Em 2013, uma tragédia na qual 366 imigrantes perderam a vida durante o naufrágio de uma embarcação, próximo à ilha italiana de Lampedusa, chamou a atenção internacional para uma questão grave, mas até então fora dos holofotes: o crescente número de pessoas perdendo a vida no Mediterrâneo ao tentar alcançar o continente europeu. Naquele ano, estima a IOM (Organização Internacional para a Migração, em sua sigla em inglês), cerca de 700 pessoas morreram nesta rota.

Apesar das promessas de que uma nova tragédia não se repetiria, o ano de 2014 foi marcado por um naufrágio ainda maior – no qual cerca de 500 imigrantes morreram nas proximidades da Ilha de Malta – e pela consolidação do Mar Mediterrâneo como a rota de migração mais mortífera do planeta, com aumento de quatro vezes no número de vítimas, comparado com 2013. Em 2014, duas a cada três mortes em rotas de migração registradas pela IOM ocorreram na região, totalizando 3.279 mortos. Comparativamente, a segunda rota mais perigosa, o Golfo de Bengala, na Ásia, vitimou 540 migrantes.

“A principal razão para o que está acontecendo no Mediterrâneo é sua proximidade geográfica com países em conflito, como a Síria, a Eritreia e a Líbia”, explica Joel Millman, porta-voz da IOM.

Por trás do aumento

Em 2014, pela primeira vez, a maior parte dos resgatados no Mediterrâneo estava em busca de asilo, fugindo de violentos conflitos em seus países de origem. Dados divulgados no início de janeiro pelo governo italiano, principal país europeu envolvido nos resgates, dão conta de que um quarto dos resgatados em 2014 eram sírios. Coincidentemente, isso ocorre logo a seguir ao fechamento pelos países europeus das rotas terrestres, opções mais seguras usadas anteriormente pelos imigrantes para chegar ao continente.  Atualmente, as rotas marítimas respondem por oito de cada dez mortos e, cada vez mais, são as únicas opções que tem restado.

Até 2010, a travessia para a Europa era predominantemente feita por meio da rota terrestre entre Turquia e Grécia. No ano seguinte, porém, durante a chamada Operação Poseidon, foi iniciada a construção de uma vala com 12 quilômetros entre a fronteira dos dois países, para reduzir o fluxo migratório para o continente. A obra foi concluída em dezembro de 2012, pondo fim a uma das últimas “brechas” para chegar ao continente por terra.

“Políticas de intimidação não funcionam quando as pessoas estão tentando desesperadamente fugir para um local seguro, onde consigam manter suas famílias longe de conflitos sangrentos”, observa o porta-voz da Acnur (Agência da ONU para Refugiados), Francis Markus.

Emergência síria

Organizações internacionais têm reforçado que esta é a maior emergência humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. “Com a piora progressiva das condições para os refugiados no Oriente Médio e sem que haja um fim à vista para o conflito, cada vez mais sírios têm se arriscado pelas rotas de migração mais perigosas”, explica Joelle Bassoul, porta-voz da Oxfam Internacional em Beirute.

Dados do último relatório do Eurostat, gabinete de estatísticas da União Europeia, confirmam a emergência. No terceiro trimestre de 2014, a busca por asilo na Europa foi 50% maior que no mesmo período do ano anterior. Assim como nos dados de resgatados pelo governo italiano, os sírios estão no topo da lista, responsáveis por um a cada quatro pedidos de asilo.

Diante da situação, foi feito um apelo durante a última conferência internacional do Acnur, em dezembro do ano passado, para que países de fora do Oriente Médio se comprometam a garantir refúgio a pelo menos 5% da população síria deslocada de suas casas por causa da guerra. “No vizinho Líbano, atualmente um a cada quatro habitantes é sírio”, diz Bassoul. Programas especiais para a concessão de vistos de estudos e de trabalho também têm sido sugeridos como maneira de evitar que essas pessoas acabem em um bote no Mar Mediterrâneo.

“Nosso esforço é pela criação de opções para que a migração que hoje ocorre de forma ilegal, ocorra de forma legal”, enfatiza Joel Millman, da IOM.

Em alto mar

Após a tragédia de Lampedusa e sua repercussão, uma das primeiras respostas veio com a operação naval italiana Mare Nostrum, para a busca e o resgate de imigrantes no Mar Mediterrâneo. Em novembro do último ano, porém, uma nova operação, a Triton, encabeçada pela Frontex (agência responsável pela manutenção das fronteiras da União Europeia), entrou em ação com o intuito de substituir a iniciativa italiana.

“Oficialmente, já houve a substituição da Mare Nostrum pela operação Triton, mas, considerando-se o orçamento reservado para a nova operação, vê-se que ele não será suficiente para uma substituição de fato”, avalia Valeria Carlini, do Conselho Italiano para os Refugiados. A Triton conta com 3 milhões de euros mensais, contra os 9 milhões gastos a cada mês pela Mare Nostrum. Os objetivos de cada uma delas também não são os mesmos: enquanto a primeira cobria águas internacionais e era focada no resgate aos imigrantes em risco, a Triton abrange apenas os limites das águas europeias, com enfoque no controle de fronteiras. “Não podemos deixar que o desejo dos políticos europeus de fechar as portas cause a morte de pessoas, muitas delas necessitando de proteção internacional”, critica Francis Markus, do Acnur.

Novos métodos

Além de menos dinheiro previsto para as operações de resgate, o ano de 2015 pode ser marcado por uma mudança na forma de atuação dos contrabandistas que organizam as travessias. As embarcações Blue Sky M., resgatada em 31 de dezembro com 736 sírios à bordo, e a The Ezadeen, encontrada no dia 2 de janeiro com outros 359 sírios, são um indício de que grandes navios cargueiros podem ser a nova solução encontrada pelos traficantes para ganhar ainda mais dinheiro com a travessia ilegal. Em ambos os casos, as embarcações foram abandonadas à deriva, sem tripulação.

Nesses navios, é possível transportar centenas, até mesmo milhares de pessoas, e cada um desses passageiros paga entre U$$ 4 mil e US$6 mil pela viagem. “Esses dois navios fantasma trouxeram à tona a angustiante jornada que milhares de sírios estão fazendo para escapar do conflito em seu país de origem. Os que estão surgindo tentando entrar na Europa são apenas uma parte deles, muitos outros estão morrendo no caminho”, diz Joelle Bassoul.