Podemos, também, incluir nesta lista de precursores da democracia moderna o próprio Babeuf, Buonarotti, Blanqui, os cartistas ingleses – legítimos representantes dos trabalhadores revolucionários nas últimas décadas do século 18 e nas primeiras do século 19.

Essa origem remota da democracia política moderna foi habilmente acobertada pela historiografia liberal. A operação consistiu, de um lado, em estabelecer um fio de continuidade entre os teóricos liberais e a democracia política moderna. Os pais da democracia ficaram sendo Locke, Mill, Tocqueville e os federalistas norte-americanos. Se o liberalismo e a democracia eram irmãos siameses, os pais só poderiam ser os mesmos. Não importava que parte deles fosse contra o sufrágio universal, o direito de organização dos trabalhadores e de alguns chegava mesmo a justificar a escravidão.

Por outro lado, cabia desqualificar aqueles que buscavam colocar um sinal de igualdade entre democracia e soberania popular. Estes, entre os quais se incluía Rousseau, eram acusados de ter plantado os germes do que viria a ser conhecido como totalitarismo. Nesta mesma trilha seguiriam Lênin, Stálin, Mao, Castro etc.

Setores importantes da esquerda também contribuíram para que a operação ideológica realizada pelos liberais pudesse ser bem sucedida. Colaboraram ao atribuir, exclusivamente, à burguesia a criação de todos os mecanismos (e institutos) da democracia política, entendidos como simples instrumentos de ludibrio dos trabalhadores. Ou seja, a burguesia conscientemente criou a democracia para neutralizar o ímpeto revolucionário das massas trabalhadoras e incorporá-las, de maneira subordinada, à “ordem do capital”.

O debate em torno da relação existente entre democracia política e socialismo tem bem mais de um século. Destacam-se os confrontos teóricos e políticos ocorridos entre Bernstein – pai do revisionismo marxista – e a maioria dos dirigentes da social-democracia europeia; entre os social-democratas (reformistas) e os comunistas no pós-1914 e, por fim, as polêmicas no interior do próprio movimento comunista internacional – lembremos a polêmica entre Rosa de Luxemburgo e Lênin pós-Revolução Russa de 1917. Com a ascensão de Stálin no interior do PCUS o debate ficou congelado por várias décadas. Mesmo as correntes esquerdistas, especialmente trotskistas, tenderam a simplificar o debate e reduzi-lo à fórmula: liberalismo = democracia. Pelo menos neste ponto a dogmática soviética dava as mãos à trotskista e as duas jogavam água no moinho da retórica liberal.

Um exemplo típico dessa visão desqualificadora da democracia foi o discurso proferido pelo secretário-geral do Partido Comunista da Alemanha, Urbhans, quando do seu julgamento após o fracassado levante de 1923. Perante os juízes, afirmou: “As massas nos dirão: é melhor arder no fogo da revolução do que se arrebentar na estrumeira da democracia”. Alguns anos mais tarde as principais lideranças operárias – comunistas e social-democratas – arderiam nos campos de concentração nazistas e as massas populares nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial.

O debate sobre a relação entre democracia e socialismo voltou à tona na década de 1960. Mas foi, sem dúvida, com o surgimento da corrente eurocomunista que ele passou a ter lugar central na agenda teórico-política das organizações da esquerda mundial. Entre os principais expoentes desta nova corrente estavam Georges Marchais, Enrico Berlinguer e Santiago Carrilho, respectivamente secretários-gerais dos partidos comunistas da França, Itália e Espanha.

Um de seus marcos fundadores foi o polêmico discurso pronunciado por Berlinguer em Moscou, durante as solenidades comemorativas aos 60 anos da Revolução de Outubro. Nele, o dirigente comunista italiano afirmou: “A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também um valor historicamente universal sobre o qual devemos fundar uma original sociedade socialista”.

Uma visão carregada de infundado otimismo. A democracia era vista como uma via de mão única na qual apenas os trabalhadores poderiam avançar. Na verdade, ela era uma perigosa via de mão dupla. Ironicamente, a opinião expressada no auge da expansão do chamado campo socialista seria negada pela história poucos anos depois. A URSS e o próprio partido de Berlinguer, o PCI, deixariam de existir. Uma onda conservadora se espalhou pelo mundo. Pela mesma estrada que se acreditava caminhavam as massas populares rumo ao socialismo agora marchavam as tropas de choque do neoliberalismo triunfante. 

O debate chega ao Brasil

Poucos anos depois do polêmico discurso de Berlinguer, o debate chegou ao Brasil. No interior do Partido Comunista Brasileiro (PCB) formou-se uma influente corrente eurocomunista, composta fundamentalmente por intelectuais. O marco de sua constituição foi a publicação, na revista Encontros com a Civilização Brasileira, do polêmico artigo de Carlos Nelson Coutinho intitulado “A democracia como valor universal”. Como podemos notar, o próprio título era de nítida inspiração berlinguerliana. No entanto, Coutinho radicalizou ainda mais a tese do eurocomunista italiano retirando o termo “historicamente”. A democracia deixava de ter um “valor historicamente universal” e passava a ter “valor universal”. Esta diferença a meu ver não é secundária.

O texto de Coutinho foi muito importante, pois repôs com nova energia o esquecido debate sobre o vínculo que deveria existir entre democracia e socialismo. Ele ajudou a arejar o ambiente saturado pelo dogmatismo. Ao curvar a vara para o outro lado – e negar categoricamente o caráter burguês da democracia política moderna –, ele obrigou os intelectuais marxistas a se reposicionarem sobre o problema. A síntese do debate, no geral, acabou sendo bastante positiva. 

No seu artigo, ele criticou “a falsa e mecânica identificação entre democracia política e dominação burguesa” e afirmou: “Chamar as modernas democracias europeias atuais de burguesas só é possível à custa de um enorme empobrecimento da análise e, por conseguinte, da perspectiva política. Seria mais correto dizer que são democracias sob hegemonia burguesa, aliás hegemonia em permanente disputa por parte dos trabalhadores”. A principal tarefa das forças socialistas, na verdade, consistiria em buscar “eliminar o domínio burguês sobre o Estado, a fim de permitir que esses institutos políticos democráticos possam alcançar pleno florescimento e, desse modo, servir integralmente à libertação da humanidade trabalhadora”.

Seguindo a trilha aberta por Carlos Nelson Coutinho, sem o mesmo brilhantismo, Francisco Weffort, um dos principais ideólogos do Partido dos Trabalhadores nos seus primeiros anos, publicou Por que democracia? Nele, entre outras coisas, afirmou: “A democracia foi, em algum momento da história da Europa, um instrumento da aristocracia contra o absolutismo monárquico. Tornou-se depois instrumento da burguesia contra a aristocracia. E já há algum tempo – como democracia representativa e democracia direta – é um instrumento do operariado e das massas populares contra a burguesia”.

E concluiu: “Raciocinar sobre a democracia, como a conhecemos no mundo moderno, como se fosse apenas fruto de artimanhas das classes dominantes, é mais do que dar provas de ignorância da história política”. Quase uma década depois outro ideólogo petista, Marco Aurélio Garcia, afirmaria, para espanto de alguns de seus pares: “a democracia política é um fim em si. Um valor estratégico e permanente. Se esta tese é social-democrata, paciência, sejamos social-democratas”.

A crítica dos marxistas brasileiros

Vários marxistas brasileiros criticaram as teses expostas por Coutinho e Weffort. A primeira resposta foi dada por Adelmo Genro Filho no seu artigo “A democracia como valor operário e popular”, publicado também na revista Encontros da Civilização Brasileira. Porém, coube ao professor Décio Saes o mérito de realizar a crítica mais elaborada (e mais original) às formulações eurocomunistas que começavam a ganhar adeptos em nosso país.

No início de 1981 ele publicou na revista Teoria e Política o artigo “A democracia burguesa e a luta proletária”. Este foi, sem dúvida, um marco no debate sobre a relação entre a luta operária pelo socialismo e a democracia política moderna. Nele se procurou romper com a problemática predominante que consistia em “supor que a democracia burguesa, como produto histórico concreto de práticas de classe, teria de corresponder necessariamente, e de modo integral, aos objetivos, intenções ou finalidades de uma só dentre as classes sociais antagônicas”. Ou seja: ou a democracia corresponderia aos objetivos, intenções e finalidades do proletariado (primeira tese), ou ela corresponderia aos objetivos, intenções e finalidades da burguesia (segunda tese). A primeira tese foi (e é) defendida pelos social-democratas e eurocomunistas (entre os quais se encontra Coutinho) e a segunda predominou amplamente entre os chamados stalinistas e trotskistas.

Utilizando uma reflexão de Engels, expressa em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Saes chegou à conclusão de que “na maioria dos casos (e não, necessariamente, em todos eles) o resultado concreto de um processo social (relação entre agentes) não corresponde às intenções, nem de um, nem de outro agente. Tal ocorre, em geral, com o processo de dominação política de classe: a sua forma objetiva não corresponde nem à intenção da classe exploradora, nem à intenção da classe explorada (…). A prática da classe explorada, de resistência à dominação de classe, põe obstáculos à concretização das intenções da classe exploradora (= maximização da exploração, até o limite da sobrevivência física da classe explorada); mas as concessões (materiais, no plano do discurso) com as quais a classe exploradora responde à prática de resistência desencaminham a classe explorada, levando-a a agir por vias que não levam à concretização de sua intenção (a supressão da dominação de classe e da exploração do trabalho)”.

Em um ponto Décio parece concordar com os autores da chamada primeira tese: a democracia política não estava no programa inicial da burguesia e não era uma de suas aspirações. “Na sua luta contra a antiga classe dominante”, escreveu, “a burguesia não prepõe a instauração de uma igualdade política formal – direitos políticos para todos –, e sim a instauração de uma nova desigualdade política formal, desta vez favorecendo o conjunto das classes proprietárias (e não mais apenas a nobreza feudal) e desfavorecendo o conjunto das classes trabalhadoras (…). Logo após a derrota política da classe dominante feudal, a burguesia já luta não só para maximizar a exploração do trabalho, como também para impedir que o proletariado se organize. Na França, ainda em plena luta contra a monarquia absoluta e a nobreza feudal (junho de 1791), a burguesia impôs às classes populares a Lei Le Chapelier (interdição à liberdade de organização) (…). Além disso, uma vez derrotadas politicamente as massas populares, a burguesia introduz (Constituição de 1795) o sistema de voto censitário (direito de voto segundo a renda); e tal sistema continuará, justamente em virtude do seu caráter discriminatório, a ser o sistema eleitoral preferido pela burguesia francesa do século XIX”.
Segundo o autor, a pressão crescente das massas populares pela igualdade econômica levou a burguesia a fazer concessões no plano político. Tais instituições ditas democráticas, afirmou ele, representaram ”uma concessão da burguesia às classes populares (…). Ela consiste em propor (…), não a concretização da igualdade material, e sim um substitutivo: a igualdade política formal entre os indivíduos”. Isso é apresentado “como condição que torna passível de sucesso a luta das classes populares pela igualdade socioeconômica”.

A chamada democracia moderna (burguesa) seria assim “o resultado deformado de um processo de luta, não correspondendo às intenções, nem de um, nem de outro dos agentes”. Isso fez com que a democracia pudesse abrir, contraditoriamente, duas possibilidades. Ela poderia “servir como um instrumento de reforço da dominação ideológica burguesa, como levar ao desenvolvimento da consciência revolucionária do proletariado”.

A Crítica Marxista e o debate atual

Nestas últimas décadas a revista Crítica Marxista publicou diversos artigos de intelectuais que são contrários à tese da democracia como valor universal, como os professores: Márcio Naves, Caio Navarro de Toledo, João Quartim de Moraes e do próprio Décio Saes (veja bibliografia abaixo).

Em geral, esses intelectuais escaparam dos dois extremos no tratamento da questão da democracia política moderna. Um o da fetichização, expressado na tese da “democracia como valor universal”; e o outro o da desqualificação – da vinculação direta (sem mediação) entre democracia política e dominação burguesa. Extremos que se expressam na falsa disjuntiva: democracia política (formal) como espaço emancipatório por excelência x democracia como simples ardil concebido pela burguesia para manter a sua dominação de classe sobre o proletariado.  

Criticando os arautos da “democracia como valor universal”, Caio Navarro de Toledo escreveu: “Ao se postular que a democracia moderna no capitalismo é o produto e a consequência das lutas populares, passa-se à conclusão equivocada de que, nos tempos atuais, a democracia é fundamentalmente um poder exclusivo das classes trabalhadoras (…). Subestima-se, assim, a realidade de que o funcionamento regular das instituições democráticas (eleições regulares, pluralismo partidário, liberdades políticas etc.) tem igualmente contribuído para a legitimação da ordem burguesa (…), a realização da democracia representativa, na ordem capitalista, constitui e difunde a ideologia do Estado neutro e do Estado representante da totalidade da população”. Por outro lado, “a democracia política não é sinônimo de dominação burguesa nem é uma conquista descartável ou supérflua para as classes trabalhadoras (…). O valor da democracia política – na ordem do capital – reside nas possibilidades abertas para os trabalhadores lutarem pela construção de uma sociedade sem privilégios e sem discriminações. É nesse sentido, pois, que a institucionalidade democrática deve ser consolidada e permanentemente ampliada”.

Quartim de Moraes, por sua vez, escreveu: “É curioso constatar que (…) os dogmáticos de esquerda convergem com os de direita no empenho em ocultar as diferenças entre liberalismo e democracia. Os de esquerda, ao afirmarem o caráter irremediavelmente burguês da democracia, tornam irrelevantes, senão impossível, distingui-la da ideologia liberal. Os de direita, principalmente os politólogos norte-americanos, para anexar à ideologia liberal os valores democráticos, amputam-nos do seu conteúdo historicamente originário e conceitualmente original (= poder do povo)”.

Aqui ele se refere explicitamente a Schumpeter, para o qual a democracia se confundiria com um simples método, “um arranjo institucional para chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. Assim estaria excluída toda e qualquer relação entre democracia e soberania popular tão cara aos velhos democratas como Rousseau, Robespierre etc. Continua Quartim: “A expressão democracia burguesa (…) em si mesma não é nem verdadeira nem falsa. Dá origem, entretanto, a múltiplos equívocos (…). A cópula predicativa oculta a tensão dialética entre as duas”. Para ele, seria o liberalismo “a forma política mais adequada à dominação de classe dos capitalistas e, nesta medida, serve-lhe de ideologia espontânea”. Se democracia não rima com burguesia, liberalismo sim.

Apesar dessa importante constatação, Quartim não descarta apressadamente a tradicional definição da democracia realmente existente (demorex) como democracia burguesa. Escreve ele: “sobre a base das relações capitalistas de produção, a democracia será sempre a forma política da dominação de classe da burguesia. Donde a necessidade objetiva de uma ruptura abrindo a via para passagem da ordem do capital à ordem socialista”. Por fim, o autor rompe com a polarização antidialética – e anti-histórica – em torno do problema da possibilidade da transição ao socialismo pela “via democrática” (que não se confunde com “via pacífica”). O marxismo, escreveu, “não recusa, em princípio, a ideia da transição do capitalismo ao socialismo pela via democrática. Sempre é bom lembrar que quem recusa essa via é a burguesia, como atestam as dezenas de golpes de Estado que derrubaram governos de esquerda”. Novamente é a burguesia que se mostra incompatível com as realizações da democracia.

*  Publicado originalmente no Observanordeste da Fundação Joaquim Nabuco em 08/03/2006.
** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução burguesa: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.

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