“(…) e, você sabe, que se foda a União Europeia” (Victoria Nuland, vice-secretária norte-americana de Estado para Assuntos Europeus, a Geoffrey Pyatt, embaixador dos EUA na Ucrânia, 8/2/2014).

1. Já havia sublinhado: o prolífico historiador britânico Niall Ferguson (direita, ex-assessor de J. McCain), o polonês-estadunidense e estrategista fanático do império americano Z. Brzezinski, e o comunista e ex-premiê chinês W. Jiabao (“O século XXI será o século asiático”, dissera) convergem – matizadamente, enfatize-se – na interpretação acerca do processo de decadência da civilização ocidental, vis-à-vis a ascensão Oriental. No centro e nitidamente, o processo de declínio imperial dos EUA.

Parte fundamental da controversa problemática apontada, do ponto de vista estrutural, poderia ser captada por declarações como a que segue e feitas posteriormente pelo mesmo Ferguson:

– “A China superará Alemanha em termos de patente reconhecidas internacionalmente nos próximos dois anos, graças ao grande esforço por parte das instituições educacionais do país, como a instituição em que o David [Li] trabalha, para melhorar o nível de pesquisa e desenvolvimento e formar mais PhDs. E não estou falando de PhDs em comunicação, mas PhDs em engenharia e física” (em: O século XXI pertence à china? Um debate sobre a potência asiática – Henry Kissinger, Niall Ferguson, Fareed Zakaria, David Li (Elsevier/Campus, 2012 [2011], pp.52-3)
Essas interpretações sobre o cenário geoestratégico global trespassam às declarações (novembro de 2011) carregadas de ameaças à China, de Barack Obama, na Austrália. Obama afirmou que o anúncio da força militar conjunta e sua viagem à região Ásia-Pacífico é um claro sinal para os aliados dos Estados Unidos na região. “Somos duas nações do Pacífico e com a minha visita à região quero provar que os Estados Unidos vão aumentar seus compromissos com toda região Ásia-Pacífico”, declarou dedo em riste. E prosseguiu o chefão do império: “O fortalecimento de nossa aliança envia uma mensagem clara de nosso compromisso com esta região, um compromisso não perecível e indestrutível”.

Seguiram-se decisões (“verbais”) de severa redução no orçamento militar (cerca de U$ 500 bilhões em dez anos) e de quase 40% das tropas dispostas em suas bases estrangeiras, o caráter nevrálgico do sistema de alianças asiático emergiu com toda a força. Segundo discursara Obama, a relocalização dos alvos militares norte-americanos estratégicos naquela região passou a prioridade número um. Ocorrendo o mesmo para a disponibilização da sofisticação técnica da máquina de guerra imperialista, no sentido de concentrar o seu foco na região asiática.

2. Em seu mais recente (e notável) livro do professor Moniz Bandeira, o embaixador Samuel Guimarães adverte já cursar uma disputa pela hegemonia mundial entre o ocidente capitalista e estagnado, e o oriente capitalista dinâmico e subdesenvolvido. [1] Entretanto, o império americano visa e sustenta entre seus objetivos estratégicos:

Manter sua hegemonia militar em todas as regiões do globo (forças terrestres, navais e aéreas para bloquear a emergência de Estados militares rivais opositores e dissuasores que ameacem os EUA usar a força. Operam no sentido de desarmar ou intimidar Estados periféricos pretextando redução das tensões e defesa da segurança e da paz internacional. Possuem hoje 750 bases militares no planeta, 1,4 milhão de soldados, com 350.000 em 130 países.

Sob esse imbróglio militarização/déficit público crescente, no debate elencado acima (“O século XXI…”, p. 76), Ferguson faz ainda questão de advertir, aludindo a um artigo de Jim Backer, articulista do Wall Street Journal: conclui Backer [em 2011] que em nove anos os EUA estariam gastando mais em juros da dívida federal que em segurança nacional.

Assim, esclarecedora a entrevista recentíssima do atual secretário de defesa dos EUA, Chuck Hagel, anunciando que seu país “depois de 13 anos de guerra – o conflito mais longo na história de nossa nação” (Afeganistão e Iraque), os EUA teriam o primeiro orçamento militar refletindo “totalmente a transição que o Departamento de Defesa está fazendo”. E que os chefes militares não mais “planejam levar a cabo extensas e longas operações de estabilização”. A modernização do Exército norte-americano – disse ele – passa necessariamente pela maior destinação de recursos ao desenvolvimento de drones (aviões não tripulados), à ciber-defesa e às novas tecnologias que assegurariam manter a hegemonia no campo militar frente à China e seu emergente militarismo (“O Pentágono prevê reduzir o Exército a níveis prévios à II Guerra Mundial”, Y. Monge, El País on-line, 24/02/2014).

Percebe-se, noutra faceta, a política belicista dos EUA perpassar toda a construção das linhas de forças estratégicas, em defesa de sua hegemonia contra a China. Nos próximos 22 e 23 de abril Obama estará em Tóquio com preestabelecido objetivo de sancionar e respaldar a “nova” politica de Shinzo Abe: reinterpretar o Artigo 9.º da Constituição, que impõe claras restrições às forças militares nacionais do Japão ao afirmar que o povo japonês “renuncia para sempre da guerra como um direito soberano e a ameaça ou uso da força como meio de solução de disputas internacionais”; por isso, de acordo com o artigo, “não serão mantidas forças de terra, naval e aérea”. “O direito de beligerância do Estado não será reconhecido”.

Desse modo, informa-se que (“Contra China, Japão busca se rearmar”, Denise Chrispim Marin, enviada especial a Tóquio, O Estado de S.Paulo, 23/02/2014) o relatório final permitirá às “Forças de Autodefesa” do país, agora com nova interpretação da Constituição, “defender países aliados e nações amigas se houver um pedido formal e se os interesses japoneses nesses locais estiverem ameaçados”. Enquanto o premiê imperialista Abe declarou ao Comitê de Orçamento da Câmara dos Deputados: sua condição lhe confere autoridade para adotar uma nova interpretação da Constituição.

3. Com vinte anos de correspondência (“La Vanguardia”, Espanha), na Rússia, conta o jornalista Rafael Poch em “El cuaderno de Kiev” que a própria Victoria Nuland (pornográfica vice-secretária de Estado americana) admitiu que desde o fim da União Soviética os EUA financiaram com cerca de US$5 bilhões todo o tipo de atividade subversiva na Ucrânia. Noutro viés, diz claramente Poch:

“A jornada em Kíev foi uma espécie de 4 de outubro de 1993 moscovita. Naquele dia, Boris Yeltsin aplastou a sua oposição após um golpe de estado presidencialista que deixou mais de uma centena de mortos, com o apoio e aplauso do Ocidente”.

Do longo e precioso relato de Poch (www.rebelión.org /La Vanguardia, 26/02/2014) acerca dos acontecimentos que levaram ao golpe de Estado naquele país, destaquemos o seguinte:

(i) no dia 19/02, na Praça Maidan (Kiev) com cerca de 70 mil pessoas, estavam entre quatro ou cinco mil equipados com barras de ferro, porretes e escudos, cerca de 1000 a 1500 como o núcleo duro convincentemente disposto a morrer e matar opositores:  “Este núcleo duro fez uso de armas de fugo” – escreve ele sobre os 73 mortos conforme números divulgados dias depois;

(ii) no dia 20/02, horas antes que em Kíev se encenaria a tragédia, Ângela Merkel – protetora do boxeador-deputado fascista Vitali Klichkó – recebia em Berlim na segunda-feira a dois dos três líderes da oposição (o terceiro é um antissemita ultradireitista que não é sequer apresentável). Parece então incrível, também, que os laços de interesses capitalistas entre Berlim e Ucrânia sejam retomados com a imagem da exibição frequente de retratos, por militantes neonazistas do Sovobda, do colaborador da ocupação nazista, Stepan Bandera.

(iii) no 21/02, numa quinta-feira, houve a intervenção de misteriosos franco-atiradores que atiraram sobre o povo no centro da cidade, um dos “habituais capítulos – enfatiza certeiramente Poch – da sucessão negra de fatos que geralmente acompanham este tipo de crise extrema, no caso, como una espada de Dâmocles sobre o presidente ucraniano Viktor Yanukovych”, a seguir golpeado. E recorda Poch: “Na Romênia ainda se discute quem eram e quem estava por trás dos franco-atiradores que há mais de vinte anos mataram pessoas em Bucareste durante o derrubamento de Nicolai Ceaucescu. Algo parecido se passou em Moscou a propósito dos tiroteios de manifestantes durante o golpe de Estado de Boris Yeltsin de outubro de 1993”;

(iv) No 22/02, volta a milionária Yulia Timoshenko – sempre apoiada pelos Estados Unidos e União Europeia -, que havia sido presa por corrupção e condenada a sete anos, após perder eleições para Yanukovych, discursando, prometia que se castigará aos responsáveis das violências “com todo o rigor da lei  e num juízo severo”, dirigindo-se ao verdadeiro “festival de grupos de extrema-direita violenta” – acentua Poch. E, em termos de conclusão de seu valioso testemunho, Rafael Poch afirma que “o perdedor agora lambe as feridas”. O pulsar pela Ucrânia continua. Vai se radicalizar e tem um grande campo pela frente. (…) Rússia responderá, mas não agora. Mais adiante”.

Na mesma direção vai a interpretação do jornalista francês Thierry Meyssan, para quem a após o golpe de ultradireita na Ucrânia, realizado em meio as Olimpíadas de Sochi, na Rússia: “Será, agora, a vez de Moscou de jogar”. E não deixa de ter aguda razão a pergunta de Thierry Meyssan, ao se referir as ações de desestabilização dos EUA na Ucrânia, Venezuela, e na Síria: “Poderá Washington derrubar três governos ao mesmo tempo?” (http://www.voltairenet.org/pt). 

Para Meyssan, como sempre a tática dos EUA é a de qualificar os “opositores” seus aliados de ardorosos defensores da democracia, em qualquer lugar onde as ações golpistas tem amparo naqueles em que o imperialismo financia: na Síria – descreve ipsis litteris o jornalista – estes são takfiristas apoiados pela pior ditadura do planeta, a Arábia Saudita; na Ucrânia alguns pró-europeístas sinceros estão rodeados de inúmeros nazis; na Venezuela, jovens trotskistas de boas famílias rodeados por milícias patronais. Por todo o lado aparece o falso oposicionista nos EUA, John McCain, a trazer o seu apoio aos reais e falsos opositores locais – arremata Meyssan.

O Senador republicano John McCain com Oleh Tyahnybok, o líder do Partido Neo-Nazista ucraniano Sovobda, numa “reunião politica e de negócios” em Kiev (fotos Global Research, apud M.Chossudovsky) [2]

Secretária-Assistente de Estado dos EUA Victoria Nuland, juntamente com o líder do partido neonazista Svoboda, Oleh Tyahnybok (esquerda)
 

Oleh Tyahnybok fazendo a sua saudação festa quando foi reeleito o seu líder.
 

E três epílogos

1. No curso real do declínio relativo dos Estados Unidos da América, que se acelerou nos desdobrar da grande crise capitalista iniciada em 2007, trata-se de completa cegueira – ou demência intelectual – enxergar e/ou propagandear a existência da República Popular da China completamente integrada a ordem mundial globalizada e neoliberal, assim como vê-la com exclusivas relações complementares com o imperialismo norte-americano. Que o digam as novas ambições militaristas do Japão, sustentadas pelos americanos, declaradamente contra a China! Simultaneamente, parece ter sido necessário a senhora Victoria Nuland fazer um exercício verbal de putaria diplomática para que se ouvisse o óbvio: é inteiramente falsa a ideia da não existência de graves contradições – de níveis distintos e de acordo com o andamento concreto das disputas interimperialistas por mercados (financeiros e não) e recursos naturais (gás e petróleo) – entre países do centro capitalista, estejam eles na esfera dos EUA ou da União Europeia. Como açougueiros em facas, agora mesmo EUA e Alemanha, em especial, se enfrentam para retalharam as sobras do governo e as riquezas da Ucrânia; e, contra a Rússia, financiam e promovem abertamente neonazistas.

2. Considero sempre necessário revisitar formulações centrais de Paul Kennedy e seu clássico “Ascensão e queda das grandes potências” (Campus, 1989). Lá se lê que a história dos últimos 500 anos de rivalidade internacional mostra que apenas segurança militar não é suficiente “jamais”. No curto prazo pode até “conter ou derrotar rivais”, porém ao se estender demais “geográfica e estrategicamente”, e mesmo isso ocorrendo num nível “menos imperial” volta-se à “proteção” e menos ao “investimento produtivo”, provavelmente vendo a redução de seu poderio econômico com “tristes implicações para a sua capacidade de manter a longo prazo o consumo de seus cidadãos e sua posição internacional” (p. 511). Noutras palavras, para Kennedy a história “sugere” muito claramente “a longo prazo”, a ligação entre “a ascensão e queda econômica de uma grande potência militar (ou império mundial)” (idem, p.7-8). Ou como precisamente escreveu Eric Hobsbawm, acerca deste ponto, uma das fraquezas do império americano no século XXI é que “no mundo industrializado de hoje, a economia dos Estados Unidos já não é dominante com era antes”; além do que “o mundo é demasiado complexo para que um único país possa dominá-lo”, por óbvio ressaltando sempre a proeminência militar deste imperialismo (“O império se expande cada vez mais”, in: “Globalização, democracia e terrorismo”, Companhia das Letras, 2007 [2003], pp. 156 e 158).

3. O declínio relativo evidente do imperialismo norte-americano passa cada vez mais da aparência (imediata) à essência na dialética da agressão-regressão. Seu endividamento público passou de 65% do PIB em 2007 para 106% no início de 2014; o problema não tem solução no horizonte. Por isso também não estava ameaçando ou brincando um dos principais gurus da liberalização financeira, o ex-secretário do Tesouro Lawrence Summers, quando declarou (novembro de 2013) que os EUA correm o sério risco de submergirem numa “estagnação secular”, ou a ideia de que a depressão econômica passe a ser a norma. Similarmente parecem ser sérias as declarações do atual secretário da Defesa Chuck Hagel, transcritas acima, anunciando “nova” redução do orçamento militar de seu país.
Pertence a H. John Mackinder a teoria – sempre referenciada – de que a Eurásia seria o “pivô do equilíbrio mundial” (1902). Os acontecimentos que ocorrem particularmente desde a desintegração a URSS lhe deram mais força ainda. Além de Afeganistão e Iraque, destaca Moniz Bandeira (op. cit, Cap. IV) a ação imperialista na Iugoslávia (2000), na Geórgia (revolução rosa, 2003), na Ucrânia (revolução laranja, 2004), Líbano (revolução dos cedros, 2005) e no Quirquistão (revolução das tulipas, 2005).

Por outro lado, cerca de 27% da população ucraniana fala o russo, e em algumas regiões como a Criméia o número atinge 60% do idioma – além de 17 outras línguas. Somando-se algumas razões acima situadas a de que a crise econômica fazem a Ucrânia e suas reservas energéticas vitais na relação geopolítica com a Rússia, é certo que a resposta ao golpe ucraniana/russa virá. Como também é muito improvável, dado ao imenso apoio popular disponível às forças governamentais, até hoje enraizado tanto na Venezuela com na Síria, a vitórias desestabilizadoras do imperialismo norte-americano. Que parece não ter (querer) outra saída senão a da expansão do seu domínio, o denominado “full spectrum dominance”.

Notas

[1] Ver: “A segunda guerra fria. Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio” (Civilização Brasileira, 2013). No entender de Guimarães (pp. 19-20) a República Popular da China “aderiu” ao sistema capitalista de forma “parcial e gradual”, mas não ao neoliberalismo.

[2] Original em: http://www.globalresearch.ca/there-are-no-neo-nazis-in-the-ukraine-and-the-obama-administration-does-not-support