“Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenavam-se as crianças ao desamparo e à mendicância. ‘Lei de Herodes’, segundo o romancista José de Alencar.

“Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.

“Como dizia o Visconde de Sinimbu: ‘A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo’.”

As referências de Elio Gaspari em artigo sobre as cotas nas universidades, publicado há um ano (25/4/2012), se aplicariam perfeitamente ao alvoroço em torno da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que estabelece para o trabalho doméstico os mesmos direitos das demais atividades assalariadas. Não apenas porque esse trabalho deriva historicamente da nossa herança escravocrata: também, ou talvez principalmente, porque, no campo das relações trabalhistas, notórios “especialistas” são recorrentemente convocados a bater na tecla do direito como um entrave à livre negociação entre as partes, como se essas partes estivessem em pé de igualdade.

Não só na vida privada se recorre a eufemismos para nomear os subalternos: também nas grandes empresas começa a se disseminar o costume de chamar seus empregados por “colaboradores”, o que eventualmente pode sugerir uma alteração na relação contratual, nesses tempos de “flexibilização”, mas não esconde a tentativa de riscar a palavra “trabalhador” do mundo do capital. O que não altera a relação de exploração, mas pode mascará-la por esses artifícios de linguagem.

A lógica invertida

“Como dizia o Visconde de Sinimbu: ‘A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo’”

Foi, portanto, previsivelmente por essa lógica invertida – e pervertida – que os principais jornais pautaram suas reportagens sobre a PEC das Domésticas: chamando os “especialistas” de sempre para alertar para o risco de desemprego e o estímulo à informalidade que a lei provocaria, e para o transtorno que as novas obrigações representariam: calcular horas extras, recolher FGTS, pagar auxílio-creche exigiriam a contratação dos serviços de um contador e, consequentemente, mais gastos para o cidadão já massacrado por despesas de toda ordem para manter seu nível de vida – a casa, a escola e as múltiplas atividades dos filhos, o(s) carro(s), a ida a cinemas, restaurantes e shows, a academia, as festas, viagens e demais formas de lazer.

(Não deixa de ser curioso que, nas sucessivas reportagens sobre inadimplência, endividamento, aumento do custo de vida ou mesmo ecologia – sobre o desperdício de água, por exemplo – e estilo de vida, esses mesmos “especialistas” recomendem didática e pacientemente medidas de cortes de gastos ou mudança de hábitos, mas não se tenham lembrado disso no caso dos direitos das domésticas).

Ao mesmo tempo, ao montar um quadro comparativo entre as regras vigentes e as que passarão a vigorar a partir deste mês de abril, cada jornal trabalhou com os números como quis. Assim, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo se pautaram pela comparação mais lógica entre os gastos com a empregada contratada, o que evidencia um aumento de menos de 10%. Já O Globo, além desse quadro, elaborou outro para a hipótese de dispensa da empregada, de modo a sustentar o alarme na chamada da primeira página de quinta-feira (28/3): “Doméstica: custo de demissão dobra”, embora o texto informe que esta é apenas uma possibilidade e que a indenização do FGTS ainda depende de regulamentação.

O “espaço sagrado” do (nosso) lar

Na véspera, o mesmo jornal dedicara três páginas para tratar da lei recém-aprovada. Numa delas, destacava a turbulência vivida no “espaço ‘sagrado’ do lar” – o nosso lar, naturalmente, que o das domésticas ninguém sabe onde fica – e o “estresse” pelo qual os empregadores estariam passando. Na matéria, a voz principal é de uma professora “com tese de doutorado sobre relações de consumo” e “especialista” – sempre eles – “no comportamento de empregadas domésticas”. Ela diz: “Passar de uma relação personalista para uma relação impessoal é muito doloroso porque acontece no ambiente doméstico, na casa das pessoas, onde elas estão acostumadas a ter algum tipo de sentimento de dominação” (o grifo é meu).

Acrescente-se, portanto, a terapia como mais uma despesa causada pela nova lei, para tratar de superar esse nefasto sentimento.

Mas o melhor vem a seguir: “Deixar de ter uma empregada é um pequeno grande drama na casa das pessoas porque não temos estrutura social para deixar as crianças”.

Alguém alguma vez se incomodou com a falta de estrutura social para as domésticas deixarem as suas crianças?

O abismo social

Na Folha de quarta-feira (27/3), um notório “especialista” em relações de trabalho e recursos humanos aborda esse tema pelo lado da regulamentação: “Entre os 7 milhões de domésticas do país, muitas são empregadas de um lado e empregadoras do outro – contratam pessoas” – na grande maioria dos casos, informalmente – “para tomar conta de seus filhos e de suas casas enquanto trabalham fora”.

O Globo, ao pé da matéria de domingo (31/3) que reclama de “mais custos” e “mais burocracia”, dá consistência a esse quadro, relatando o caso de Taciane Carolina da Silva, de 18 anos:

“Para trabalhar com babá numa casa da zona norte de Recife, ela deixa a filha de 2 anos, Ingrid Giovana de Moura, durante toda a semana com um pessoa que recebe R$100 por mês. Taciane, que não tem nem o ensino fundamental, soube da lei das domésticas pela televisão, mas confia na amizade para que a sua auxiliar não exija dela os mesmos direitos que sua patroa tem como obrigações.

“Afirma que, se isso ocorrer, terá que deixar o trabalho e se cadastrar no Bolsa Família, porque na cidade de Aliança, onde nasceu e vive sua filha, não há creches:

“– A escola só aceita crianças a partir de três anos.

“Taciana só pega sua filha aos sábados e devolve no domingo à noite, porque às 4h30m da segunda-feira já pega a condução para Recife, para seu trabalho.”

É preciso, portanto, ler uma reportagem até o fim, porque o mais importante pode estar ali.

As pautas ausentes

Uma menina de 18 anos que foi mãe aos 16, de precária formação escolar, que sai de madrugada para cuidar do filho alheio e só vê a própria filha nos fins de semana: não estaria aí um bom ponto de partida para uma pauta sobre esse “outro lado” que tanto descuramos?

Pistas não faltam. Muitas estão, certamente, na própria casa dos jornalistas. Mas também seção de cartas: no Globo, entre tantos protestos contra a “demagogia” do governo com a nova lei, reivindicações por um “sindicato das patroas” e manifestações raivosas contra a boa vida das domésticas ao compartilharem a casa e a mesa da classe média, uma leitora lamenta a provável hipótese de ter de dispensar sua empregada, “uma pessoa ótima”, com seis filhos, cinco dos quais menores de idade. “Minha funcionária não consegue escola para a de 14 anos porque não tem vaga. Onde ela mora, não há creche para os menores”.

Não seria o caso de, finalmente, apresentar as condições de vida dessas pessoas, suas dificuldades, seus sonhos, suas perspectivas de ascensão social?

Apenas o Estadão, e ainda assim por outro enfoque – o da trajetória de trabalhadores domésticos na direção de outro tipo de serviço, mais qualificado ou de melhor status –, investe um pouco nessa linha, ao contar a história de uma jovem do interior da Bahia, que trabalhava na roça desde criança. Como doméstica, começou aos 13 anos e, claro, “não era vista como empregada – era a ‘agregada’ que fazia todo o serviço da casa, outra herança do Brasil escravocrata”. Conseguiu ir para São Paulo, teve o apoio do novo patrão para estudar, formou-se em Letras e hoje é professora e guia de turismo.

Nos artigos, o esclarecimento

A reportagem é o espaço privilegiado do jornal, mas, fora esses breves exemplos, quem não quis se deixar levar pela excitação contra os novos direitos das domésticas precisou se socorrer no espaço de opinião dos jornais paulistas. Na Folha (quinta-feira, 28/3), o advogado Otávio Pinto e Silva (ver aqui) fala na “radical mudança cultural” a ser enfrentada mas mostra que não há motivo para alarde em relação às obrigações trabalhistas:

“É preciso estimular os empregadores domésticos a registrar os contratos de seus empregados, facilitando e desburocratizando os procedimentos relativos ao recolhimento de contribuições previdenciárias e depósitos de FGTS, com o uso da internet. Lembremos que no âmbito residencial não existe um departamento de pessoal ou de RH, encarregado de preencher guias e formulários para pagamentos bancários”.

No Estadão (sábado, 30/3), o artigo do sociólogo Ricardo Antunes (ver aqui) é um tapa na cara da arrogância dos mais ricos:

“Nossa origem escravista e patriarcal, concebida a partir da casa grande e da senzala, soube amoldar-se ao avanço das cidades. A modernização conservadora deu longevidade ao servilismo da casa grande para as famílias citadinas. As classes dominantes sempre exigiram as vantagens do urbanismo com as benesses do servilismo, com um séquito de cozinheiras, faxineiras, motoristas, babás, governantas e, mais recentemente, personal trainers para manter a forma, valets nos restaurantes para estacionar os carros etc.”

Antunes mostra, ao mesmo tempo, que há divisões entre a classe média – algo de que as reportagens não deram conta:

“Com as classes médias o quiproquó é maior: os seus estratos mais tradicionais e conservadores agem quase como um espelhamento deformado das classes proprietárias e vociferam a “revolta da sala de jantar”: não será estranho se começarem a defender o direito das trabalhadoras domésticas não terem os direitos ampliados. E sua bandeira principal já está indicada: são contrárias à ampliação dos direitos das trabalhadoras domésticas para lhes evitar o desemprego.

Nos núcleos mais intelectualizados e democráticos das classes médias, há o sentimento de que uma chaga está sendo reduzida. Percebem a justeza destes direitos sociais válidos para o conjunto da classe trabalhadora, ainda que sua conquista altere significativamente seu modo de vida. Mais próxima (ou menos distante) do cenário dos países do Norte, tende a recorrer cada vez mais ao trabalho doméstico diarista em substituição ao mensalista.”

Todo jornal tem seus compromissos de classe, mas ao mesmo tempo não pode se recusar a abrir espaço ao contraditório. Pelo menos no espaço de opinião, é possível perceber a necessidade de enfrentar o abismo social que passeia entre a sala e a cozinha e compreender que nosso bem-estar não pode se sustentar às custas da exploração do outro.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Publicado no Observatório da Imprensa