Ex-garoto prodígio de Harvard, o economista norte-americano Jeffrey Sachs notabilizou-se internacionalmente nos anos 80 e 90 como conselheiro para reformas econômicas e ajustes estruturais de governos de países em desenvolvimento na América Latina, no Leste Europeu e na África, destacando-se como ardoroso defensor das virtudes do mercado e mentor de alguns dos experimentos neoliberais mais radicais.

A Bolívia serviu como primeiro laboratório de teste da sua “terapia de choque”, que depois seria aplicada em vários países em transição do sistema comunista para economia de mercado. Esta sinistra expressão, cunhada pelo próprio Sachs, refere-se à liberalização acelerada da economia, por meio da abertura comercial, corte drástico de gastos públicos, fim dos subsídios estatais, adoção do câmbio livre e privatização em larga escala de empresas e ativos controlados pelo Estado.

Outra característica deste tratamento de choque é o total desprezo pelos chamados “efeitos colaterais”. Isso significa, na prática, ignorar os elevados custos sociais, medidos em termos de taxas galopantes de desemprego, aumento da pobreza e, como aconteceu na Rússia, escalada da taxa de suicídio. Tudo em nome da estabilização da economia.

O inventor da “terapia de choque” e patrono do neoliberalismo foi o economista Milton Friedman, que testou a sua fórmula de reformas pró-mercado no Chile, sob a sangrenta ditadura de Augusto Pinochet. Sachs, uma espécie de antípoda de Che Guevara, ajudou a destroçar a já combalida economia boliviana, deixando para trás um país devastado.

Com a derrocada dos regimes comunistas e o colapso da União das Repúblicas Soviéticas, Sachs encontrou terreno fértil para o seu apostolado sobre a redenção prometida pelo neoliberalismo. Faria jus, merecidamente, ao título que nunca lhe foi dado de patrono dos oligarcas russos, que se apropriaram das estatais a preço vil – modelo que o Brasil tentou copiar na era FHC.

Agora eis que Sachs, convertido na última década em militante da luta contra a pobreza na África – fenômeno que prefere abordar como algo atávico, não consequência da voracidade do capital financeiro internacional, exacerbada pelas políticas neoliberais que ajudou a disseminar pelo mundo – reaparece na América Latina como consultor do governo do Paraguai.

As poucas informações que se tornaram pública dão conta que, em 24 de setembro de 2012, ele teria assinado um contrato de sete meses para assessorar o governo do contestado presidente Frederico Franco em matéria de política de energia, especialmente nas negociações com o grupo Rio Tinto para a implantação de uma indústria de alumínio.

Todavia, o seu trabalho só ganhou visibilidade a uma semana da eleição presidencial, realizada no último dia 21 de abril, quando a mídia paraguaia divulgou com estardalhaço que o “principal assessor econômico da ONU afirma que a dívida de Itaipu já se pagou” (ABC Color, 15/04/13).

O vazamento ardilosamente orquestrado às vésperas do pleito presidencial de um suposto relatório confidencial, ao qual parece que todos os principais jornais do país tiveram acesso simultaneamente, colocou Itaipu no centro do debate eleitoral. De acordo com fragmentos reproduzidos pela mídia guarani, Sachs teria apresentado a seguinte conclusão: “sob presunções financeiras razoáveis, o Paraguai já pagou a sua parte das dívidas de Itaipu por meio da exportação de eletricidade para o Brasil durante um período de mais de 25 anos.”

E prossegue no seu argumento: “As dívidas remanescentes nos livros contábeis deveriam ser canceladas por meio de um novo acordo com o Brasil. O fato de o Paraguai ainda ter dívidas em aberto decorre do fato de que ao longo dos anos o país tem sido sobretaxado pelo pagamento de juros e subcompensado pela eletricidade exportada [para o Brasil]”.

Com base nesta premissa, Sachs assume o seu papel preferido de conselheiro para vaticinar: “é fortemente recomendado que o próximo governo do Paraguai conclame o Brasil a cancelar as dívidas remanescentes e a estabelecer uma tarifa mais favorável e realista [para a energia cedida pelo Paraguai].”

Como uma confissão antecipada da análise superficial e aligeirada na qual baseou suas conclusões assertivas, Sachs se apressa em fazer uma desconcertante ressalva: “É claro que os termos revisados [do novo acordo a ser firmado] seriam baseados numa clara e transparente análise da história dos pagamentos da dívida, das taxas de juros, das exportações de eletricidade, e de outros fatores que contribuíram para a dinâmica da dívida“. (Grifo do autor).

Bingo! O conselheiro contratado a peso de ouro concluiu o seu “relatório confidencial” recomendando ao governo paraguaio que faça ou encontre alguém disposto a fazer o trabalho que supostamente ele deveria ter feito, mas admite candidamente que não o fez, se quisesse que as suas conclusões fossem realmente levadas a sério.

Sintomaticamente, o jornal ABC Color, o mais ardoroso crítico do Tratado de Itaipu, registrou a seguinte manifestação do engenheiro paraguaio Guilhermo López Flores, membro do Conselho da Hidrelétrica de Yacyretá: “se não sabe algo tão básico como quem é o devedor, é legítimo duvidar da qualidade do resto da análise do economista norte-americano.” E conclui que, como especialista, “teria chegado a melhores conclusões por uma ínfima fração dos honorários do Sr. Sachs”. (ABC Color, 16/04/13).

Só faltou Sachs ter conjecturado que se, durante as escavações para a construção da barragem, tivesse sido encontrado um improvável veio de ouro ou diamante em meio aos derrames de basalto, a obra poderia ter sido integralmente paga antes mesmo de gerar o primeiro megawatt de energia.

Mas a simples evocação dessa hipótese é perigosa, pois pode induzir parte da mídia paraguaia a levantar a suspeita de que de fato uma mina de ouro foi descoberta no sítio de Itaipu e o Brasil teria se apropriado de toda riqueza extraída.

Pelo menos das passagens pinçadas do “relatório confidencial” divulgadas pela mídia paraguaia, depreende-se que Sachs não foi tão longe a ponto de propor a privatização de Itaipu, como fez com o setor de energia e a indústria de base na Rússia, o que mostra uma evolução do seu pensamente econômico!

Mas não surpreenderá se ele vier a incluir a proposta de privatização do setor elétrico paraguaio como parte da sua conhecida “terapia de choque”. Com tanta energia disponível, o setor é a cereja do bolo da emergente economia paraguaia.

A existência do Relatório Sachs comissionado pelo governo paraguaio veio a público num momento em que a credibilidade dos economistas de Harvard está em baixa em razão do recente escândalo em torno da clamorosa fraude acadêmica praticada pelos economistas Ken Rogoff e Carmen Reinhart.

Para quem não vem acompanhando o assunto, é de autoria da dupla o estudo “Crescimento em uma época de endividamento”, o qual chegou à conclusão de que quando o nível de endividamento de um país ultrapassa a marca de 90% do PIB (Produto Interno Bruto), a média de crescimento despenca. Esta correlação vinha sendo invocada por governos de países europeus e dos Estados Unidos para justificar draconianos cortes orçamentários e outras medidas de austeridade fiscal.

Acontece que os autores do referido estudo foram desacreditados quando um estudante de doutorado de 28 anos, Thomas Herndon, resolveu revisar os seus métodos de cálculos e constatou que os resultados nos quais os dois renomados economistas de Harvard basearam-se eram fajutos. Um erro nas planilhas de Excel excluiu dados importantes e provocou graves distorções nos resultados. Feitas as correções, Herndon demonstrou que os países com endividamento superior a 90% do PIB alcançaram crescimento médio de 2,25%.

A favor de Sachs, registre-se que depois de duas décadas em Harvard, em 2002 ele a trocou pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, com um contrato da ordem de US$ 300 mil por ano. Na Big Apple, iniciou também uma bem-sucedida carreira de conselheiro especial do Secretário-Geral da ONU. Sua apologia das políticas neoliberais, desacreditadas pelo desastre que culminou com o colapso financeiro de 2008, deu lugar a preocupações com pobreza e desenvolvimento sustentável, temas em alta na agenda dos organismos internacionais.

Mas suas novas convicções não resistem a um bom contrato de consultoria, mesmo que o contratante seja um governo repudiado em toda a região pela forma ilegítima como foi instaurado, fruto do golpe parlamentar de junho de 2012, que apeou do poder o presidente democraticamente eleito Fernando Lugo, que acaba de ser eleito senador pelo voto popular.

Mas o currículo internacional de Sachs mostra que ele nunca teve pruridos em se aliar a governos não-democráticos nem nunca exigiu credenciais democráticas dos governantes aos quais prestou serviços a soldo. Conforme já registrado, o primeiro experimento neoliberal deu-se no Chile de Pinochet. Portanto, a terapia de choque neoliberal, da qual Sachs se tornou o principal proselitista, nasceu umbilicalmente vinculada ao autoritarismo.

A volta do príncipe do neoliberalismo à América Latina, agora na condição de consultor do governo do Paraguai, poderá render novo fiasco, mesmo que o futuro governo colorado do presidente eleito Horacio Cartes, a ser empossado em agosto próximo, decida mantê-lo na sua folha de pagamento.

Em entrevista ao ABC Color, ele se oferece para assessorar o governo paraguaio numa possível renegociação do Tratado de Itaipu e se vangloria de ter “trabajado mucho con gobiernos brasileños” e de manter “buenas relaciones con Brasil”. (ABC Color, 24/04/13) Alguém precisa avisá-lo de que o governo FHC terminou em 2002 e que desde então o Brasil não segue mais a cartilha neoliberal.

Por fim, as suas conclusões apressadas e oportunistas sobre Itaipu, sem uma “clara e transparente análise da história de pagamentos da dívida”, conforme admitiu o próprio economista, demonstram mais uma vez que ele está disposto a defender a posição que convém ao seu cliente, sem qualquer compromisso com a verdade e com as conseqüências políticas, econômicas e sociais – como fez com sua “terapia de choque” em diversos países.

Gaudêncio Penaforte é cientista político e pesquisador-associado do Observatório Latino-Americano de Políticas para a Integração e Desenvolvimento (ALAPID).

Publicado em Carta Maior