 horas para apresentar seu novo gabinete ministerial (assista aqui ao vídeo da entrevista).

Em seu noticiário de quinta-feira (7/5), a maioria dos meios de comunicação chilenos estranha que Bachelet tenha usado a TV para anunciar a medida, “usando os meios de comunicação para fazer política”. O semanário Cambio21, próximo ao Partido Socialista, carregou nas tintas falando de um “golpe de Bachelet”.

O jornal La Tercera especula que, antes de apresentar-se ao programa de Kreutzberger – que nas semanas anteriores entrevistara os ex-presidentes Ricardo Lagos e Sebastián Piñera sobre a especulativa questão “¿Qué le pasa a Chile?” – no palácio La Moneda, Michelle Bachelet reunira seu comitê político, integrado entre outros pelos ministros Rodrigo Peñailillo (Interior), Alvaro Elizalde (secretário geral do Governo) e Ximena Rincón (secretária geral da Presidência), solicitando-lhes a renúncia, que naquele momento estendia aos demais 20 ministros ausentes. Em seguida, entre as 20h30 e 21h, Ana Lya Uriarte, chefa de gabinete da presidente, teria ligado à maioria dos ausentes, comunicando a decisão de Bachelet.

Crise de confiança

O pano de fundo da súbita decisão divide-se em dois: um dos graves motivos é a implosão da credibilidade da presidente, que enfrenta 64% de rejeição do eleitorado – impaciente com o ritmo acelerado de algumas reformas, ademais mal compreendidas devido à péssima estratégia de comunicação de La Moneda. O outro é o “fogo amigo”, com intensificação das críticas ao modo de condução política da presidente nos casos Caval e SQM.

Caval é o acrônimo da empresa de Natalia Compagnon, nora de Bachelet, que conseguiu um crédito de 10 milhões de dólares do Banco de Chile, negado por todos os bancos anteriormente procurados, mas imediatamente aprovado durante uma reunião solicitada por Andronico Luksic (dono do banco e homem mais rico e poderoso do Chile) com Sebastián Dávalos, marido de Natalia e filho da presidente – que, para agravar a imprudência, em dezembro de 2014 ocupava o cargo de diretor de Assuntos Culturais da Presidência da República, equivalente ao de secretário de Estado.

Caso indiscutível e inaceitável de tráfico de influência. Assim sentenciou a opinião pública quando a denúncia veio a lume, em fevereiro passado. Naqueles dias da alta temporada, Michelle Bachelet veraneava em sua casa às margens do bucólico lago Caburgua, aos pés do vulcão Villarica, acompanhada pelo filho e sua nora.

Mais bombardeada do que questionada, porque não se manifestara já em fevereiro e mantivera esfíngico silêncio sobre o caso durante quase um mês inteiro, a presidente saiu-se com a explicação de que tomara conhecimento do assunto pela imprensa – versão imediatamente rejeitada por 70% dos chilenos. Agora, insistentemente cobrada pelo inquisidor Kreutzberger, a presidente divulgou nova versão: a de que durante suas breves férias isolara-se da capital, sem acesso a jornais e à TV, recebendo apenas informações fragmentárias, e que seus assessores a teriam aconselhado a não interromper suas férias.

Perguntaram-se os chilenos: mas, ali reunidos durante uma semana inteira às margens do Caburgua, presidenta, filho e nora jamais tocaram no assunto? Pior: por que Natalia Compagnon não confirmou que, além de conseguir o crédito usado para um lucrativo negócio de especulação imobiliária, também prestou serviços de consultoria para Andrónico Luksic, desfrutando de alguns cafés da manhã com o magnata? A nora da presidente do Chile prestando consultoria ao mais poderoso império econômico do país?!

De todo modo, o “caso Caval” foi hiperdimensionado, da extrema-direita à extrema-esquerda, e politizado indevidamente para atingir Bachelet, que – correndo o país de norte a sul para marcar presença nos primeiros socorros às vítimas de incêndios, dilúvios e vulcões vomitando lava e cuspindo fumaça – teve a coragem de defender a necessidade das “internas” na disputa prematura do Partido Socialista pela candidatura à sua sucessão, em 2018, saindo em apoio à senadora Isabel Allende e ferindo suscetibilidades de setores conservadores do partido.

SQM, o “fator Peñailillo” e o trem da cooptação transversal

A mais afiada pedra no sapato de Michelle Bachelet é sem dúvida o “caso SQM” ou Soquimich (acrônimo da Sociedad Química y Minera de Chile), que em março explodiu na esteira das investigações do Ministério Público sobre o “caso Caval”, nas primeiras páginas e telas dos meios de comunicação.

Antiga empresa estatizada durante o governo Salvador Allende, que nacionalizara a exploração do salitre, entre 1983 e 1988, no apogeu da ditadura de Augusto Pinochet, a empresa foi reprivatizada sob o comando de Julio Ponce de Lerou, ninguém menos que então genro do general Pinochet, que de resto coordenou a privataria pinochetista em grande escala de empresas estatais, dando assim origem a algumas das novas grandes fortunas do Chile, anualmente citadas pelo ranking da revista Forbes.

Durante a transição democrática, iniciada em 1990, o papel de Ponce de Lerou e a legitimidade de seu controle sobre a SQM jamais foram questionados pelos partidos democráticos, fazendo vistas grossas à maior mineradora de lítio e de fertilizantes solúveis da América Latina, com faturamento de 2,4 bilhões de dólares em 2013.

Segundo depoimento de Patricio de Solminihac, ex-diretor da SQM, ao Ministério Público chileno, a empresa “disponibilizou” anualmente em torno de 25 milhões de dólares para “fins diversos” e admitiu pagamentos por “boletas”, notas frias, totalizando 11 milhões de dólares, que azeitaram think tanks da esquerda como o Chile 21 – dirigido pelo ex-ministro Carlos Ominami – e financiaram uma infinidade de projetos cujos beneficiados usaram de incompreensível imprudência de gestão.

A fatalidade: entre centenas de “boletadores” estava o nome de Rodrigo Peñailillo, que emitira notas frias a Giorgio Martelli, arrecadador de dinheiro para financiamento de campanhas políticas da Nova Maioria e homem de confiança da SQM. Peñailillo é o “segundo filho” ou “filho político” de Bachelet, que desde março de 2014 se desempenha como ministro do Interior do Chile.

Feitas as contas pelo MP chileno, o número de acusados no “caso SQM” soma várias dezenas de políticos, da extrema-direita à esquerda centrista da situação, o que complicou ainda mais a imagem de Michelle Bachelet, que – como se não bastassem os cataclismos domésticos, ambientais e políticos – enviara à Corte Internacional de Justiça de Haia seu ministro de Relações Exteriores, Heraldo Muñoz, para repelir a instauração de processo judicial pelo governo Evo Morales, que cobra ao Chile uma saída soberana ao mar.

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Frederico Füllgraf é jornalista, em Santiago do Chile

Publicado em 12/05/2015 na edição 850 do Observatório da Imprensa