Ignácio Rangel, ilustre pensador brasileiro e certamente o mais original entre nossos grandes economistas, escreveu que o setor público e o setor privado devem repactuar suas respectivas participações na economia sempre que as oportunidades de investimentos de um ciclo econômico estão se esgotando[1]. Nas superiores palavras de Rangel:


“Quer isso dizer que a lua-de-mel entre o setor privado e o setor público da economia dura enquanto, por um lado, o empresariado capitalista considera suficientes as oportunidades de investimentos que lhe são abertas e enquanto as responsabilidades deixadas ao Estado não exigem dele que tente aumentar demasiado sua participação no dividendo nacional. Periodicamente, esse equilíbrio se rompe, tornando necessária uma redistribuição de funções, e essa ruptura de equilíbrio se manifesta por uma série de perturbações – notadamente, ao longo do processo de industrialização, o recrudescimento do processo inflacionário, o qual supõe (…) precisamente o esgotamento das oportunidades de investimento para o empresariado capitalista.”(RANGEL, 1978, p. 665).
No Brasil, vivemos este período nos anos recentes. A campanha eleitoral catalisou a disputa em torno da decisão de quem dará as cartas na próxima rodada de crescimento econômico. Após o segundo turno, a definição da equipe econômica do próximo governo Dilma foi o capítulo mais aguardado, pois sua composição sinalizaria qual pacto o governo pretende fazer com as frações financeira e produtiva do capital.
A realização dos contratos de investimentos no setor de logística foi um momento importante desta repactuação entre o capital público e o privado. A adoção do modelo de concessão reforça a presença de um Estado menos subserviente às imposições do capital privado. Do outro lado da corda, as empresas pressionaram para aumentar o retorno mínimo dos contratos. O tempo gasto além do esperado para destravá-los releva certamente as inescapáveis rodadas de pressão de ambos os lados.


O capítulo mais importante, entretanto, da definição de papéis entre o público e o privado se deu em torno do modelo exploração do pré-sal. O regime de partilha é uma grande conquista para uma nação cuja soberania ainda está em construção. Não por acaso, ainda hoje encontramos os porta-vozes locais de interesses estrangeiros defendendo o retorno ao modelo anterior, no fundo, por discordarem do pacto proposto pelo Estado brasileiro.
Poucos temas estão tão imbricados com os interesses das potências hegemônicas do Capitalismo como o controle sobre a produção mundial do petróleo. A relevância do pré-sal para as petroleiras tradicionais deriva de sua magnitude, mas é reforçado pelos movimentos realizados no setor de energia, desde o inicio dos anos 2000, por dois grandes países em desenvolvimento: Rússia e China.


A Rússia viveu durante a década de 1990 a formação de uma plutocracia durante governo anti-nacional de Yeltin, patrocinada pelo Estado, que levou a graves prejuízos para a indústria do petróleo russa. O conluio entre governo e banqueiros fatiou e distribuiu as recém-criadas empresas para privatização. Um dos mecanismos utilizados foram os empréstimos tomados pelo governo que tinham como garantias as ações das empresas ainda não privatizadas. Caso o governo não pagasse o empréstimo o banco colocava as ações em leilão. O governo não pagava, os leilões eram de fachada e os bancos se tornavam proprietários das ações. A empresa Yukos, por exemplo, foi adquirida por US$ 390 milhões, avaliada em seguida com o valor de US$ 15 bilhões. Uma das consequências deste verdadeiro saque ao patrimônio do povo russo foi que em 1996, a produção de petróleo foi de apenas 60% do valor recorde do ano de 1987[2].


A partir do primeiro governo Putin, a Rússia percorreu um caminho de retomada do controle público sobre o estratégico setor de petróleo e gás como parte da retomada de um projeto de desenvolvimento nacional. O governo alterou o regime de tributação e conseguiu aumentar as receitas oriundas do setor; o BC russo adotou mecanismos para que grande parte das receitas das empresas permanecesse na Rússia; e a estatal do petróleo, a Rosneft, e a estatal do gás, a Gazprom, passaram adquirir participação acionária e ativos das empresas vistas como estratégicas ou desconectadas dos interesses nacionais. Em poucos anos, a produção de petróleo voltou a crescer vigorosamente.
O controle soberano da Rússia sobre a economia do petróleo e gás retira a capacidade das tradicionais petroleiras ocidentais, ancoradas nos respectivos Estados, de dominarem uma das maiores reservas do mundo. As reservas de outros países, consequentemente, se tornam ainda mais relevantes. Ao mesmo tempo, a determinada política russa de ampliação da produção e exportação de petróleo amplia a concorrência pelos mercados consumidores.


A Rússia, todavia, ainda não se libertou da enorme dependência que sua economia possui do setor do petróleo, o que a torna vulnerável às pressões externas. E aqui é preciso fazer alguns comentários sobre a atual crise no preço do petróleo e seus impactos sobre a Rússia, mesmo que temporariamente nos afastemos do intento principal deste texto.


De junho até dezembro deste ano o preço do barril do petróleo caiu 45%, chegando a estar abaixo dos US$60, menor valor desde 2009. A persistente crise economia mundial ainda vivida em todas as partes do mundo e a extração do petróleo de xisto dos EUA contribuíram para a oferta de petróleo exceder a demanda e assim derrubar o preço. Entretanto, a decisão da OPEP, que comercializa cerca de 40% do petróleo vendido no mundo, de manter o volume de produção em um nível sabidamente muito acima da capacidade de consumo mundial foi o fator mais desestabilizador do preço da commodity.


Ao que parece, esta postura da OPEP – da Arábia Saudita em especial, pois outros membros como a Venezuela propuseram a redução da oferta para evitar o derretimento do preço – é uma tática de concorrência por meio de preço predatório.A Arábia Saudita é responsável por mais de 30% do total produzido pela OPEP e possui o menor custo de produção de petróleo do mundo, o que lhe dá um grande poder de suportar preços baixos. Com o preço do barril acima de 70 dólares, muitos projetos de exploração de alto custo passariam a ser viáveis, o que ampliaria a concorrência. O banco Goldman Sachs avalia que muitos campos que estão na iminência de serem explorados se tornam inviáveis com os níveis atuais do preço do petróleo. As consequências serão atrasos de investimentos, necessidade de redução de custos, vendas de ativos e desvalorização das empresas que operam em campos que possuem custos elevados. A disposição da OPEP de não intervir na queda do preço e deixar entender que permitirá uma queda ainda maior, manifesta esta tática de concorrência predatória[3].


A Rússia que até então vinha enfrentando razoavelmente o impacto das sanções econômicas impostas pelos EUA e UE, tomou um grande golpe com a queda do preço do petróleo nos últimos meses. A fuga de capitais decorrente das sanções se intensificaram com a queda do preço. Em novembro o BC, que já vinha aumentando a taxa básica de juros, passou adotar o regime de câmbio flutuante. Somente no dia 15 de dezembro, a moeda russa perdeu 10% de valor frente ao dólar. No dia 16, o BC decidiu elevar a taxa de juros de 10,5% para 17%, em uma forte medida de tentar estancar o processo de desvalorização do rublo.
A desvalorização da moeda na intensidade que ocorreu pressionará para cima a taxa de inflação, diminuirá em grande medida a arrecadação do Estado com as receitas do setor do petróleo provocando um inevitável corte de gastos, desvalorizará as empresas com grande volume de dívidas denominadas em dólar, o que poderá levar a mais fuga de capitais e mais pressão sobre a taxa de câmbio. O aumento da taxa de juros, por sua vez, reforça um horizonte de recessão no próximo ano. No momento em que a Rússia enfrenta seu maior embate geopolítico em anos, o governo russo terá que lidar com repercussões negativas da grande desvalorização do rublo. Impossível não pensar na provável articulação entre Arábia Saudita e as potências ocidentais para derrubar o preço do petróleo e estrangular a Rússia.
Voltando ao curso principal do texto, falemos do segundo país que também tem desempenhado um importante papel na última década com repercussões sobre a geopolítica do petróleo.


A China vem adotando uma política decidida de construir sua segurança energética e ter a garantia de que seu processo de desenvolvimento não será bloqueado por escassez de petróleo. O país asiático já é o maior consumidor de energia do mundo, respondendo por 19% da demanda mundial e estudos tem apontado que se tornará o maior importador de petróleo nos próximos anos. Atualmente a China importa 59% de sua demanda de petróleo e derivados.


Ciente de que não pode se tornar dependente dos países produtores de petróleo do Oriente Médio, devido à instabilidade interna destes países e sintonia com a política norte-americana, a China realiza grandes investimentos em várias partes do mundo. Turcomenistão, Cazaquistão, Uzbequistão, Egito, Equador, Venezuela, Canadá, Quênia e Uganda são países que possuem participação chinesa na exploração de petróleo de alguma maneira, seja via estatais chinesas, joinventures ou participações em empresas locais ou estrangeiras.


Entre todos estes investimentos, destacam-se os feitos na África. A China tem feito investimentos em diversos setores naquele continente como em infraestrutura logística, construção de hospitais e escolas. Tem firmado parcerias de intercâmbio entre universidades chinesas e africanas, fornecido equipamentos militares e realizado perdão de dívidas de governos. Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial da África.


Esta forte e crescente presença da China na África já despertou o receio das grandes potencias ocidentais que acusam a China de pretender colonizar a África. Na realidade, a China tem disponibilizado os recursos aos países africanos que sempre foram negados pelas instituições controladas pelos EUA como o Banco Mundial e o FMI. Ademais, a China não impõe aos países africanos as exigências que acompanham os pacotes de empréstimos destes órgãos. Sem desconsiderar as precauções que os países africanos devem tomar para aproveitar a presença chinesa para seu desenvolvimento, a desfaçatez desta crítica feita pelo ocidente à China através da Imprensa alinhada, Secretários de Relações Exteriores dos diversos países e representantes na África, desnuda a situação de uma civilização que tem ficado com cada vez menos alternativas para enfrentar o potente modelo econômico construído na China desde a Revolução liderada pelo Partido Comunista[4]. Todas estas décadas de benevolência do Ocidente com a África, só lhe rendeu mazelas sociais e fotografias de alguma estrela de Hollywood com suas crianças.
No setor do petróleo, a presença chinesa na África é solidamente crescente. O Sudão é atualmente o terceiro maior produtor de petróleo da África devido ao volume de investimentos feitos pela China através das estatais CNPC e Sinopec. O país produzia em 2000, 174 mil barris de petróleo por dia e passou a produzir em 2010, 486 mil. A China é a maior fonte de investimento direto externo do país [5]. Na Nigéria e Angola, o primeiro e o segundo maiores produtores de petróleo da África respectivamente, a hegemonia das petroleiras Shell, ExxonMobil, ChevronTexaco, Total e BP foi quebrada pela gigante chinesa, CNOOC. Para se ter dimensão da presença da China na Angola, basta dizer que este país disputa com a Arábia Saudita a posição de principal origem das importações chinesas de petróleo. A CNOOC também atua na Guiné Equatorial que saltou sua produção de 91 mil para 274 mil b/d entre 2000 e 2010[6].


O poder das estatais do petróleo chinesas é reforçado por estarem inseridas na estratégia nacional de desenvolvimento de seu país. Por um lado, podem ter um comportamento mais ousado, uma vez que não necessitam ser lucrativas isoladamente, o que lhes dá grande vantagem sobre as concorrentes privadas. Por outro lado, o governo chinês quando necessário reforça as ofertas feitas pelas empresas nas licitações de licenças de exploração petróleo por meio da disponibilização de empréstimos nos bancos de desenvolvimento chineses aos países possuidores das reservas petrolíferas.


No Brasil a presença chinesa não se restringe na participação da CNPC e da CNOOC no consórcio que venceu o leilão do campo de libra. Em 2005, a Sinopec participou da construção de um gasoduto entre o sudeste e nordeste brasileiros. Em 2009, assinou um importante contrato com a Petrobras, possibilitando que esta obtivesse um empréstimo de 10 bilhões de dólares no Banco de desenvolvimento da China. Em 2010, após a descoberta do pré-sal, a Sinopec e a Sinochem passaram a adquirir ativos de outras empresas estrangeiras que atuam no Brasil [7].


O cenário da ação chinesa no setor de petróleo traz a inescapável consequência de ampliar a concorrência e impor novos condicionantes à política adotada pelas petroleiras ocidentais tradicionais, além derestringir a participação destas empresas no maior mercado consumidor de petróleo do próximo período. Para as petroleiras ocidentais é imperativo que disputem com a China o direito de exploração das novas áreas. No Pré-sal, os chineses saíram na frente.


O contexto de maior competição mundial na indústria do petróleo faz do pré-sal uma reserva muito valiosa. O acirramento da concorrência intercapitalista impõe aos capitais individuais a necessidade de intensificarem a acumulação, o que torna as áreas abertas para valorização do capital cada vez mais disputadas.
A campanha contra a Petrobras levada à frente pelo bloco conservador brasileiro é, neste contexto, absolutamente funcional aos interesses das petroleiras ocidentais estrangeiras. Mais do que enfraquecer a Petrobras, esta campanha objetiva retirar do Brasil o controle sobre seu próprio futuro, como várias vezes vimos acontecer na história da estatal e na história do país.


Uma página a parte da ofensiva conservadora é a ação contra a Petrobras em curso na justiça dos EUA, que pode custar centenas de milhões de dólares à estatal brasileira, movida por um escritório de advocacia especializado na rapinagem. Esses escritórios se aproveitam de momentos de dificuldades das empresas, buscam alguma regra do mercado de capitais norte-americano que elas possam ter infringido, convocam os acionistas para abrirem o processo judicial e lucram milhões de dólares com a causa[8].
O editorial do jornal O Globo que defende abertamente a revisão do modelo de partilha e a entrada das petroleiras ocidentais na exploração do pré-sal[9] não fez mais do que explicitar a razão da campanha orquestrada contra a Petrobras: dilapidar a autoridade do PT, de Dilma e de Lula e desvalorizar a Petrobras a fim de inviabilizar a participação diferenciada da estatal na exploração do pré-sal.


É da soberania brasileira que se trata o tema da exploração do pré-sal, portanto interessa a toda a nação. Diante do panorama de exacerbação da concorrência no mercado mundial de petróleo, a tentativa de enfraquecer a Petrobras e, portanto, a participação do capital público no Pré-sal exige um grau de unidade dos setores nacionalistas e democráticos em um patamar elevado. Algumas iniciativas têm contribuído para gestar um programa político que lance as bases para esta unidade necessária. As frentes de defesa da Reforma Política Democrática como a Coalizão Democrática, o Encontro do Fórum Nacional de Democratização da Mídia marcado para os primeiros meses de 2015, a criação do Fórum21 e as plenárias conjuntas de partidos de Esquerda, organizações sociais e centrais sindicais são exemplos destas iniciativas.


O próximo ano vai se desenhando para os setores avançados da sociedade brasileira como o momento de exercitar e transformar em ação política mobilizadora as iniciativas citadas anteriormente. A defesa da exploração soberana do Pré-sal será um bom teste.


*Diogo Santos é Graduando em Economia pela UFMG, membro da Sessão Mineira da Fundação Maurício Grabois e Membro da Comissão Política do PCdoB em Minas.


Notas
[1] RANGEL, Ignácio. Posfácio à quinta edição de A Inflação Brasileira. In: Cesar Benjamin (Org.).Ignácio Rangel: obras reunidas. Contraponto. Rio de Janeiro, 2005. 
[2]SCHUTTE, Giorgio Romano. A economia política do petróleo e gás: a experiência russa. IPEA Texto para discussão,no 1474. Brasília, fev, 2010.
[3]ADAMS, Christopher.Queda do petróleo ameaça US$ 1 tri em investimentos.Financial Times. Londres. Reproduzida no jornal Valor Econômico em 16 dez, 2014.
[4] NAPOLENI, Loretta. Maonomics: Por que os comunistas chineses se saem melhores capitalistas do que nós. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2014.
[5]ALVES,André Gustavo Miranda Pineli. Os interesses econômicos da China na África. Deint, Boletim de Economia e Política Internacional. Jan, 2010.
[6] MONIÉ, Frédéric.Petróleo, desenvolvimento e dinâmicas espaciais na Áfricasubsaariana In: MONIÉ, Frédéric, BINSZTOK, Jacob (org.) (2012): Geografia e geopolítica dopetróleo. Rio de Janeiro: Mauad X.
[7]ALMEIDA, Edmar de e CONSOLI, Helder.A entrada e os próximos passos dos chineses no setor de petróleo no Brasil.Blog Infopetro. 14 jul, 2014.
[8]VALENTI, Graziella;TORRES, Fernando eMAIA, Camila.Petrobras é alvo de ação coletiva nos EUA. Valor Econômico.São Paulo, 9 dez, 2014
[9]Editorial: Política para o petróleo terá de ser revista. O GLOBO. 14 dez, 2014.