Comentou-se, à época – março de 1978 – que o general Ernesto Geisel, então presidente da República, passou mal (com vômito e tontura) ao se deparar, no Jornal do Brasil, com as ferinas críticas que lhe foram endereçadas por um subordinado, o tenente-coronel Tarcísio Nunes Ferreira.

A informação jamais foi comprovada, mas inegável que a entrevista do militar – ácida contra Geisel, contra o que considerava desvios do “movimento militar de 1964” e a favor da abertura do regime – causou, digamos, certo frisson na caserna.

Não por menos: pela primeira vez desde o golpe um militar da ativa criticava abertamente o “status quo”. E não um militar qualquer. Este comandava o 13º Batalhão de Infantaria Blindada, a mais poderosa unidade da 5a Região Militar (Paraná e Santa Catarina), com sede em Ponta Grossa, a pouco mais de 100 quilômetros de Curitiba.

A entrevista de página inteira realizada por mim, então repórter da sucursal paranaense do Jornal do Brasil, e publicada há exatos 35 anos, em 11 de março de 1978, desenvolvia o que o coronel já defendera para cerca de 200 membros do Lions Club de Ponta Grossa uma semana antes. A palestra, que valeu a Tarcísio prisão domiciliar de dois dias, inaugurou o curto período de três semanas em que o País se agitou a partir de Curitiba, pois à palestra e à entrevista sucederam nova detenção do militar, dessa feita de 30 dias, o sequestro de uma professora por um grupo paramilitar e a prisão de 11 intelectuais pela Polícia Federal, acusados de ensinar marxismo-leninismo a crianças em duas pré-escolas. Sobretudo estas prisões provocaram grande mobilização da opinião pública, não só na capital paranaense, como em todo o Brasil, com expressiva repercussão internacional.

Os episódios daquele março turbulento em Curitiba marcaram um capítulo a mais, talvez um capítulo decisivo da conflagração entre duas alas do regime militar – conhecido então como “o sistema” –, divididas entre os defensores da “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Geisel e os que se opunham a ela, a chamada “linha dura”. Meses antes, em outubro de 1977, os duros haviam sofrido importante revés com a demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército.

Fiel, mas crítico

Aos 47 anos na época, 26 dos quais dedicados ao Exército, o Coronel Tarcísio Nunes Ferreira deixou clara sua “fidelidade aos ideais do movimento de 31 de março de 1964”, mas criticou o que considerava sua deformação: “Nós saímos de um processo totalitário que se tentava, através do governo, pela desordem, para um processo totalitário feito pelo governo, pelo excesso de ordem”. Para ele, “numa sociedade o que é preciso é a harmonia, e não a ordem”.

Na longa entrevista, o coronel defendeu a imediata abertura democrática no país, com pluripartidarismo (mas sem a participação do Partido Comunista), quebra dos instrumentos de exceção dos quais a ditadura ainda se valia, anistia e até mesmo uma assembleia constituinte. E endereçou ao presidente Ernesto Geisel críticas corrosivas. Opôs-se ao seu conceito de democracia relativa e aos poderes imperiais da Presidência.

Mas certamente o que mais repercutiu foi a exortação: “É preciso que, de alguma forma, os militares quebrem o silêncio” para defender o que Tarcísio considerava pensamento hegemônico nas forças armadas, ou seja, a abertura democrática. Mais grave foi o militar sustentar que “há momentos em que se justifica a quebra da disciplina em nome da legitimidade”, principalmente quando “estão lançando nos nossos ombros a culpa de todos os erros que estão aí patentes”. Era incitação à rebeldia militar, logo naqueles tempos bicudos.

Nunca se soube o quanto Tarcísio Nunes Ferreira estava ligado a outros setores militares e civis. Ao longo do tempo, ele atribuiria sua entrevista a iniciativa meramente pessoal. Mas sempre foi intrigante o fato dele praticamente escolher o Jornal do Brasil para conceder a entrevista, combinando inclusive a data da publicação. Sobre um móvel da sala de sua casa, observei um punhado de bilhetes aéreos. Na ocasião o coronel negou que fizesse viagens pelo Brasil. Mesmo assim, alguns analistas o viram simpático à candidatura presidencial do ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, tido como o líder civil do golpe de 1964. Três meses depois da entrevista, um dos mais entusiastas apoiadores do coronel, o ex-ministro Ivo Arzua Pereira, aderia à Frente Nacional de Redemocratização, capitaneada por Magalhães e Tancredo Neves. A Frente desembocaria na candidatura do general Euler Bentes Monteiro contra a do também general João Batista Figueiredo, patrocinada por Geisel.

Sequestro e prisões

No final da tarde de sexta-feira, 17, o coronel já cumpria, no 5o Grupamento de Artilharia de Campanha, no bairro do Boqueirão, a pena de 30 dias de detenção que recebera por conceder a entrevista, quando paramilitares sequestraram a jornalista e professora Juracilda Veiga na saída do colégio Cônego Camargo, onde lecionava. Treze horas depois, no amanhecer de sábado, a Polícia Federal prendia 11 pessoas ligadas às escolas Oca e Oficina, de educação infantil. Segundo nota oficial da PF, “as escolas vinham doutrinando crianças dentro de princípios marxistas, desenvolvendo-lhes uma visão materialista e dialética do mundo, incutindo nelas a negação de valores como a religião, a família e a tradição histórica”. Eu me encontrava entre os 11.

É provável que os acontecimentos não tenham sido tramados intencionalmente, mas trocaram influências recíprocas. Os detidos no caso das pré-escolas foram escolhidos a dedo entre aqueles com mais extensos antecedentes na luta contra a ditadura. No meu caso, por exemplo, eu havia tido com a escola Oficina uma relação meramente pontual anos antes, mas meu prontuário na polícia política e o fato de haver entrevistado o coronel de Ponta Grossa, ajudavam os duros do regime e comporem seu raciocínio: a ditadura não poderia retroceder, pois os subversivos – como eram chamados, na época, os opositores mais firmes – tanto se mantinham atuantes que agora se infiltravam até em pré-escolas e açulavam militares contra seus superiores.

Mas ocorreu o que, para a “linha dura”, era inesperado: a instantânea, larga e intensa reação da sociedade. O sequestro de Juracilda Veiga, embora sem relação aparente com as prisões, colocou no cenário a Igreja Católica, pois a professora e jornalista era militante das comunidades eclesiais de base. Não podendo solidarizar-se apenas com Juracilda, o clero local esteve à frente das mobilizações por todos. Nas missas celebradas no domingo, 19, nas mais de cem paróquias de Curitiba, foi lida uma carta-aberta à população assinada pela Comissão de Justiça e Paz do Paraná e outras 34 organizações da sociedade civil, reunidas em assembleia permanente na Cúria Metropolitana. A carta manifestava preocupação com o “clima de terror e insegurança”. Exigia a imediata libertação dos presos, esclarecimentos sobre o sequestro de Juracilda Veiga e “apuração de atos ilegais do clandestino Comando de Caça aos Comunistas”.

Protestos com humor

As prisões em Curitiba ecoaram por todo o Brasil, provocando condenações generalizadas. A imprensa, cujos patrões naquele momento já começavam a se descolar do projeto dos militares, que eles apoiaram em 1964, repercutiu à larga os acontecimentos. Curitiba ficou coalhada de correspondentes dos jornais nacional. A inglesa Patrícia Feeney, coordenadora do Departamento de Pesquisa Internacional para a América Latina da Anistia Internacional, aportou na cidade para melhor acompanhar os fatos. Mais de oito mil telegramas chegaram do exterior e de vários estados à sede da Polícia Federal, pedindo liberdade para os detidos.

Além da violência, o episódio continha também boa dose de ridículo. A alegação de que os 11 detidos ensinavam marxismo-leninismo às crianças das duas pré-escolas foi logo incorporada ao anedotário nacional. Luiz Fernando Veríssimo produziu uma hilária “cartilha marxista” que estaria sendo aplicada aos meninos e meninas de Curitiba. Em sua coluna do Jornal do Brasil, o poeta Carlos Drumond de Andrade noticiou declarações do garoto Fifico, de três anos e meio de idade, segundo as quais sua professora trocou o livro “Circo de Coelhinhos”, do escritor Marques Rebelo, pelo “O Capital”, de Karl Marx. “Marques e Marx, tudo é a mesma coisa”, teria alegado a professora. No mesmo Jornal do Brasil, Carlos Eduardo Novaes em longa crônica intitulada “A subversão infantil”, informou que, nas duas pré-escolas de Curitiba, as aulas começavam com historinhas que poderiam ser “Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Reacionário”, como “A Branca de Neve, Lacaia do Capitalismo, e os Sete Anões Explorados” ou ainda “Pluf, o fantasma do imperialismo”.

Entre humor e protestos políticos, a pressão foi tal que os detidos acabaram sendo soltos já a partir do terceiro dia após as prisões. Uma semana depois, no domingo, 26, os três últimos deixaram a cela: eu, o também jornalista Walmor Marcelino e o advogado Edésio Passos. Juracilda Veiga permaneceu 24 horas nas mãos dos sequestradores, sempre encapuzada, sofrendo choques elétricos e ameaças em dez 10 longos interrogatórios. O coronel Tarcísio Nunes Ferreira deixou o 5o Grupamento de Artilharia de Campanha em meados de abril, sendo transferido para uma função burocrática em Recife, a do serviço militar. Em 1995, o jornalista, escritor e cineasta Valencio Xavier narrou as prisões no premiado vídeo-documentário “Os Onze de Curitiba – Todos nós”.

O revés na capital paranaense, no entanto, não impediu que a extrema-direita voltasse a agir. Explodiu bombas em bancas de jornal de várias capitais, nas sedes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio, ameaçou, sequestrou e espancou lideranças da oposição e, em 31 de abril de 1981, uma bomba detonou por acidente no colo de um dos terroristas – um capitão do Exército – antes que ele a armasse nas instalações do Riocentro, onde cerca de 20 mil pessoas comemoravam o 1º de Maio.

Mas as ações da extrema-direita – a “linha dura” militar e seus aliados civis – não impediram a progressiva decomposição da ditadura, que prosperava já desde meados da década de 1970. O prenúncio da derrocada ocorreu nas eleições de 1974, quando o MDB – o partido de oposição no bipartidarismo consentido pelos militares – derrotou fragorosamente a governista Arena. Para se ter uma ideia, o MDB passou de sete para 20 senadores e de 87 para 165 deputados federais. A sociedade civil começava a se posicionar francamente contra a ditadura, o que se confirmou nas maciças reações à morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI paulista, em outubro de 1975 e 1976, respectivamente.

Quando o coronel Tarcísio Nunes Ferreira concedeu a entrevista, os estudantes já tratavam de reorganizar a UNE, o que ocorreria em 1979. Exatos dois meses depois dos episódios de Curitiba, a greve dos trabalhadores da Scania, no ABC paulista, marcava o reingresso do movimento operário na cena política brasileira. Despontava ali a liderança do metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. A ditadura já não tinha como manter instrumentos de exceção como o AI-5, afinal revogado em dezembro de 1978. Daí em diante o regime dos militares despencou ladeira abaixo, sem poder resistir à pressão popular. Seguiu-se a anistia, em agosto de 1979, as eleições diretas para governadores, em 1982, o gigantesco movimento das Diretas-Já, em 1984 e, no ano seguinte, a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. A ditadura perdia-se diante da forte oposição no terreno que ela própria criara para se preservar.

*Luiz Manfredini é jornalista e escritor em Curitiba, representa no Paraná a Fundação Maurício Grabois e é autor de “As moças de Minas”, “Memória de Neblina”, “Sonhos, utopias e armas” e “Vidas, veredas: paixão”.