No sábado passado um “comboio da liberdade” passou por Portugal e percorreu a Europa. Em vários países movimentos de mulheres, movimentos cívicos, partidos e associações escolheram o dia 1 de fevereiro para afirmar a sua solidariedade com as mulheres do Estado Espanhol e, com essa solidariedade, reafirmarem os direitos de todas as mulheres do mundo.

A mobilização foi convocada contra a proposta de lei apresentada pelo Partido Popular do Estado Espanhol que propõe restringir brutalmente o acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG), permitindo-a apenas em casos de grave perigo para a saúde da mulher (até às 22 semanas) e de violação (12 semanas).

Intitulada “Lei de Proteção da Vida do Concebido e dos Direitos da Grávida”, a norma impõe mais limitações do que a lei que esteve em vigor em Espanha entre 1985 e 2010, exclui a malformação do feto como razão legal para a IVG mas, sobretudo, exclui a – soberana – decisão de cada mulher sobre a sua vida.

Quando pensamos na luta que travámos em Portugal pelo direito das mulheres a não serem condenadas, no percurso que trilhámos, nas mulheres que o protagonizaram, no quanto esta vitória nos saiu da pele e da alma, parece-nos inacreditável que tenha acontecido apenas há um par de anos.

Custa a acreditar que até há menos de uma década milhares de mulheres em Portugal recorriam a abortos clandestinos sem condições de higiene e saúde ou, podendo pagar, a clínicas legais em Espanha. Parece inacreditável que há menos de dez anos mulheres eram levadas a Tribunal, acusadas e invadidas por terem tomado uma decisão tão difícil. Há precisamente 7 anos, no dia 11 de fevereiro, o verdadeiro crime foi abolido: as mulheres deixaram de ser condenadas por interromperem a sua gravidez, Portugal deu um passo de gigante nos direitos humanos das mulheres: o aborto passou não só a ser legal, mas também a poder ser realizado gratuitamente no Serviço Nacional de Saúde.

De facto, só em 2007 “chegámos ao século XXI”, deixando de prender mulheres e dando-lhes o direito de disporem do seu corpo, de decidirem sobre a continuidade da sua gravidez. E de o fazerem com as condições do Serviço Nacional de Saúde, sem terem de se esconder, as que podiam, no estrangeiro, ou em locais clandestinos, muitas vezes pondo em risco a própria vida. Venceram os direitos das mulheres, venceu a saúde pública, venceram os Direitos Humanos.

Mas se o Estado vizinho nos serviu de exemplo no passado, é a sua realidade que nos obriga a novas reflexões. O que se passa no Estado Espanhol sobre a lei do aborto deve, para além de mobilizar toda a nossa indignação, fazer-nos pensar sobre duas coisas. A primeira é que nenhuma conquista deve ser dada como garantida. O progresso, no sentido do avançar dos direitos e da vitória sobre o obscurantismo, não é uma inevitabilidade da História que acontece mesmo quando estamos de pantufas.

Isto diz-nos quase tudo sobre a necessidade de nunca baixar a guarda, de nunca baixar os braços sobre vitórias conquistadas, mesmo que elas sejam civilizacionais e, aparentemente, óbvias. O facto destas conquistas serem, no seu tempo, resultado da luta de gerações e, portanto, vitórias de gerações, não significa que, noutro tempo (histórico ou político), não apareça uma Jota ou coisa do género disposta a impor um regresso ao passado. Vale a lição para a lei do aborto como vale para a democracia.

A segunda ideia é que não devemos olhar este retrocesso como um evento isolado ou esporádico. A Europa enfrenta hoje uma onda conservadora a que Manuel Loff chamou, num pertinente artigo publicado no jornal Público, a “Revolução Conservadora”.

“Que fantasma é este que percorre sociedades em que se vive um profundo mal-estar social, quer quando provocado pela desigual distribuição de nova riqueza, ou pelo agravamento brutal da miséria nas economias, como a nossa, sujeitas a formas renovadas de abuso e exploração?”, perguntava Loff.

E tem razão em associar o mal estar social, a pobreza, a miséria – a austeridade – ao avanço do “fantasma” conservador que percorre a Europa. A vinculação dos interesses dos mercados financeiros à direita conservadora tornou-se evidente na Europa do pós crise. A mutilação de todos os direitos faz parte de uma contra-revolução que pretende arrasar, uma a uma, todas as conquistas populares e progressistas que se seguiram à Segunda Guerra ou, no caso português, à democracia de abril.

Este é o comboio da liberdade que querem fazer descarrilar. Não passará.

Joana Mortágua é dirigente do Bloco de Esquerda Europeu