Por Robert Fisk, The Independent, UK. Original em “War on terror is the West’s new religion”.

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu e publicado no Redecastorphoto

Mohamed al-Zawahiri, irmão caçula do sucessor de Osama bin Laden, Ayman, fez declaração particularmente intrigante no Cairo, mês passado. Falando àquela maravilhosa instituição francesa Le Journal du Dimanche sobre o Mali, disse ao jornal que alertasse a França “e as pessoas racionais e razoáveis na França, para que não caiam na mesma armadilha em que caíram os norte-americanos. A França já é responsável por ocupar um país muçulmano. A França já declarou guerra ao Islã”. Jamais, em todos os tempos, a França recebeu aviso mais claro.

E, como se podia adivinhar que aconteceria e aconteceu, dia seguinte suicidas-bomba atacaram a cidade ocupada de Gao; exatamente dez dias depois, a França perdia o segundo soldado no Mali, morto a tiros por rebeldes, em batalha nas montanhas Ifoghas. Ali, nas palavras da velha, fatigada retórica do presidente Hollande, houve uma batalha contra “terroristas” que se “acoitaram” na área, durante uma operação que já estava “na fase final”. É fraseologia tão esgotada – ouviram-se as mesmas palavras velhas em praticamente todos os pronunciamentos dos EUA durante a guerra do Iraque – quanto a capacidade do ocidente para compreender a nova al-Qa’eda.

Só se compara ao Pimpinela Escarlate da Baronesa Orczy (Livro editado em português pela Livraria do Globo, Porto Alegre, em 1957):  (“Procuraram [o Pimpinela] aqui, ali, acolá, os francezolas procuram o homem por toda parte…” Mas quem, exatamente, procuravam? O líder de qual específico grupúsculo de bandoleiros inspirados pela al-Qa’eda no Mali? De fato, nossos amos e senhores não dão sinal de terem nem qualquer mínima ideia das pessoas das quais falam. Há poucas semanas, quando a maioria de nós não sabia nem o nome da capital do Mali – reconheçamos, ô leitores! – ainda vivíamos sob a firme fé de que o renascimento da Al-Qaeda acontecia no Iraque, onde tudo já voltou à situação de suicidas-bombas diários contra xiitas.

Veio então o “professor de Al-Qaeda”, como o chamam seus editores, Gregory Johnsen, com livro intitulado The Last Refuge: Yemen, Al-Qaeda and the Battle for Arábia [O último refúgio: Iêmen, Al-Qaeda e a Batalha pela Arábia]. Yes, folks! Os bandidos encontraram abrigo no antigo reino da Rainha de Sabá; no livro não há nem uma referência, referência zero, ao Mali. Em seguida – para surpresa e estarrecimento globais – constatou-se que os amaldiçoados da Al-Qaeda estavam, sim, confirmado, no norte da Síria (vejam La Clinton e indômito, valente, valoroso secretariozinho de Relações Exteriores do nosso Reino Unido). Desnecessário dizer, estávamos de volta ao Mali, outra vez, dia 12/2, quando a Al-Qaeda na Península Arábica (o quartel-general, como se sabe ficava no Iêmen, não esqueçam) convocou para Jihad no Mali contra “os cruzados”. Bem… Pelo menos a Al-Qaeda demarcou uma das nações europeias que, sim, realmente participaram das Cruzadas originais. A imprensa-empresa ocidental, como sempre, manteve e repetiu essa narrativa delirante, sem sentido algum, citando os mesmos especialistas em “terroristas” de sempre, em Londres, Paris e por todo o ocidente.

Graças aos céus, portanto, que haja autores árabes como Abdel Bari Atwan – que conheceu o verdadeiro Bin Laden melhor que qualquer jornalista – e seu livro After Bin Laden: Al-Qa’ida, the Next Generation [Depois de Bin Laden: Al-Qaeda, a Próxima Geração]. Atwan – admito: meu velho amigo – explica estruturadamente como a Al-Qaeda transformou-se depois do assassinato de Bin Laden; e recorda como, em 2005, recebeu por e-mail um documento intitulado “Al-Qa’eda’s strategy to 2020”[Estratégia da Al-Qaeda até 2020], que delineava sete “estágios” rumo a um califado islâmico mundial.

O estágio nº 1 era “provocar o pesado elefante americano para que invada terras muçulmanas, onde os mujahideen poderão combatê-lo mais facilmente.

Estágio nº 2: a nação muçulmana desperta de seu longo sono e enfurece-se ante o plano de uma nova geração de cruzados, de ocupar grandes partes do Oriente Médio e de roubar seus valiosos recursos. “As sementes do ódio contra os EUA no qual a Al-Qaeda sempre investiu” – diz Atwan – “foram semeadas quando as primeiras bombas caíram sobre Bagdá em 2003”.

De fato, como escrevi depois da invasão, uma mensagem oblíqua de Bin Laden pouco depois da aventura de Bush – e mensagem que a CIA, em atitude que lhe é típica, ignorou – realmente convocava os membros da Al-Qaeda a cooperar com os odiados baath’istas, contra as forças dos EUA. Foi a primeira convocação para que a Al-Qaeda colaborasse com outros grupos – semente da praga que hoje já se disseminou, com unidades da Al-Qaeda lutando ao lado de outras organizações rebeldes no Iraque, Iêmen, Líbia, Argélia, Mali e, agora, na Síria.

O estágio 3 é um conflito OTAN-Al-Qaeda, num “triângulo de horror” (…) no Iraque, Síria e Jordânia”. No estágio 4, “Al-Qaeda passa a ser rede global (…), o que torna a geração de franquias operação extraordinariamente mais fácil”. No estágio 5, o orçamento militar dos EUA “é sufocado, arrastado na bancarrota e no derretimento da economia”. O 6º estágio é “derrubar os odiados ditadores árabes. Finalmente, o definitivo choque de civilizações e uma batalha terrível, apocalíptica”. Al-Zawahiri, aliás, vive a citar Ascensão e queda das grandes potências [1] [The Rise and Fall of the Great Powers] de Paul Kennedy, historiador de Yale, que vê o colapso econômico sempre na base do colapso dos impérios.

A Al-Qaeda também tem seus fracassos: o movimento não conseguiu entrar na Palestina, o suposto centro do coração de Bin Laden; nem obteve sucesso algum no hedonista Líbano – embora a Al-Qaeda tenha tentado encenar um levante num campo de refugiados palestinos no norte do país e tenha seguidores no gigantesco campo de Ein al-Helwe, em Sidon.

Atwan escreveu capítulo perturbador sobre guerra digital – a Al-Qaeda é hoje, afinal, quase tão adepta de gerar conteúdos quanto qualquer empresa-imprensa – e fala da possibilidade de a Al-Qaeda assumir o controle de um sistema de tráfego aéreo, de usinas nucleares, de redes de energia, de absolutamente tudo e qualquer coisa. E al-Zawahiri tem-se manifestado pessoalmente interessado na energia líbia. Interromper ou perturbar os fluxos de petróleo para o ocidente. Claro: já foi tentado na Arábia Saudita.

Atwan, menos realisticamente, embarca na análise da Rand Corporation, de 2008, sobre “como terminam os grupos de terror”, uma lista dos desejos e sonhos da CIA: todos os líderes são “dronados” ou assassinados de outros modos, os grupos dissidentes crescem e racham o movimento, o grupo “engaja-se no processo político” (ver o “presidente” Hamid Karzai e os Talibã). Bin Laden tinha uma palavra sobre isso. “Você mencionou que a inteligência britânica disse que a Inglaterra [sic] deixaria o Afeganistão se a Al-Qaeda prometesse não atacar interesses dela” – escreveu ele em carta a um comandante que seria “dronado” um ano antes de o próprio Osama ser morto (o “negócio britânico” soa, sim, como possível perfeita, cruel verdade). “Não faça acordo de nenhum tipo, não aceite nada… mas sem bater a porta”.

Aha! Quer dizer então que até Bin Laden teria fechado acordo por menos que um califado mundial. Duvido que Hollande, algum dia, receba proposta de “negócio” semelhante a esse, depois de os franceses terem assado no Mali. Duvido. Ainda creio no grande conto de John Wyndham, The Day of the Triffids [2]. Ninguém sabia como as malsinadas criaturas, que cobriram a Terra de cegueira, poderiam sem contidas. Até que a filha de um guardador de farol, na tentativa desesperada de salvar a própria vida, jogou água do mar sobre as coisas. E elas apodreceram em segundos, diante dos olhos dela.

Assim sendo, por que não param de borrifar bombas e urânio baixo enriquecido sobre os povos do Oriente Médio? E por que não param de mandar nossos combalidos exércitos para ocupar terras dos muçulmanos – o que, aliás, é exatamente o que a Al-Qaeda deseja que façamos – e por que não param de subornar líderes árabes para que esmaguem o próprio povo? Em vez disso, não podemos levar a justiça a visitar aquelas tristes terras? Justiça para os palestinos, justiça para os curdos, justiça para os sunitas iraquianos, justiça para o povo do sul do Líbano, justiça para o povo da Caxemira. Se o ocidente orientar-se para essa Cruzada verdadeira, a Al-Qaeda, como aquelas pérfidas trífides, desaparecerão. E o povo que vive no mundo muçulmano que resolva, lá, sobre o “califado” deles.

Porém, justiça não é feita de água salgada, nem abunda como água do mar e nossos amos e senhores ainda querem governar o mundo, e não há a menor chance de que arrisquem o status deles, a reputação, o futuro na política, a vida, lutando por justiça, conceito fora de moda. A “Guerra ao Terror” ainda é a nova religião do Ocidente – e por que não seria, quando o ministro francês do Interior declara que “há um fascismo islâmico crescendo por todos os lados?”.

O mais triste é que não estamos lendo a mensagem mais óbvia: que a Al-Qaeda fracassou quase completamente e não conseguiu sequestrar o despertar árabe; não se veem imagens de Bin Laden, nem a bandeira da Al-Qaeda surgiu nas mãos daqueles milhões que marcham pelas ruas das capitais árabes. Mas… não! Embarcamos agora no mito de que partidos islamistas eleitos seriam Al-Qaedas disfarçadas, de que – no fundo – o mundo islâmico está em eterno “choque de civilizações” conosco, que temos de temê-los, de odiá-los.

E assim a guerra prossegue. O que aquele esplêndido Leon Panetta – meu secretário de Defesa favorito – disse em Cabul, há 18 meses? “Estamos já bem próximos de derrotar estrategicamente a Al-Qaeda”. E em Londres, há poucos dias? Falou de “incansável pressão” sobre o grupo. Será que há um agente da al-Qaeda, trabalhando como assessor de imprensa, escrevendo essas coisas para ele? Ou será que partilhamos algum conhecimento obscuro, não dito, nós e a Al-Qaeda? Ou será que todos, no fundo da alma, nós e a Al-Qaeda queremos que a guerra continue?

Os EUA enviam soldados

O Pentágono deslocou cerca de cem soldados para o Niger, para executar voos de drones comandados à distância, de reconhecimento, sobre o Mali e partilhar inteligência com forças francesas que combatem contra militantes afiliados à Al-Qaeda. O mais recente contingente chegou há quatro dias ao Niger, e “receberam armas com vistas a garantir proteção e segurança à própria força”.


Oficial do Pentágono disse que o AFRICOM – Comando dos EUA na África (com sede em Stuttgart) enviou os drones ao Niger, para apoiar várias missões de segurança regional e compromissos assumidos com nações parceiras”.


13 soldados do Chade foram mortos em combate no norte do Mali, o maior número de baixas sofridas por forças francesas e africanas desde o início da campanha, há seis semanas. Tropas do Chade mataram 65 militantes da Al-Qaeda naqueles confrontos, que começaram antes do meio dia nas montanhas Adrar des Ifoghas, perto da fronteira norte do Mali.


A França invadiu sua ex-colônia em janeiro. A violência pode facilmente degenerar numa infindável guerra de guerrilhas entre forças francesas e africanas.

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Notas dos tradutores

[1] KENNEDY, Paul. – Ascensão e Queda das Grandes Potencias, Rio de Janeiro: Campus, 1991.

[2] The Day of the Triffids [O dia das trífides] é romance pós-apocalíptico sobre uma praga de cegueira que atinge todo o planeta, o que permite a proliferação de uma espécie agressiva de plantas (as trífides do título). Publicado em 1951, foi roteirizado para ocinema em 1962, para o rádio e para duas séries de televisão.