No último dia 11 de julho, completaram-se 110 anos do nascimento de um dos maiores poetas do século XX, o chileno Pablo Neruda. Prêmio Nobel de 1971, o autor foi lembrado em diversos cantos do planeta e teve sua obra revisitada com leituras públicas, republicações e análises críticas. Apesar de a figura de Neruda ser capaz de mobilizar muita gente em torno de si, demonstrando atualidade e vigor, em quase todas as manifestações que lembram sua obra poética verifica-se um esforço, consciente ou não, para o esmaecimento da força política de sua obra, através da construção de uma abordagem desproblematizadora do seu engajamento poético e ético com as lutas históricas da esquerda mundial.

A obra de Neruda está articulada a uma imensa teia de projeções utópicas que, durante o século XX, foram eficientes ao confrontar, colocar em xeque e, nos melhores casos, ensaiar uma superação dos modelos burgueses de existência social. A produção e a apreciação estética, como aspectos fundamentais das mediações entre os homens em sociedade, não estavam fora deste escopo utópico. Tratava-se, no caso de Neruda e de tantos outros que lhe faziam companhia, de lutar por novas formas de comunicação e sensibilidade poéticas, a partir do legado deixado pelo que de melhor a cultura ocidental produzira. Dessa forma, o trabalho estético de gerações de poetas que incluem, por exemplo, Brecht e o próprio Neruda, consistia em, conscientemente, apropriar-se de códigos consagrados pela cultura burguesa e reverter-lhes a polaridade poética e ideológica, a fim de que se tornassem algo menos individualista ou ensimesmado e que encarnasse de fato o desejo de transformação social inerente à luta contra o capitalismo.

É claro que essa aventura não era simples e o fracasso, em termos poéticos, era muito frequente. Mas, no caso dos grandes poetas, como Neruda, o saldo é amplamente positivo no que se refere à criação de uma forma poética ao mesmo tempo rigorosa e popular, complexa e significativamente reveladora da vida “simples como o pão”, conforme o próprio poeta gostava de dizer. O programa poético de Neruda incluía a ideia do poeta como alguém que encarna uma “voz civil”, representativa do povo e, por extensão, dos anseios mais profundos de uma forma coletiva nacional que àquela altura apreendia o andar da história a partir de um ângulo periférico em relação ao centro do sistema capitalista. Para isso, contudo, era preciso promover uma espécie de esforço “desintoxicante” da linguagem poética.

Para que o leitor de hoje tenha uma ideia da consistência desse empenho vale relembrar que Neruda proclamava, desde o seu Canto Geral (1950), uma forma de colocar-se contra os: “intelectualistas gideanos, os ofuscadores rilkeanos da vida, os prestidigitadores existencialistas especiosos, papoulas surrealistas, brilhantes apenas nos seus túmulos, carcaças da moda europeizante, larvas pálidas no queijo do capitalismo”. Era, pois, um esforço em grande medida destrutivo, que, todavia, se observado com atenção, não era pura negação. Tudo isso contra que Neruda se posicionava já estava há muito arraigado como valor intrínseco de sua dicção poética, entre barroca e retórica, na melhor tradição da poesia espanhola. A inflexão política de Neruda, implicava trabalho também com esses elementos “barrocos” que ele tentava negar, mas que estavam já inexoravelmente incrustados na sua gramática poética particular. O caso, portanto, era mais o de extrair efeitos políticos/estéticos novos das contradições entre a velha retórica espanhola, o hermetismo universal e o desejo de construir uma poesia rigorosa e verdadeiramente popular. Tudo isso explicitado por uma voz cujo lócus político enunciativo fosse capaz de assumir as contradições da experiência nacional.

Numa conferência de 1953, esses dilemas são expostos com grande franqueza por Neruda: “Para mim foi um grande esforço sacrificar a obscuridade em favor da clareza, pois a obscuridade da linguagem se tornou um privilégio de uma casta literária de nosso país”. E, para ele, sacrificar a obscuridade era assumir a dilemática tarefa de, após formar-se como típico poeta do mundo burguês, escrever uma poesia “como o pão que pode ser partilhado por todos, por homens doutos e camponeses, por toda a nossa inteira, imensurável e maravilhosa família de gente”. Era desse modo que a poesia se proclamava, altissonante e delicada, como partícipe de um desejo por novas formas de democracia popular em escala nacional e universal.

Com isso, Neruda integrava-se a um movimento de amplo alcance, do qual participavam poetas da Europa e das Américas, que foi muito bem caracterizado pelo crítico Michael Hamburger como “Uma nova austeridade” . As palavras do estudioso são luminosas para entender a consistência poética/política do fenômeno Neruda. Segundo ele, a chamada “nova antipoesia”: “surgiu de uma aguda desconfiança de todos os recursos com os quais a poesia lírica mantivera sua autonomia. Para os novos antipoetas, não bastava que a poesia fosse tão bem escrita quanto a prosa. Ela deveria também ser capaz de comunicar de maneira tão direta quanto a prosa, sem recorrer a uma linguagem especial, que se distinguisse sobretudo por seu caráter altamente metafórico”. Ou seja, no limite, este grande movimento estava interessado em fazer da poesia uma forma de comunicação menos rebuscada e mais austera. Algo simples e necessário “como o pão”, à altura das exigências políticas e sociais do seu tempo. E isto se converteu em um verdadeiro “princípio de busca” da poesia de Neruda, que podemos ver presente inclusive na sua lírica amorosa. Os versos do poema número 5 de Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, são emblemáticos nesse sentido: “Para que tú me oigas/ mis palabras/ se adelgazan a veces/ como las huellas de las gaviotas en las playas”.

Neruda alçou suas palavras “como as asas das gaivotas nas praias” também com o fito de que se proporcionasse uma nova fruição da poesia. Não por acaso, o poeta declamava seus poemas para grandes audiências, como na oportunidade em que ganhou o prêmio Nobel e foi convidado por Salvador Allende para ler poesia para mais de 70 mil pessoas no Estádio Nacional do Chile em 1971. Se a obra de Neruda foi uma espécie de sonho produtivo da poesia latino-americana, a realidade opressiva do imperialismo e do subdesenvolvimento estava ali sempre disposta a desmentir a realização desse sonho. Foi em meio a circunstâncias terríveis da história chilena que a sensibilidade e o empenho da poesia de Neruda se calaram. Poucos dias depois da morte de Allende durante o golpe perpetrado pelas forças lideradas por Augusto Pinochet, o poeta morreu, em decorrência de um câncer, em 23 de setembro de 1973. Sua voz, entretanto, converteu-se em um canto de todos que lutam pela esperança e contra todas as formas de opressão. É isto que, ao evocar Neruda, não devemos esquecer.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com