No cenário de mercantilização generalizada que caracteriza o capitalismo global, os setores culturais estão cada vez mais imersos na busca indiscriminada de lucro que preside a expansão da forma-mercadoria a todos os campos de atividades. Zygmunt Bauman é preciso ao ressaltar que a cultura se torna um “armazém de produtos para consumo, uma espécie de seção da loja de departamentos (…) na qual se transformou o mundo habitado por consumidores.”[1] Imagens e objetos artísticos transcendem as intenções originais de seus criadores para completar um circuito de produção e comercialização integrado à cadeia do consumismo, sob a égide de um sistema tecnológico que interliga as economias em tempo real e expande os meios de transmissão, reprodução, exibição, visibilidade, incidência e assimilação social das tendências e valores que difunde. Esse circuito engloba eventos midiáticos, espaços públicos, festivais, galerias, bienais, centros culturais, feiras, museus, pontos turísticos e plataformas digitais, ampliando exponencialmente a conversão de bens simbólicos em mercadorias vendáveis.

O que se observa é a prevalência de interesses comerciais tanto sobre valores estéticos e artísticos quanto sobre o seu significado ético-social. Não me parece excessivo dizer que estão sendo diluídas antigas fronteiras entre a produção econômica e a vida cultural, na medida em que fatia preponderante da produção cultural se mescla com o jogo do mercado e suas consequências, sejam elas praticamente incontornáveis (financiamentos, patrocínios, auxílios, incentivos fiscais e subsídios públicos e privados às artes) ou atordoantes (a tirania do dinheiro, como bem a definiu Milton Santos, tentando estabelecer como única cultura “interessante” aquela que gera rentabilidade, audiências cativas e consumidores potenciais).

A lógica da mercantilização arrasta para o consumo de massa um conjunto de manifestações até então tidas como elitistas (exposições, ciclos de conferências, concertos de música erudita) e que agora se projetam nas agendas midiáticas atreladas à publicidade, aos esquemas promocionais e à geração de dividendos. Obtêm patrocínios e financiamentos públicos e privados, aproveitando leis de incentivos e isenções tributárias. Mostras itinerantes de Monet, Rodin, Cézanne e Picasso distinguem-se como chamarizes para vultosas receitas que começam nas bilheterias e prolongam-se na venda de catálogos, reproduções de quadros, vídeos, pôsteres, calendários, camisetas, DVDs, coleções virtuais, etc.

A exploração da arte acentuou-se em proporções inimagináveis décadas atrás, um campo de negócios que já incluía marchands, colecionadores, leilões, bolsas de negócios, mostras, bienais e salões. Hoje, exposições viabilizam-se comercialmente através de repartição de custos entre museus, galerias, governos, bancos (Chase Manhattan, Santander e Deustsche Bank), corporações (Exxon, Samsung e Telefónica) e magnatas colecionadores (como o mexicano Carlos Slim, dono do grupo Telmex e um dos homens mais ricos do mundo, que possui a maior coleção de obras de Auguste Rodin fora da França). Formam-se circuitos mundializados de exibição, envolvendo parcerias entre Guggenheim, Louvre e Centro Pompidou em Paris, Tate Modern em Londres, Prado em Madri, MoMA e Metropolitan em Nova York.[2]

Cabe reconhecer que certas exposições itinerantes e temporárias, quando patrocinadas por instituições públicas, às vezes redundam em maior acesso do público em geral aos patrimônios exibidos, graças a ingressos subsidiados e até à gratuidade (em casos cada vez mais escassos). Como aponta Eric Hobsbawm, não há dúvida de que certas infraestruturas de produção artísticas (grandes companhias de orquestras sinfônicas ou filarmônicas, balés e óperas, por exemplo) dificilmente seriam mantidas sem subsídios públicos ou patrocínios provados, ou uma combinação dos dois, daí a necessidade de mantê-los.[3]

Mas, por outro lado, não há como deixar de constatar: “espetacular inflação de preços no mercado das artes visuais que os muitos ricos podem comprar”, nas palavras de Hobsbawm[4]; e a enorme rentabilidade trazida por doações, patrocínios, acordos, subsídios, parcerias com corporações transnacionais, ingressos e serviços agregados fez disparar as aplicações privadas no setor. Os fundos de investimentos em arte superaram as expectativas do mercado e apresentam altas taxas de retorno. A valorização das obras nos últimos anos transformou a arte em “commodity abstrata”. Só o The Fine Art Fund Group, com investidores de vários países, dispõe de US$ 150 milhões em ativos.[5]

Segundo a colunista Sonia Racy, os riscos financeiros são os mesmos de qualquer outra aplicação − ou seja, o mercado da arte hoje é tão especulativo e sujeito a oscilações quanto uma carteira de ações −, mas existe um diferencial na expressão artística que atrai investidores. Racy explica:

E qual a razão para investir em arte? Diversificação tem sido a resposta mais frequente. Os preços nesse meio se movem, muitas vezes, em direções diferentes das adotadas em aplicações em títulos e ações. O que significa, no fim das contas, que o investidor diversificou seus riscos. Um fundo de arte pode superar os percalços da economia explorando boas oportunidades em leilões e trabalhando em colaboração com galeristas para rastrear o histórico de vendas dos artistas. Assim sendo, o investidor tem um marchand trabalhando em tempo integral para ele. Infelizmente, o que se compra não dá para levar para casa e colocar na parede – se fosse assim, seria uma coleção de arte, não um investimento. [6]

Nos últimos anos, a crise econômica e as sucessivas quedas nas carteiras de ações de grandes empresas contribuíram para fortalecer o mercado da arte. O aumento das vendas de obras caras nos Estados Unidos, por exemplo, tem sido atribuído por especialistas ao propósito de proteger o capital da volatilidade do mercado financeiro.[7]Pesquisa realizada pela consultoria Barclays Wealth mostrou que os milionários estão aplicando, em média, 9,6% de suas fortunas em ativos não financeiros.[8] Prova mais eloquente dessa corrida ao ouro não poderia haver: a gigante norte-americana do varejo online Amazon lançou, em agosto de 2013, uma plataforma para a comercialização da arte, com mais de 40 mil obras disponíveis, a preços podem chegar a US$ 2,5 milhões pelo quadro Fragment de Nymphéas, de Claude Monet. A empresa atua como intermediária entre compradores, 150 galerias e marchands de arte dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Holanda. Cobra comissões entre 5% e 20% baseadas nos preços das obras oferecidas.[9]

A própria noção de museu alterou-se radicalmente nas últimas décadas. Os antigos templos de fruição estética para iniciados e experts sobressaem como lugares coligados ao cosmopolitismo cultural. Não são poucos os que dispõem de wi-fi em seus salões, projetando itens dos acervos em telões digitais instalados em jardins e áreas de convivência. As exposições extrapolam os espaços convencionais e se virtualizam nas páginas da internet ou em DVDs vendidos em boutiques e livrarias anexas. As bilheterias passaram a ser apenas um dos componentes da milionária receita dos museus. Em Paris, a livraria do Louvre fatura mais de US$ 30 milhões anuais com 3,5 milhões de visitantes, enquanto no Centro Georges Pompidou (Beaubourg) o lucro comercial cresceu 64,4% com concessões, locação de espaços e permutas. O Guggenheim, de Nova York, expandiu-se numa lucrativa rede de filiais para Berlim, Veneza, Las Vegas, Bilbao e Dubai. Desde a inauguração, em 1997, da filial do Guggenheim, Bilbao tornou-se o destino anual de 1,5 milhão de turistas, gerando US$ 775 milhões em impactos econômicos. O sucesso levou prefeituras de mais de 120 cidades do mundo a proporem projetos semelhantes à Fundação Guggenheim.[10]

Mencionemos ainda a comercialização de espaços religiosos com valores históricos e patrimônios artísticos. Várias igrejas de Veneza, Paris, Barcelona, Berlim e Londres agora cobram entradas dos visitantes, abriram lojas de lembranças e se associaram a agências de viagens para fazerem parte de pacotes turísticos oferecidos em mais de uma centena de países. Uma mínima ideia do faturamento obtido: cada um dos 800 mil visitantes anuais, de 46 nacionalidades diferentes, paga 8 euros para conhecer a Sainte-Chapelle, igreja gótica construída no século XIII em Paris.

Podemos perceber, assim, como a espiral da maximização dos lucros costuma ser indiferente ao valor cultural dos bens simbólicos. A meta primordial é subordinar objetos artísticos ao estatuto de mercadoria, vale dizer, à exigência de alcançar o auge da rentabilidade para o capital investido. A dissolução da aura da alta cultura e os investimentos em mercadorias da cultura de massa conjugam-se ao diagnóstico de Fredric Jameson: na economia globalizada, “o objetivo da produção não está mais voltado a nenhum mercado específico, a nenhum conjunto específico de consumidores ou de necessidades individuais ou sociais, mas antes à sua transformação naquele elemento [o valor-de-troca] que, por definição, não tem nenhum conteúdo ou território e, de fato, nenhum valor-de-uso”.[11]

Portanto, no frenesi mercantil em que vivemos, sob o bombardeio audiovisual de ofertas e apelos consumistas, a criação artística como expressão singular da imaginação sensível parece perder significância, trazendo-nos a inquietante dúvida: pode tornar-se mero pretexto de marketing para a ganância calculada?

* Desenvolvo questões abordadas neste artigo em meu livro Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (Boitempo, 2013), em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. Agradeço à jornalista Lívia Assad de Moraes a cooperação na pesquisa sobre mercantilização da arte.

Notas:

[1] Zygmunt Bauman, 44 cartas ao mundo líquido moderno (Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 91).

[2] Philippe Pataud Célérier, “Quando os museus viram mercadoria”, Le Monde Diplomatique, fevereiro de 2007; Vicente Verdú, “La larga cola del museo”, El País, 3 de maio de 2008.

[3] Eric Hobsbawm, Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX (São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 75).

[4] Ibidem, p. 72.

[5] Dados obtidos no site do The Fine Art Fund Group. Disponível aqui.

[6] Sonia Racy, “Commodity abstrata”, Tam nas Nuvens, setembro de 2012.

[7] Katya Kazakina, “Derrocada de Wall Street aquece mercado da arte”, Bloomberg, 24 de agosto de 2012.

[8] Ben Steverman, “De mal com a bolsa, investidores ricos partem para ‘ativos tesouro’”, Bloomberg, 20 de junho de 2012.

[9] Greg Bensinger, “Amazon se prepara para vender obras de arte”, The Wall Street Journal/Brasil, 30 de junho de 2013.A plataforma de comercialização da arte da Amazon está disponível aqui.

[10] Dênis de Moraes, Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital (Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 55-57).

[11] Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização (Petrópolis, Vozes, 2001, p.163).

Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a Contracorriente, concedido pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo Instituto Cubano del Libro. Autor de mais de 25 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012).

Publicado no Blog da Boitempo.