O Le Monde Diplomatique Brasil me concede generosamente a oportunidade de discorrer sobre o tema do desenvolvimento brasileiro, seus entraves e perspectivas. Vou concentrar a argumentação em uma das minhas obsessões: perda de posição da indústria brasileira de transformação no âmbito das reconfigurações do parque manufatureiro global. (Os velhos não escrevem, mas reescrevem ideias que já tiveram, se é que tive alguma.)

Na transição dos anos 1970 para os 1980, o Brasil afastou-se das tendências da indústria global, ou seja, deixou de incorporar os novos setores e, portanto, as novas tecnologias da chamada Terceira Revolução Industrial. Falamos da informática, da microeletrônica, da química fina e da farmacêutica.

No mesmo passo, a organização empresarial brasileira distanciou-se das novas formações empresariais que surgiam sobretudo nas vibrantes economias exportadoras asiáticas, impulsionadas por agressivas políticas industriais e de exportação de manufaturados. No final dos anos 1970, a produção e exportação de manufaturados brasileiros eram próximas ou superiores às de seus concorrentes asiáticos. Hoje esses países têm posições que são um múltiplo da produção e exportação brasileiras de manufaturados.

Nos anos 1980, a economia brasileira foi submetida à regressão industrial e econômica deflagrada pela crise da dívida externa e suas consequências fiscais e monetárias (enormes déficits fiscais e alta inflação com indexação generalizada). Nesse período, favorecidas pelas políticas liberais nos países desenvolvidos e pelas iniciativas domésticas de fortalecimento industrial e de exportação de manufaturados, as grandes empresas asiáticas, particularmente as coreanas, seguiram o exemplo japonês dos anos 1960 e 1970 e iniciaram uma escalada de internacionalização. Atualmente, essa estratégia é perseguida pelos chineses.

No entanto, não há como compreender a trajetória da economia brasileira nos últimos anos sem mencionar os equívocos de “visão” acolhidos pelas políticas econômicas. Tais distonias cognitivas nos levaram à regressão industrial. A relativa complexidade do fenômeno torna difícil sua compreensão e comunicação no debate público em razão da disseminação de simplificações midiáticas e da partidarização das posições em confronto.

Nos anos 1990, um novo ciclo de liquidez internacional ensejou a almejada estabilização do nível geral de preços. As classes conservadoras e conversadoras não aprendem e – ao contrário dos Bourbons – tampouco se lembram de coisa alguma. Diante da pletora de dólares, passaram a salivar com intensidade e patrocinar as visões mais grotescas a respeito das relações entre desenvolvimento econômico, abertura da economia e relações entre política fiscal e monetária. Aproveitaram a abundância de dólares para matar a inflação, mas permitiram a valorização do câmbio, sob a alegação primária (exportadora?) de que a liberalização do comércio e dos fluxos financeiros promoveria a alocação eficiente dos recursos. Nessa visão, os ganhos de produtividade decorrentes das mudanças no comportamento empresarial diante do câmbio valorizado seriam suficientes para dinamizar as exportações, atrair investidores externos e deslanchar um forte ciclo de acumulação. Mas, na vida real, a abertura comercial com câmbio valorizado e juros altos suscitou o desaparecimento de elos das cadeias produtivas na indústria de transformação, com perda de valor agregado gerado no país, decorrente da elevação dos coeficientes de importação – sem ganhos nas exportações – em cada uma das cadeias de produção. Para juntar ofensa à injúria, essa forma anacrônica de abertura afastou o Brasil do engajamento nas cadeias produtivas globais.

Com essa estratégia, o crescimento da economia brasileira foi pífio. O investimento estrangeiro buscou o agronegócio e os serviços, enquanto a construção de uma nova capacidade produtiva na manufatura deslocou-se para regiões mais atraentes, como a China, onde as políticas cambial e monetária favoreceram as iniciativas de política industrial e construíram o caminho para o rápido crescimento da exportação de manufaturados. Os dados da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram que a China avançou velozmente na sua participação nas exportações mundiais. Suas vendas externas evoluíram de menos de 2% em 1998 para 10,4% em 2012. A China figura em primeiro lugar no ranking dos grandes exportadores, superando a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos.
A partir de 2003, ainda à sombra de uma política monetária excessivamente conservadora, o país executou uma política fiscal prudente com queda das dívidas bruta e líquida como proporção do PIB. A acumulação de reservas construiu defesas para prevenir os efeitos de uma eventual crise de balanço de pagamentos. Isso foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável que levou às alturas os preços das commodities.
Nesse ambiente benfazejo, a política econômica do governo Lula não corrigiu os enganos dos anos 1990, mantendo a taxa de juros e o câmbio fora do lugar. Criou-se uma situação do tipo “há bens que vêm para o mal”, ou seja, o câmbio valorizado era compensado pelos preços generosos dos produtos primários formados num mercado mundial superaquecido.

Nas condições descritas, seria desejável buscar uma combinação câmbio-juro real mais estimulante para o avanço das exportações e para o investimento nos setores mais dinâmicos do comércio mundial. Esses seriam passos decisivos para a integração do país nos fluxos de exportação e importação exigidos pela nova configuração da indústria global.

Desde a década de 1980, o investimento das grandes empresas transnacionais nos mercados emergentes dinâmicos aumentou a participação dos fluxos de comércio intraempresas e intraindústrias.
Nas decisões de investimento passou-se a buscar uma divisão do trabalho entre o core business da grande empresa e configurações mais eficientes para o suprimento de peças, partes e componentes para o abastecimento do mercado mundial.

É natural, portanto, que essas novas relações entre investimento e comércio exigissem uma maior flexibilidade na importação de insumos, componentes, partes e peças. De outro lado, essa abertura pura e simples às importações não seria suficiente como fator de atração do investimento externo, na ausência de um regime cambial e de incentivos favorável às exportações. A abundante literatura sobre o desenvolvimento das economias do Leste Asiático demonstra inequivocamente que a forte promoção de exportações antecedeu e combinou-se virtuosamente com a abertura comercial.

O equívoco dos proponentes da abertura comercial pura e dura começa quando atribuem à abertura da economia – independentemente da configuração de preços relativos entre tradeables e non tradeables – virtudes sobrenaturais e desconhecidas na literatura econômica relevante sobre o tema.

O Brasil encerrou os anos 1990 e atravessou a década seguinte com uma regressão da estrutura industrial, ou seja, não acompanhou o avanço e a diferenciação setorial da manufatura global e, ademais, perdeu competitividade e elos nas cadeias que conservou. Contrariamente ao afirmado pela vulgata neoliberal a respeito da globalização, o movimento de relocalização manufatureira foi determinado por duas forças complementares: o movimento competitivo da grande empresa transnacional para ocupar espaços “competitivos” e as políticas nacionais dos Estados soberanos nas áreas receptoras.

A crise de 2008 acirrou a concorrência mundial à proporção que os mercados se contraíam. Isso deixou ainda mais patente a fragilidade da inserção externa da economia brasileira. Não por acaso, as medidas de incentivo tributário perdem eficácia, neutralizadas pelo pecado original da valorização da moeda. Isso, além de comprometer o crescimento, o equilíbrio fiscal e a conta-corrente do balanço de pagamentos, coloca pressão sobre a taxa de juros. Para quem tem um conhecimento elementar dos processos de industrialização e de expansão industrial das economias emergentes, a manutenção do câmbio sobrevalorizado ao longo de muitos anos é um erro crasso de política econômica que afeta negativamente a política fiscal e a monetária.

Após a estabilização dos anos 1990 e na sequência de uma década de proteção forçada pela crise cambial, era imprescindível e saudável proceder a uma abertura comercial gradualista, preservando-se uma taxa de câmbio estimulante às exportações. Na década de 1990, depois da estabilização, a antecipação precipitada do último estágio da reforma tarifária associou-se à apreciação nominal do câmbio para engendrar o fenômeno prodigioso da abertura com viés antiexportador. Esse gesto teve graves consequências. Na prática conseguimos transformar um superávit comercial de US$ 10 bilhões no final de 1994 em um déficit anualizado que alcançou US$ 10 bilhões no primeiro trimestre de 1995.

É lamentável que perdure a identificação entre ganhos de produtividade e competitividade internacional. Além dos fatores sistêmicos favoráveis como câmbio adequado, custo de capital reduzido e infraestrutura eficiente, a competitividade depende de certas características da estrutura empresarial, particularmente da capacidade de inovação em empresas com estratégias agressivas de conquista de mercados ou da competência de redes de pequenas e médias empresas na ocupação de nichos de mercado.

É bastante reconhecida a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades positivas estão a construção de infraestrutura e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico. A existência de assimetria de informação afeta particularmente os mercados de crédito e de capitais e o mercado de câmbio, podendo dar origem não só à alocação ineficiente de crédito e à marginalização de pequenas empresas, bem como ensejar episódios especulativos. A incerteza, por sua vez, além de provocar volatilidade recorrente nos mercados de valores mobiliários, tem, por isso mesmo, efeitos adversos sobre o investimento produtivo, sobretudo aquele que envolve inovação. O risco elevado inibe operações de longo prazo de maturação.

As falhas de mercado até agora analisadas recomendariam apenas a adoção de políticas “horizontais” e minimalistas. As condições de concorrência nas áreas mais dinâmicas da moderna economia industrial impõem, no entanto, intervenções estratégicas e concebidas de forma a abranger cadeias industriais inteiras.

Isso diz respeito às vantagens competitivas construídas pelas empresas em suas relações com fornecedores e clientes. O novo paradigma industrial vem acentuando sobremaneira a importância dessas vantagens. Entre elas devemos destacar: 1) processos cumulativos de aprendizado – learning by doing – na produção flexível, no desenvolvimento de produtos; 2) economias de escala dinâmicas (ganhos de volume associados ao tempo e ao aprendizado); 3) estruturação de redes eletrônicas de intercâmbio de dados que maximizam a eficiência ao longo das cadeias de agregação de valor (economia de capital de giro – sobretudo minimização de estoques, de custos de transporte e de armazenagem); 4) novas economias de aglomeração (centros de compras e de assistência técnica e formação de polos de conhecimentos técnicos e gerenciais); e 5) economias derivadas da cooperação tecnológica e do codesenvolvimento de produtos e processos.

A literatura relevante na área de estratégias empresariais (Porter, Drucker) ou no âmbito da economia industrial (Dosi, Freemann, Arcangeli, Zysmann, Tyson, Malerba) reconhece o caráter decisivo desses processos e, sem exceção, observa que conformam um padrão de concorrência radicalmente distinto do paradigma anterior. Este último era baseado em produção padronizada, tecnologia codificada, escalas rígidas, aversão à cooperação. Os autores, em sua maioria, assinalam que a coordenação do Estado foi muito importante para acelerar a mudança de paradigmas, particularmente nas economias que estavam em processo de industrialização rápida.

A nova concepção de políticas industriais ou de competitividade coloca no centro das preocupações a indução daquelas sinergias baseadas no conhecimento e na capacidade de resposta à informação. O novo papel do Estado deve estar concentrado na indução da cooperação, na coordenação dos atores e na redução da incerteza. Sua tarefa não é a de “escolher vencedores”, mas a de criar condições para que os vencedores apareçam. 

Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor da Unicamp e presidente do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação.

Publicado em Le Monde Diploomatique Brasil.