O governo Dilma viveu recentemente dias de intensa atividade diplomática. Após o encerramento da Copa do Mundo (prestigiado por diversos chefes de estado e governo) houve a cúpula dos líderes dos países BRICS em Fortaleza, celebrada pela criação do Novo Banco de Desenvolvimento (o “Banco dos BRICS”). Em seguida, houve a reunião de cúpula da UNASUL.

A aceleração do calendário diplomático contrasta com críticas, frequentes nos meses anteriores, de que a Presidenta pouco se importava com questões de política externa. Seria Julho de 2014 um ponto fora da curva?

Um ano antes da apoteose diplomática, Dilma enfrentava questionamentos no plano doméstico que incidiam sobre sua política externa. À época, três manifestações da soberania brasileira tiveram sua fragilidade exposta em sequência.

Primeiro, a sede da diplomacia brasileira. Nas manifestações de Junho, o Palácio do Itamaraty foi ocupado e atacado. Em seguida, a privacidade da Presidência. Em Julho, Edward Snowden denunciou que Dilma foi alvo de espionagem eletrônica pela agência norte-americana NSA. Por fim, representações diplomáticas brasileiras. Em Agosto, aconteceu a cinematográfica fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina da embaixada brasileira em La Paz (onde esteve durante 13 meses, sem status jurídico definido) para Corumbá, auxiliado por um diplomata brasileiro.

A sobreposição de crises conferiu à política externa de Dilma uma aparência disfuncional. Essa percepção vitimou a figura pública responsável pela diplomacia brasileira. Antônio Patriota foi demitido do Ministério das Relações Exteriores em Agosto. Fragilizado pela ocupação do Itamaraty e nas relações com a Bolívia (após prolongada prisão de torcedores brasileiros naquele país, acusados e julgados com celeridade pela morte de um torcedor boliviano em Fevereiro), Patriota perdeu o cargo após a fuga da embaixada em La Paz, apenas alguns dias após a visita do Secretário de Estado norte-americano John Kerry ao Brasil, durante a qual o tema da espionagem eletrônica não foi enfatizado.

Mudanças no Itamaraty manifestaram uma das linhas mestras da política externa de Dilma – o desalinhamento entre Brasil e EUA. Dilma cancelou sua visita aos EUA, marcada para Outubro (a primeira de um mandatário brasileiro desde 1995) e foi à ONU, onde acusou a espionagem eletrônica de violar a soberania e os direitos humanos. Propôs, em seguida, a criação de um mecanismo multilateral para combater a espionagem eletrônica. A iniciativa ganhou fôlego no esteio de uma resolução da Assembleia-Geral da ONU (Novembro) e de uma conferência internacional em São Paulo para reformular a gestão da Internet (Abril, 2014).

Divergências entre o Brasil e os EUA se estenderam ao longo de 2014 na Síria, Ucrânia e Gaza. Em março, John Kerry acusou os BRICS de “relativismo moral”. O grupo se absteve em votação na Assembleia-Geral da ONU condenando a invasão russa da Criméia, parte do esforço dos EUA de impor sanções (condenadas pelos BRICS) à Rússia.

O desalinhamento brasileiro não se confunde com uma postura de antagonismo para com os Estados Unidos. Assim como nos anos 1970 – quando, à revelia da superpotência, a ditadura brasileira comprou reatores nucleares da Alemanha (Ocidental) e reconheceu o governo socialista de Angola – o governo Dilma manifesta os limites que o alinhamento automático imporia sobre a realização de objetivos brasileiros. O Brasil adota uma postura cautelosa de manutenção de sua autonomia, sem deixar de colaborar com os EUA em questões de interesse comum (como a manutenção da paz no Haiti).

A partir desse desalinhamento combinado com cooperação seletiva, outra linha mestra da política externa de Dilma vem à tona: o pragmatismo, fundado na autonomia. Este pragmatismo é uma das características que aproximam os países BRICS – e, ao mesmo tempo, um elemento que dificulta a consolidação de políticas comuns do grupo.

O pragmatismo faz com os BRICS se agreguem para contestar soluções (intervencionistas) para controvérsias internacionais, oferecidas por Europa e EUA. Em contraste, os BRICS apoiam, com limitado engajamento, negociações multilaterais no sistema ONU (Síria, Gaza).

Porém, ao manter suas respectivas autonomias, os BRICS têm dificuldades para produzir respostas conjuntas. Mantêm questões politicamente sensíveis distantes da deliberação conjunta, agindo unilateralmente. Caso da Rússia na Ucrânia (Fevereiro, 2014), da China nas Coréias (Março, 2013) e do Brasil após as eleições presidenciais de Horácio Cartes no Paraguai e Nicolás Maduro na Venezuela (Abril, 2013). Essas crises foram enfrentadas individualmente pelos BRICS ou via instituições regionais (no caso brasileiro, MERCOSUL e UNASUL).

A novidade da cúpula dos BRICS não foi, portanto, o ressurgimento da política externa no governo Dilma. A cúpula consolidou as duas linhas de ação da política externa da atual gestão.

A criação de instituições conjuntas dos cinco países (o “Banco dos BRICS” com 50 bilhões de dólares em caixa e o Fundo de Reservas de 100 bilhões de dólares para o enfrentamento de crises) são fruto do pragmatismo. O Brasil abriu mão da presidência do “Banco dos BRICS” para que as negociações fossem bem-sucedidas.

Novas instituições também manifestam o desalinhamento entre Brasil e EUA. Questionam o quase monopólio das instituições de Bretton Woods na regulação da economia internacional. Os BRICS pleitearam reformas no FMI e Banco Mundial – o que indica não seu antiamericanismo, mas sua busca por ter suas autonomias reconhecidas. O malogro das reformas incentivou os BRICS a investir em interesses compartilhados pós-2008 (estado como motor do crescimento econômico, prevenir crises internacionais).

O desalinhamento e o pragmatismo provocam incômodo, frustrando expectativas sobre o lugar do Brasil no mundo – associado a um menor engajamento em questões internacionais. Tal ocorreu na crise em Gaza.

Inicialmente, o Brasil condenou o uso da força tanto por Israel quanto por grupos palestinos. Os BRICS conclamaram todos os lados a respeitar o direito internacional humanitário e a aceitar um cessar-fogo mediado pela ONU. Em votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil e a maioria votaram favoravelmente a investigar internacionalmente a invasão israelense. Os Estados Unidos foram os únicos a votar contra a medida. Em seguida, o Brasil condenou o uso desproporcional da força por Israel – país com quem possui fortes laços comerciais, inclusive no setor militar. A convocação do embaixador brasileiro em Tel Aviv para consultas acirrou os ânimos. Repetindo a fala de Kerry, Israel acusou o Brasil de “relativismo moral” e as críticas brasileiras como atitudes de um “anão político”.

O posicionamento brasileiro abandona a posição de quem se aguarda o silêncio. A reação de Israel é sinal de que a voz do governo brasileiro não é irrelevante, tampouco berros de um anão. A atitude brasileira foi simultânea à condenação das ações de Israel na ONU. Em contraste com o (malsucedido) apoio incondicional dos EUA a Israel, o Brasil adotou atitude pragmática legitimada multilateralmente. A convocação do embaixador fora feita, na véspera, pelo governo do Equador. As atitudes brasileiras não demonstram pequenez e isolamento, mas autonomia.

(*) Professor de Relações Internacionais na PUC-Rio