Uma manifestação anti-islâmica reúne em Dresden um número recorde de 18 mil participantes. Dois jovens invadem a redação do semanário Charlie Hebdo em Paris e matam, durante a ação, doze pessoas. Mais de trinta pessoas morrem em atentado terrorista em frente a uma escola militar no Iêmen. Michel Houellebeqc lança o romance Submissão, sobre a tomada de poder pelo partido islâmico na França. Uma policial francesa é morta com um tiro pelas costas num subúrbio de Paris. O grupo terrorista Boko Haram perpetra um dos mais bárbaros massacres de civis da era contemporânea na Nigéria. É lançado pela extrema direita na França o slogan “Keep calm and vote Le Pen”. Num mercado judaico de Paris, um jovem negro e muçulmano faz reféns. A polícia francesa captura e mata os responsáveis pelo atentado ao Charlie Hebdo. A polícia francesa mata o jovem responsável pelo sequestro no mercado judaico, cujo saldo final é de quatro reféns mortos. Líderes mundiais se juntam à população de Paris na maior manifestação que a cidade já conheceu. Um humorista francês de origem camaronesa é preso na França por “apologia ao terrorismo”.

Já não podemos dizer, junto com Paul Valery, que “os acontecimentos nos entediam”. A súmula da última semana é terrível, especialmente pelo que indica a respeito do futuro próximo do mundo e pelo que exibe do âmago da civilização no século XXI. Os acontecimentos hoje nos amedrontam.

Carlos Drummond de Andrade, num poema que tentava traduzir o seu tempo, dizia:

E fomos educados para o medo
Cheiramos flores de medo
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

O medo era o traço mais marcante das gerações de então, nascidas e formadas entre guerras mundiais. A civilização que provoca barbárie estava em xeque. No livro onde o poema se acha, A rosa do povo, verdadeira sintomatologia do presente ocidental, o poeta mineiro tentava dar dimensão poética a essa força que parecia, no mesmo passo, provocar tentativas de ruptura com o estado de coisas e paralisar os homens no comodismo burguês.

Nosso tempo é outro, mas, ao que parece, o medo tem ganhado cada vez mais força como sentimento dominante do mundo ocidental. Nesse nosso estranho tempo, o medo do terrorismo é apenas uma faceta de um grande sentimento global, para o qual talvez nos falte a gramática que nos facultaria articulá-lo e torná-lo mais inteligível. Diria Guimarães Rosa que o medo está solto no meio do redemunho…e a questão hoje parece ser: como dar uma forma inteligível a um sentimento que nos define tanto que quase se torna invisível para nós mesmos?

Sabemos que o mundo está desconcertado, mas a possibilidade de transformá-lo está adiada para muito depois, pois também sabemos que talvez tenhamos muito a perder. O medo, diferentemente do que ocorria no século XX, não está acompanhado de uma crítica consistente da civilização que se reproduz pela barbárie. Fomos ensinados a nos conformarmos com ela. Fomos ensinados negar a violência inerente ao desejo de outro mundo, que Alain Badiou  chamou de anseio de confronto com o Real que caracterizou boa parte do século XX. Com essa negação, acabamos consumidos dia-a-dia na violência trivial do mundo, que nos amedronta num conforto esboroado, deixando-nos siderados com um Real traumático, com alto teor gravitacional, que acaba paralisando a ação. Estamos presos a um labirinto de certezas, que nos fizeram vidrados pelo imobilismo narcísico. Num contexto como esse, intensifica-se a máxima de que só os oportunistas podem lograr alguma pequena e miseravelmente quimérica vitória. O cotidiano cosmopolita do século XXI é, pois, o de homens empastelados entre o Real como trauma e o Medo como resposta primaz.

É quase desnecessário dizer que a grande mediação para tais movimentos é o capital. Por um lado, a sua fulguração diária, a forma mercadoria conforta, seduz, embala, ilude, abriga. Por outro lado, para cumprirmos nossa parte do pacto com a reificação, a contrapartida deve ser o medo. A mercadoria nos exige o medo a cada inspirar. Por isso ele é um sentimento tão familiar, quase irreconhecível que, quase sempre, é inominável. Sem o medo propalado na coletividade e arraigado individualmente, não rodam as engrenagens da tortura contumaz e feliz do capital. Vagueamos nossa vida, do início ao fim, consumindo, produzindo alienadamente objetos alienados de nós: tudo a fim de recalcar o nosso medo e dar à existência um parco sentido. O medo é a plataforma da nossa subjetividade, a liga da nossa sociabilidade.
Viu-se (e sentiu-se) o medo globalizado na última semana rondando as ruas da Europa, após os atentados ao Charlie Hebdo. Chefes de estado e cidadãos uniram-se no dia 11 de janeiro, numa grande e histórica marcha que desejava afirmar o direito à liberdade, o repúdio à violência e, sobretudo, propagandear ao Outro bárbaro o quanto não temos medo. Entretanto, quando milhões de pessoas precisam umas das outras, refletidas nas mídias, para negarem o próprio medo, é porque elas já se confrontaram previamente com este sentimento. E, assim, negando-o, terminaram afirmando sua existência inexorável. A grande Marcha de Paris foi também, nesse sentido, uma marcha do medo. Foi um espetáculo que provou como estamos dispostos a reagir espetacularmente, mas não a agir eficazmente. O medo mais convulso, vivido coletivamente, é capaz de criar nos povos um halo de falsa harmonia: a harmonia do medo. E todos que conhecem um pouco da história mundial sabem que a harmonia do medo é a melhor atmosfera para o cultivo do fascismo.

Este halo era visível na Marcha de Paris, que foi o sintoma maior de que o ocidente precisa confrontar alguns de seus valores. Insistir com fundamentalismo em alguns deles será anunciar uma derrocada. O mundo de hoje (o mundo do medo a um passo de ser apropriado definitivamente pelo fascismo institucionalizado) precisa de uma arte, de uma filosofia, de uma práxis política e de uma ação civil que sejam capazes de realizar a fundo a crítica dos próprios valores. Não é absurdo prever que o fascismo de século XXI se erguerá para defender os princípios republicanos da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Uma “monstruosidade” semelhante já caracterizou as facetas mais reconhecíveis do fascismo no século XX. Realizar ações, como a histórica Marcha da capital francesa, cujo fundo é o de afirmar teimosamente (e como sempre de modo hipócrita) alguns desses valores, pode ser escolher a defesa fácil das cômodas convicções diante do medo sombrio e dissoluto que nos ergue a cada amanhecer. Mais do que isso, pode ser dar mais energia à ebulição das condições históricas das quais deriva o fascismo como ideologia salvacionista. Leandro Konder, em seu esclarecedor Introdução ao fascismo diz que o crescimento dessa tendência pressupõe “uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas)” . Em diversos planos: do econômico ao cultural, parece que esta preparação está há alguns anos em curso no ocidente.

Nas últimas estrofes do poema de Drummond citado aqui, lemos um retrato da desorientação geral do mundo, que parece naufragar, aferrado ao que há de pior na reprodução do gesto dito civilizado. Com a Marcha de Paris em mente, cito os versos e também sinto medo:

Adeus: vamos para frente,
Recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo,

Eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

Um dos antídotos para o medo está na coragem de pensar e agir, realizando a crítica material do mundo como ele está. Essa crítica exige que evitemos compactuar com a lógica do espetáculo do noticiário. Nesse padrão CNN, reproduzido pelos grandes monopólios de comunicação ao redor do globo, o importante é repartir os eventos, insulando-os em sua própria consistência monádica e traumática: em seu delírio de pura imagem, de fantasmática mercadoria. Reconectar os fatos, relacionando-os na grande teia de eventos da totalidade do processo histórico é um gesto fundamental para a realização da crítica daquilo que agora podemos reconhecer como civilização do medo de tendência fascista. Não a totalidade como premissa abstrata: a totalidade como processo, como nos ensina o materialismo histórico.

Ao perseguir essa noção de totalidade processual, como fonte e fim de toda crítica radical ao sistema mundo, poderemos até mesmo recuperar aquela velha noção sartreana de “encarnação” (que um dia foi talvez filosoficamente problemática e questionável). Sartre dizia que “cada indivíduo é, em certa medida, a representação total da sua época” .  Ademais, alertava que “um indivíduo, seja quem seja, ou um grupo, ou qualquer tipo de coletividade, é uma encarnação da sociedade”. Num mundo pródigo na produção de imagens traumáticas, é sedutor pensar que podemos usar essa ideia de encarnação sartreana para os eventos que temos vivenciado nos últimos anos. Então, poderemos pensar que cada evento daqueles que citamos acima é a “representação total” de nossa época. Eles têm uma forma, cuja tradição dos estudos de estética pode, inclusive, nos ajudar a deslindar e a conectar dialogicamente com outras formas que compõem a totalidade. Basta nos dispormos a lê-los como partes de uma constelação de emergências, de epifanias que são a última etapa de uma cadeia de pressuposições cujo fundamento é a materialidade do processo histórico. Ganhará, então, outro sentido pensar as ligações do Boko Haram, com a Al-Qaeda e a CIA; o desemprego crescente na Europa, a desvalorização do petróleo, o massacre da Nigéria e a crise da União Europeia. Cada evento desses precisa ser tomado como a encarnação espetacular que é da dinâmica da totalidade. Será, todavia, preciso dizer o nome dessa totalidade: o sistema mundo, condicionado pela voracidade de expansão do capital em um planeta que dá sinais claros de não mais suportar um projeto civilizatório nos moldes do capitalismo ocidental.

A única filosofia que não compactua em nada com os fundamentos elementares deste mundo que aqui descrevemos comoo mundo do medo é o marxismo. O marxismo é a crítica legítima e radical à matéria que dá forma ao processo de reprodução da sociedade burguesa, considerando seus êxitos e limites. O marxismo é a filosofia e é a prática da emancipação. E é como filosofia da práxis, que o marxismo pode nos fazer fugir do debate restrito ao “toma lá da cá” que interessa tanto à ideologia fascista.
Uma das lições atuais é a de que o medo não nos quer completos e, portanto, também não nos quer livres. Para Marx, não há interpretação consistente da experiência humana se tal interpretação estiver desvinculada do ímpeto historicamente determinado de transformá-la. Transformar aqui tem, sobretudo, o significado de emancipação dos indivíduos em relação às determinações do fetichismo e da reificação; mas tem também o significado de resgate das forças da natureza em relação ao processo de exaustão radical promovido pelo sistema capitalista.

Portanto, é indispensável àqueles que militam intelectualmente nas diversas fileiras da esquerda mundial não ter medo de pensar “a quente”. Não há que se ter esperança: os fatos não vão esfriar. O pouco que temos nas mãos são eventos traumáticos que com que o espetáculo nos brinda. Com eles é preciso reagir coletivamente à crescente preparação de condições de implantação da uma hegemonia política e cultural fascista em escala global. O pensamento crítico, num tempo como o nosso, pode também esfriar, ou virar espetáculo. E isso ocorrerá quando o medo voltar a nos enganar com a ilusão de que “está tudo bem” ou a certeza de que a revolta ficará mais uma vez adiada, apesar de sermos cada vez menos livres.

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Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com