O ano de 2014 ficará marcado como aquele em que o desrecalque raivoso dos interesses conservadores de parcelas significativas da sociedade brasileira se tornou inquestionável. Mais do que isso, essa onda neoconservadora (de raiz colonial) revelou-se patente em esferas as mais diversas: na formação da nova legislatura do Congresso Nacional; na prática golpista da mídia aliada aos interesses do grande capital; no orgulho com que madames destilavam ódio à “petralhada” durante a campanha eleitoral, taça de champagne à mão; na criminalização ideológica de uma gestão da economia e das finanças nacionais voltada à manutenção do emprego e da renda do trabalhador em meio a grave crise mundial. Esses e tantos outros exemplos provam que, aliado a um movimento conservador mundial, o conservadorismo brasileiro foi competente em colocar algumas peças no tabuleiro político de 2015, as quais não será possível ignorar.
O movimento à direita, portanto, como era de se esperar, pautou sobretudo o debate econômico e apropriou-se da razão em torno de uma tese que foi central na campanha para presidente e, dada sua força de penetração na chamada “opinião pública”, tornou-se central também para o início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff. A tese relativamente vitoriosa da oposição em conluio com a imprensa golpista é a de que o país vai de mal a pior na economia, principalmente porque parou de crescer. Se o cenário econômico não é dos melhores, aliás em termos globais, o grande esforço em 2015 daqueles que sustentaram a candidatura de Dilma à reeleição será ir paulatinamente se reapropriando politicamente do campo econômico ao longo do segundo mandato. Nesse contexto, a nova equipe econômica terá a missão de sustentar a curto e médio prazo um conjunto de medidas que possibilite ao país retomar índices razoáveis de crescimento. Ou seja, enxergando por outro ângulo, caberá a esta equipe cuidar dos fetiches da economia que agradam ao mercado, fazendo ajustes, regulando práticas, cevando a chamada “confiança do investidor”.
Mas este combate tem uma outra dimensão, na qual devemos atuar como sociedade organizada em prol da superação de antigos ranços brasileiros do atraso que tanto conhecemos e abominamos. Será necessário àqueles que militam no horizonte político da esquerda e que sustentaram em 2014 a continuidade do projeto de país liderado pelo Partido dos Trabalhadores, tratar de desmantelar alguns desses fetiches, começando por enunciar clara e diuturnamente que, em se tratando de desenvolvimento real de uma nação como o Brasil, “crescer” jamais poderá ser um fim em si mesmo; “crescer” jamais poderá ser algo que se explica em termos de pura aritmética. Ao se enunciar como um fim em si mesmo, o crescimento econômico tenderá a acatar, apenas e escusamente, os interesses daqueles setores da sociedade que já são “grandes”. “Crescer”, segundo uma concepção política progressista, democrática, nacional e popular, é algo que tem um fundamento real e um destino realista inescapável.
O destino realista inescapável do crescimento, numa sociedade como a brasileira, é a diminuição da desigualdade social, o que significa dizer que o crescimento só terá sentido se preservar emprego, garantir saúde, educação, segurança e renda àqueles que sofrem os mais pesados golpes do capitalismo global em sua expressão local. As classes mais subalternas não podem ficar apenas com restos do PIB (ainda que ele seja exuberante). Há que se criar alternativas para que essas classes protagonizem ações produtivas e partilhem da melhor forma possível do crescimento do país, através da transformação das suas vidas para melhor. É nisso que o Brasil precisa avançar em termos econômicos, sem o que o fetiche do “crescimento” servirá apenas para agradar e sustentar velhas e novas oligarquias, além de garantir o emprego de seus prepostos na grande mídia. Está claro, portanto, que a agenda do crescimento deverá contemplar regulação dos meios de comunicação, reforma tributária, reforma política, reforma agrária, reforma urbana, reforma da educação, proposição de um projeto ambiental claro e sustentável para o Brasil etc. Essas são demandas reais do desenvolvimento brasileiro, que nem sempre os frios números traduzem imediatamente em termos de PIB, mas que precisam estar entre as prioridades sociais e políticas do novo mandato de Dilma Rousseff. Nossa sociedade expressa déficits profundos, que interessam ao ideário neoliberal apenas na medida em que rendam algum lucro aos donos do capital. É a ação política da sociedade que deve problematizar esses déficits a fim de promover a viabilidade realista da sua superação.
De outra parte, o fundamento real do “crescimento econômico” não está apenas no estímulo à segurança especulativa, na concessão de benesses ao empresariado ou no desenvolvimento de um ambiente propício ao investimento pela via do estabelecimento de prioridades econômicas aferradas ao modelo neoliberal. Reduzindo-se a isso nossa pauta econômica, não será necessária muita criatividade para imaginar o fracasso futuro: bastará olhar para o presente dos trabalhadores da Europa. Não se deve ignorar, por exemplo, o fato de que entre os fundamentos reais do crescimento está a produção do conhecimento de alto nível e a melhoria da qualidade da educação nos diversos níveis da formação dos cidadãos. Países que investiram maciçamente na educação, na ciência, na tecnologia e na inovação (elementos de resto indissociáveis) são países que se destacaram no crescimento seguro do PIB e na estabilidade social e econômica, configurando-se como nações menos sujeitas às intempéries cíclicas do capitalismo global. Sem um grande projeto democrático e popular para ampliar e consolidar a qualidade da educação e da ciência no Brasil, não será plenamente superada a nossa velha síndrome de “crescimento” periférico, que combina atraso, modernização e instabilidade, a despeito dos números serem alvissareiros ou pífios. Uma fórmula cujo resultado é quase sempre: “mais para quem já tem demais”.
A onda neoconservadora só será minada, portanto, pelo trabalho diário dos militantes e dos quadros que estiverem atuando lucidamente no governo. Nos próximos anos seremos exigidos como nunca para a articulação combinada de atuação institucional, fortalecimento partidário e mobilização social. Esse é o grande desafio que se coloca a uma possível frente progressista: corrigir o curso da atual “cultura política hegemônica”, além de exigir que um novo ciclo de desenvolvimento do país não ceda morbidamente ao assédio demoníaco do nova voga neoliberal. A oportunidade está posta e é essa necessária correção de curso que resultará num “crescimento”, agora em sentido amplo, capaz de reordenar a correlação de forças atual e de enunciar algo insólito, para além do que manda a cartilha daqueles que sempre estiveram no comando.
Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com

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*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.