Na semana em que Barack Obama declarou uma cruzada contra o grupo insurgente ISIS e anunciou bombardeios dos Estados Unidos no Iraque e Síria, o jornal inglês The Independent nos lembrou: Obama é o 4º presidente dos Estados Unidos a bombardear o Iraque. A sequência começa com George Bush em 1991, segue com Bill Clinton em 1998, é intensificada com George W. Bush em 2003 e chega até Obama. Os três últimos bombardeios foram feitos à revelia da ONU, organização criada para manter a paz e segurança internacionais.

Para além de memórias e cifras do passado recente – trilhões de dólares despendidos em aventuras militares fracassadas, milhares de vidas iraquianas ceifadas por intervenções estadunidenses – a decisão de Obama foi especialmente controversa. Sua eleição em 2008 se deveu a duas propostas claras. Primeiro, combater a crise econômica global, cortando aventuras militares em prol de investimento produtivo. Segundo, retirar tropas dos EUA do Afeganistão…e Iraque.

Não é surpresa, portanto, que o repentino deja-vu militarista de Obama tenha sido duramente criticado por diversos estados-membros da ONU. Entre eles, o Brasil.

O mesmo palco do réquiem político do Prêmio Nobel da Paz Obama tinha sido, momentos antes, ocupado pela Presidenta Dilma Rousseff. O contraste entre a triste figura e a serena postura não poderia ser maior – não fosse pelo abismo programático que os separava.

A fala de Dilma foi também marcada por grande simbolismo. Pela 4ª vez seguida, a Presidenta se pronunciou perante o fórum mais democrático da Organização das Nações Unidas. O prestígio – inédito, no caso brasileiro – conferido a esse órgão da ONU sinalizava duas direções consolidadas na gestão Rousseff. Primeiro, a diplomacia presidencial como componente fundamental da política externa brasileira. Segundo, a importância conferida às instituições internacionais na busca por manter relações satisfatórias com o conjunto mais amplo possível de países – num mundo mais plural e complexo que o Guerra Fria, no qual a relevância do Brasil é crescentemente reconhecida. O país se depara com uma diversidade de opções; oportunidades surgem em múltiplas frentes.

Na mesma semana dos bombardeios no Iraque, o Conselho de Segurança da ONU determinou que o vírus Ebola é uma ameaça à paz e segurança internacionais. E o contraste entre os EUA e o Brasil novamente se fez nítido. Os EUA se comprometeram a enviar 3 mil militares para a África para contribuir na contenção da enfermidade6. Já o Brasil recebeu um pedido de auxílio do governo da Libéria – país afetado pela epidemia do Ebola. O pedido, feito também aos outros países dos BRICS, não envolveu o envio de forças militares, mas cooperação técnica e auxílio humanitário.

Em seu discurso, Dilma ressaltou as conquistas auferidas pela jovem democracia brasileira, de forma coerente. Reconheceu os avanços na estabilização da economia empreendidos na década de 1990. Comemorou a saída do Brasil do mapa da fome da FAO e o cumprimento, com antecipação, dos objetivos de desenvolvimento do milênio – um feito de todos os brasileiros e dos governos Lula e Dilma, em especial. O arco de transformações sintetizado no discurso de Dilma contém continuidades importantes com o passado brasileiro e lições para o futuro após as eleições.

Nas últimas décadas, o Brasil manteve uma postura constante e coerente. Salvaguardando um valor caro à diplomacia brasileira – a manutenção da integridade territorial dos estados – o Brasil defendeu, se possível, soluções negociadas fundadas no multilateralismo, no âmbito da ONU ou de organizações de segurança coletiva regionais. O uso da força não foi priorizado nem tolerado.

O Brasil respeitou a decisão da ONU de autorizar o uso da força contra o Iraque em 1991 e contra a Líbia em 2011 – sem ter contribuído com forças militares. Diante da declaração dos EUA de “guerra ao terror” em 2001, o Brasil tentou, sem sucesso, mobilizar um mecanismo de segurança regional – o TIAR. O Brasil condenou o uso da força pela Rússia na Geórgia em 2008 e na Ucrânia em 2014 – defendendo negociações diretas entre os envolvidos via ONU. Como alternativa ao uso da força – na Palestina, Síria, Iraque, Líbia, Ucrânia – o país se pauta pela prevenção de conflitos.

O repúdio ao uso não-legitimado pela comunidade internacional da força armada não implica transigir com o que a Presidenta qualificou de manifestações de barbárie. O Brasil condenou violações de direitos humanos cometidos pelo ISIS e votou a favor de uma missão da ONU para investigá-las. Ao mesmo tempo, a representante brasileira no Conselho de Direitos Humanos da ONU rechaçou o uso da força para “resolver” o conflito iraquiano.

O repúdio à força armada e a busca pela solução pacífica das controvérsias (fazendo uso do direito internacional e das instituições internacionais) são marcas registradas do Ministério das Relações Exteriores brasileiro. A postura brasileira a respeito dos bombardeios dos EUA no Iraque não é algo novo em nossa política externa. E o repúdio ao militarismo não implica animosidade com os EUA – país com quem o Brasil mantém um comércio bilateral de 44 bilhões de dólares anuais e com o qual colabora em diversas áreas, como na operação de paz da ONU no Haiti (MINUSTAH).

O que há de novidade nas políticas da gestão Rousseff é a associação entre o repúdio ao uso da força e o investimento político em alternativas, tais como a cooperação para o desenvolvimento definida a partir das experiências dos países do Sul global (rompendo com traços coloniais).

O contraste entre Brasil e EUA se acentua na qualificação do tipo de ordem internacional para a qual os países desejam colaborar. E nesse quesito, ao passo que Obama trai suas palavras de 2008 e 2012, Dilma provém continuidade à iniciativa pioneira do governo Lula.

Em 2003, ano da invasão do Iraque pelos EUA (sem autorização da ONU) e da morte de Sérgio Vieira de Mello num atentado em Bagdá, Lula afirmou na ONU que uma guerra poderia ser vencida por um país, mas em detrimento da paz duradoura para todos. Em contraste com a invasão do Iraque, Lula definiu a luta contra a fome e pelo desenvolvimento como lutas de todos.

A postura brasileira sobre a ISIS e o Ebola, pois, já eram visíveis há mais de uma década. Não derivam do afastamento entre Brasil e EUA que teve lugar a partir do escândalo de espionagem das comunicações da Presidenta Dilma pela agência norte-americana NSA, denunciado por Edward Snowden em 2013. Dilma cancelou a primeira visita presidencial brasileira aos EUA desde 1995.

Quando Dilma afirma que o uso da força é incapaz de eliminar as causas profundas dos conflitos, se refere a uma agenda positiva de desenvolvimento no plano internacional. Essa agenda se posiciona, com seriedade, diante das graves causas e consequências da crise econômica de 2008 – da qual o Brasil emergiu fortalecido, mas não sem duros esforços de reativação da economia em face da contração global. Face à resistência dos países desenvolvidos – destaque para os EUA – em reformar o FMI e o Banco Mundial, o Brasil e os emergentes criam iniciativas próprias24 para evitar uma nova crise como a de 2008. Assim, o Arranjo Contingente de Reservas protegerá os países dos BRICS de volatilidades financeiras. E o Novo Banco de Desenvolvimento atenderá às necessidades de financiamento de infraestrutura dos países BRICS e dos países em desenvolvimento.

A agenda de políticas externada no discurso de Dilma inclui a busca sustentável por segurança energética (em contraste com a obsessão por hidrocarbonetos dos EUA reiterada na política externa de Obama). Lastreada nas decisões da conferência Rio 20, Dilma apontou avanços brasileiros em sustentabilidade na Cúpula da ONU sobre o Clima e cobrou dos países desenvolvidos o cumprimento de metas nacionais e meios de implementação no plano internacional.

Diante de impasses no comércio, Dilma propõe reativar a OMC no plano global e fortalecer no plano regional o MERCOSUL, a UNASUL e a CELAC. Estes são também parte central da estratégia latino-americana de combate à desigualdade social, possibilitando um crescimento econômico mais justo, inclusivo e sustentável via integração.

O governo brasileiro também se comprometeu com o combate a todas as formas de exclusão e discriminação, fundado na dignidade de todo ser humano e na universalidade de seus direitos fundamentais. A Presidenta, ainda, ressaltou esforços globais contra a espionagem eletrônica, denunciada em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU em 2013. A luta pela privacidade digital e para que a Internet continue a evoluir de forma aberta, democrática, livre, multissetorial e multilateral se fez no marco de direitos fundamentais e mobilizou apoios importantes, como o do governo da Alemanha.

O futuro do Brasil se entrelaça com as conquistas sociais da democracia, manifestas no discurso de Dilma e em decisões de seu governo. Esse futuro se potencializa grandemente com as alianças plurais feitas nos últimos anos, incluindo os BRICS e a cooperação Sul-Sul. Alianças contribuem no esforço político de valorização das instituições e do multilateralismo numa política externa coerente com a complexidade de um mundo em transformação e condizente com a posição autônoma, de grandeza e relevância crescente do Brasil no plano internacional. Tal futuro mantém uma distância segura de aventuras militares não chanceladas pelo povo brasileiro e não-condizentes com suas tradições diplomáticas.

(*) Professor de Relações Internacionais da PUC-Rio

Publicado em Carta Maior