As vésperas da eleição europeia de 25 de maio de 2014, durante seu último encontro de campanha em Villeurbanne, o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, lançava solenemente um chamado à “insurreição democrática contra os populismos”. “Populismo”: quem não ouviu cem vezes estalar na boca dos pesquisadores de opinião, dos jornalistas ou dos sociólogos essa palavra-baú na qual jogamos de qualquer jeito a oposição – de direita ou de esquerda, votantes ou abstencionistas – às políticas colocadas em andamento pelas instituições europeias?

A inconsistência do substantivo “populismo” deriva em parte da diversidade de suas utilizações. No mundo político, a história do rótulo revela a extensão do espectro que ele recobre: da visão encantada dos camponeses que parodia o populismo russo (narodniki) à revolta dos fazendeiros do People’s Party nos Estados Unidos no fim do século XIX; dos populismos latino-americanos (Getúlio Vargas no Brasil, Juan Perón na Argentina) ao macarthismo; do pujadismo ao lepenismo no século XX; de Vladimir Putin a Hugo Chávez na era da globalização; do United Kingdom Independence Party (Ukip) à Aurora Dourada na Europa do século XXI; ou de Marine Le Pen a Jean-Luc Mélenchon na França de hoje. Essa última confusão, hoje banalizada, foi ilustrada (em sentido literal) pelo desenhista Plantu na revista semanal L’Express (19 jan. 2011), quando ele representou a dirigente do Front National (FN) e o copresidente do Front de Gauche [Frente de Esquerda] (FG) com o braço levantado, ambos portando ostensivamente uma braçadeira vermelha e lendo o mesmo discurso: “Todos podres!”.

No campo literário, a palavra “populismo” apareceu em francês em 1929: “postura assumida de escrita” insurgida contra o romance burguês, mas apolítico, oposta aos escritores comunistas e a suas imagens ingênuas do proletariado, esse movimento literário propunha-se a “descrever simplesmente a vida das ‘pessoas simples’”.1

No universo das ciências sociais, levada por uma intenção política de reabilitação do popular, ela aplica o relativismo cultural ao estudo das culturas dominadas (Volkskunde ouProletkult). Ignorando ou diminuindo a importância das relações objetivas de dominação, ela credita às culturas populares uma forma de autonomia e celebra sua resistência, até inverter os valores dominantes e proclamar a “excelência do vulgar”. Mas ela também se opõe a uma forma corrente de desprezo que relaciona as classes dominadas à falta de cultura, à natureza e até mesmo à barbárie. Característica da burguesia e da pequena burguesia culta, esse racismo social baseia-se na “certeza própria a uma classe de monopolizar a definição cultural do ser humano, e então dos homens que merecem ser plenamente reconhecidos como tais”.2

Duas visões de povo

Ao circular assim de um campo ao outro, de um século ao outro, de um continente ao outro, o rótulo parece ter perdido qualquer consistência. Dessa forma, aqueles que se dedicam a explicar seu sentido cometem, segundo as palavras do filósofo Ludwig Wittgenstein, um erro clássico: “tentar, por trás do substantivo, encontrar substância”.3 Pretender, pois, definir o populismo, como propõe o cientista político Pierre-André Taguieff,4 como uma nomenclatura relacionada diretamente ao povo não exclui evidentemente ninguém no seio das sociedades ocidentais: tal procedimento é inerente à democracia, “governo do povo, pelo povo e para o povo”. E, mesmo se reservarmos o rótulo populista a um estilo de denominação que privilegie a proximidade e cultive o carisma do chefe fortemente reforçado pela propaganda televisiva, não podemos enxergar com nitidez qual dirigente atual poderia escapar a ele.5 Além do mais, definir o populismo como um encorajamento à revolta contra as “elites” (econômicas, políticas, midiáticas) levaria a incluir ao número de suspeitos François Hollande, quando, na tribuna do Bourget, em 22 de abril de 2012, ele denunciou seu “verdadeiro adversário: o mundo das finanças, que não tem nome, não tem rosto”, e Nicolas Sarkozy atacando vigorosamente em Toulon um “capitalismo financeiro que se tornou louco por não estar submetido a nenhuma regra” (25 set. 2008).

A cientista política Nonna Mayer estima que a característica mais bem partilhada pelos movimentos europeus qualificados como populistas nas análises pós-eleitorais seria a xenofobia:6 no “mosaico eurofóbico” composto pelo jornal Le Monde (28 maio 2014), catorze dos dezesseis partidos mencionados são anti-imigrantes. Todavia, editorialistas, assimilando a contestação das instituições europeias a uma forma de hostilidade aos estrangeiros, colam também a etiqueta de populista nas esquerdas radicais grega, espanhola e francesa (Syriza, Podemos, FG), que, no entanto, são pouco suspeitas de racismo. É preciso então se perguntar sobre suas representações do povo e questionar a substituição de um rótulo por outro.

Esquematicamente, podemos distinguir três figuras do “povo”.7 “Populismo” deriva do latim populus, e “democracia” se forma sobre a raiz grega dêmos, as duas palavras significando “povo”. O povo ao qual faz referência a democracia é o corpo cívico em seu conjunto, o povo-nação, de onde surge um desvio sempre possível para o nacionalismo – do qual uma forma contemporânea, menos fustigada que a outra, exalta a “competitividade da França num mundo globalizado”. Já o povo ao qual se dirigem os populistas corresponde a duas definições distintas.

Na versão de direita, ele é mais ethnos que dêmos: povo invadido ou ameaçado de invasão, ele se opõe ao estrangeiro e ao imigrante. Mais ou menos abertamente xenófobo e, na França contemporânea, antiárabe ou islamofóbico, ele defende a identidade do povo-ethnos, suposta e culturalmente intacta e homogênea, contra as populações oriundas da imigração e tidas como inassimiláveis. Ele se apresenta como nacional. Dessa forma, mesmo que opostas quanto à Europa e à globalização, as estratégias eleitorais da União por um Movimento Popular (UMP) e do FN são idênticas. Para selar uma aliança a priori improvável, mas eleitoralmente necessária, com as classes populares, trata-se, nesta versão de direita, de substituir sua visão do mundo – “eles (os de cima)”/“nós (os de baixo)” – por uma abordagem opondo um “nós (os de baixo)” àqueles “que não trabalham e não querem trabalhar” (desempregados, imigrantes, beneficiados por ajudas sociais); em suma, a um “eles” abaixo de “nós”.8 Reativamos assim o conflito latente entre estabelecidos e marginais9 ao jogarmos com o medo do rebaixamento de classe.

A afiliação reivindicada dos meios populares às classes médias, a ostentação da honestidade e a estigmatização moral dos delinquentes e dos “preguiçosos” permitem se distinguir da representação dominante que assimila classes trabalhadoras e classes perigosas. É por isso que a direita propõe medidas como a limitação da imigração dita “de trabalho” e manifesta sua vontade de estabelecer um teto à renda dos beneficiários dos auxílios sociais e de obrigá-los a realizar trabalhos de interesse geral. Ela preserva assim a especificidade daquele que “trabalha duro” e favorece a aliança entre uma fração declinante das classes dominantes (o pequeno patronato) e a fração estabelecida das classes populares.

Na versão de esquerda, ao contrário, o povo designa o povo operário, o povo simples celebrado por Jules Michelet, o povo-plebe, “os de baixo” e, num plano político, o povo mobilizado, oposto aos de cima, à burguesia, às classes dominantes, ao establishment, aos privilegiados, aos detentores dos poderes econômico, político, midiático etc.

Quanto aos contornos de “povo popular”, se a classe operária foi por muito tempo o centro, a vanguarda (o populismo tornando-se então “operariarismo”), eles incluem também os empregados – mulheres, em sua esmagadora maioria – e, para além disso, uma fração mais ou menos extensa dos camponeses e da pequena burguesia (professores, funcionários da área de saúde, técnicos, engenheiros etc.). Em outras palavras, no caso francês, mais de três quartos dos ativos, dos quais apenas os operários e os empregados representam a metade. “Somos o partido do povo”, dizia o dirigente comunista Maurice Thorez em 15 de maio de 1936 (antes que esse partido se tornasse, muitas décadas depois, o das “pessoas”, segundo Robert Hue). Com inspiração mais ou menos marxista, esse tipo de “populismo”, defensor das classes populares enquanto exploradas, oprimidas, em luta contra as classes dominantes, apresenta-se frequentemente como socialista. As representações que servem de base para as denominações do povo-ethnos(populismo nacional) e aquelas que invocam ao contrário o “povo popular” (populismo socialista) se opõem como a direita se opõe à esquerda. Mas os advogados de um populismo popular cultivam com boa vontade – tanto por convicção quanto por necessidade – uma visão encantada, por vezes estetizante, de um povo idealizado. Eles dão ao “homem comum”, trabalhador explorado e dominado, uma reivindicação espontânea de igualdade. Eles postulam um conjunto de virtudes indissociáveis do ethospopular tradicional: solidariedade, autenticidade, naturalidade, simplicidade, honestidade, bom senso, lucidez, até mesmo sabedoria. Essas qualidades estão cristalizadas na noção de “decência comum” (common decency) cara ao escritor britânico George Orwell: “Os trabalhadores manuais, em uma civilização industrial, possuem certo número de traços que lhes são impostos por suas condições de existência: a lealdade, a ausência de calculismo, a generosidade, o ódio aos privilégios. É com base nessas disposições que eles desenvolvem sua visão da sociedade futura, o que explica por que a ideia da igualdade está no coração do socialismo dos proletários”.10

Assim, não seria possível pretender que os discursos securitários e xenófobos do FN não tenham eco junto às classes populares. Nas últimas eleições europeias, mesmo que 65% dos operários tenham se abstido (como 68% dos funcionários públicos e 69% dos desempregados), mais de 40% daqueles que votaram teriam escolhido esse partido, ou seja, cerca de 15% desse grupo em sua totalidade (segundo o instituto Ipsos). É ao mesmo tempo pouco e muito: se é verdade que o maior partido das classes populares ainda é o da abstenção,11 uma parte delas vota à extrema direita, convencida de que “ninguém faz nada por elas e que ‘aqueles’ de cima e ‘aqueles’ de baixo prosperam à sua custa”.12 Nesse caso, o sucesso da oferta do FN ilustra a capacidade do partido em manter a confusão entre o povo ethnos e o povo dêmos, e em formar entre as frações de classes médias e de classes populares uma aliança dirigida ao mesmo tempo contra os muito pobres e os muito ricos – uma estratégia também usada na Rússia por Putin.

Um povo que vota mal entregue às suas pulsões

Esse tipo de projeto político aproveita-se do “racismo de classe” que manifestam até mesmo sem se dar conta aqueles que o comentam. Sob suas plumas, esse povo que vota mal, implicitamente reduzido ao estado de populacho, patinaria em uma propensão inata ao fechamento, ao ensimesmamento, em um ressentimento adquirido de mau aluno diante das elites (o que seria atestado por seu nível baixo de diploma) e de uma incultura política: suas pulsões, sua credulidade, sua irracionalidade supostas o levariam em direção às propostas simplistas e fariam dele uma presa fácil para os demagogos. Ao contrário, esse discurso reserva às ditas elites as virtudes de abertura, inteligência, sutileza e superioridade moral. A denúncia do povo popular, encarnado pela figura do “beauf”,13 machista, homofóbico, racista, islamofóbico etc., renova assim a filosofia conservadora do fim do século XIX e sua desconfiança das multidões e da democracia – as de Hippolyte Tainte e de Gustave Le Bon. Ela deduz essas torpezas pela simples inversão das virtudes que credita às “elites”, as quais, por construção, são suposta e rigorosamente impermeáveis a esse tipo de desvio.

Desse modo, hoje como ontem, duas representações diametralmente opostas do populismo se enfrentam: o racismo de classes de uns serve para denunciar o populismo dos outros. 

Gerard Mauger

Diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS − Centre Nationalde la Recherche Scientifique). Recentemente, publicou La sociologie de la délinquance juvénile[A sociologia da delinquência juvenil], Paris, La Découverte, Col. Repères, 2009.

Ilustração: Dahmer

1  Philippe Roger, “Le roman du populisme” [O romance do populismo], Critique (especial “Populismes”), n.776-777, Paris, jan.-fev. 2012.

2  Claude Grignon e Jean-Claude Passeron, Le savant et le populaire [O sábio e o popular], Seuil, Paris, 1989.

3  Ludwig Wittgenstein, Le Cahier Bleu et le Cahier Brun [O Livro Azul e o Livro Marrom], Gallimard, Paris, 2004.

4  Pierre-André Taguieff, L’illusion populiste. De l’archaïque au médiatique [A ilusão populista. Do arcaico ao midiático], Berg International, Paris, 2002.

5  Ler Serge Halimi, “Le populisme, voilà l’ennemi!” [O populismo, eis o inimigo!], Le Monde Diplomatique, abr. 1996.

6  Nonna Mayer, “Le populisme est-il fatal?” [O populismo é fatal?], Critique, op. cit.

7  É o que propõe Jacques Rancière com “L’introuvable populisme” [O populismo impossível de ser encontrado]. In: Alain Badiou et al., Qu’est-ce qu’un peuple? [O que é um povo?], La Fabrique, Paris, 2013. Quanto às “Vinte e quatro notas sobre a utilização da palavra povo”, propostas na mesma obra por Alain Badiou, podemos sem dificuldade reduzi-las a três: “nacional”, “operário” e “racial”.

8  Cf. Robert Castel, “Pourquoi la classe ouvrière a perdu la partie” [Por que a classe operária perdeu o jogo]. In: La montée des incertitudes. Travail, protections, statut de l’individu [O crescimento das incertezas. Trabalho, proteções, estatuto do indivíduo], Seuil, 2009.

9  Sobre essa distinção entre established e outsiders, cf. Norbert Elias e John L. Scotson, Logiques de l’exclusion. Enquête sociologique au cœur des problèmes d’une communauté [Lógicas da exclusão. Pesquisa sociológica no coração dos problemas de uma comunidade], Fayard, Paris, 1997 (1. ed.: 1965).

10      New English Weekly, Londres, 16 jun. 1938. Citado por Jean-Claude Michéa, Orwell, anarchiste tory [Orwell, anarquista conservador], Climats, Castelnau, 2000.

11     Ler Céline Braconnier e Jean-Yves Dormagen, “Ce que s’abstenir veut dire” [O que se abster quer dizer], Le Monde Diplomatique, maio 2014.

12      Robert Castel, op. cit.

13      O “beauf” é um personagem de história em quadrinhos inventado por Cabu nos anos 1970. Ele encarna um tipo ideal de racista, sexista e homofóbico. Na mesma época, Les Bidochon, HQ desenhado por Binet, apresentava personagens do mesmo tipo.


Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil