O preço da ditadura são os excessos da democracia

A descoberta genial da dialética do “espírito” por Hegel, trazida por Marx ao universo das relações materiais, aponta para aspectos essenciais da dinâmica histórica que dificilmente reconhecemos no curto prazo. Por que temos greve nos serviços públicos de saúde e de educação senão porque se trata de uma contrapartida dialética da proibição absoluta de greves em qualquer setor no tempo da ditadura? Por que o Ministério Público quer liberdade ampla de se substituir à polícia em investigação criminal senão porque passou as décadas da ditadura bloqueado politicamente em sua prerrogativa institucional de denunciar?

Por que o TCU se mete a paralisar obras públicas em andamento, com imensos prejuízos para o contribuinte, a pretexto de evitar a corrupção, senão porque passou décadas em que seus pareceres eram ignorados pelos congressos e os executivos do regime autoritário? Por que os órgãos de controle ambiental e de patrimônio histórico, inclusive de índios e quilombolas, se tornaram tão ativos na defesa do que definem como seus interesses, frequentemente recorrendo ao Ministério Público para impedir ou retardar obras já licitadas, e não raro prejudicando interesse público, senão porque também eram ignorados na ditadura?

Tudo isso faz parte do jogo dialético pelo qual os excessos da democracia são consequência inexorável da truculência da ditadura. Entretanto, também na democracia a história marcha num movimento bipolar inexorável, e isso durará enquanto houver forças sociais e políticas em oposição umas contra as outras – umas alinhadas ao governo, outras contra. É claro que se esse jogo bipolar assumir características extremadas a sociedade sofrerá as consequências perversas do bloqueio recíproco de iniciativas, tal como está acontecendo nos Estados Unidos entre o Partido Democrata e o Republicano na questão fiscal.

O stress de uma dialética política extremada, quando nenhum dos contendores tem uma posição hegemônica em relação ao outro, só se resolve por uma síntese histórica. Essa síntese preserva elementos dos dois lados para construir uma alternativa de interesse comum. Em outro tempo, acreditou-se que a dialética de classe só seria superada pela destruição da classe burguesa e a hegemonia definitiva do proletariado, a ditadura de classe. Hoje poucos acreditam nessa versão marxista original, justificada, em sua própria época, pela existência de um Estado que efetivamente era a comissão de frente exclusiva da burguesia.

Agora estamos no tempo da democracia de cidadania ampliada. Não é propriamente uma democracia perfeita, sujeita que ainda está ao poder econômico que subordina grande parte dos meios de comunicação, mas é uma democracia em movimento. Acredito que uma estratégia coerente das forças progressistas implica tirar da democracia de cidadania ampliada tudo o que ela pode dar em termos de aumento do bem-estar social. Isso significa buscar uma participação crescente no orçamento público por parte dos setores mais fragilizados da sociedade mediante uma redistribuição mais justa do que chamo de mais valia social.

Essa síntese histórica supõe concessões de parte a parte em troca do compromisso de não se tentar destruir o outro. A direita terá de controlar seus excessos – basicamente, a distorção do sistema produtivo mediante a exacerbação da financeirização da economia global, a destruição do meio ambiente, o empenho na acumulação dos meios de guerra e a destruição do Estado de bem estar social -, enquanto as esquerdas devem adequar suas demandas ao interesse coletivo, reduzindo as pressões corporativas. É claro que não chegaremos a esse estágio de um golpe. A história não dá saltos.

Infelizmente, ainda não consigo ver claramente como se daria um grande acordo pra implementar essa síntese. É certo que a base para a efetiva melhoria social é o crescimento econômico com dimensão social, ou seja, o desenvolvimento. Atualmente, o desenvolvimento brasileiro está empacado (crescimento do PIB de 1%) a partir de duas vertentes: a dos órgãos de controle da corrupção ex ante, e a dos órgãos de controle ambiental e do patrimônio. Ninguém é a favor da corrupção ou do descontrole ambiental e patrimonial. Contudo, é fundamental compatibilizar desenvolvimento e controle, sem o embargo recorrente de obras.

Cito alguns exemplos pictóricos: o Ministério dos Transportes teve este ano R$ 17 bilhões para investir; não vai investir nem R$ 5 bilhões. É o medo da corrupção. A transposição do São Francisco está extremamente atrasada. Soube que uma das construtoras, a Camargo Correia, entregou seu trecho porque o TCU alegou que havia superfaturamento de uma obra que cumprira todos os trâmites desde o edital. O Ministério das Cidades não gastará no ano nem 10% de seu orçamento para saneamento. E assim por diante. Os dirigentes dos órgãos públicos estão com medo de gastar. E quando gastam, têm que dar sucessivas explicações ao Ministério Público, o TCU e outros órgãos controladores, as vezes paralisando as as obras. Assim, não haverá desenvolvimento.

Há uma forma simples de resolver isso: TCU é tribunal de contas, não é órgão de fiscalização de obras em andamento. Ele não deveria dar palpite sequer no edital, prerrogativa do Executivo. Enquanto a obra estiver em andamento ele não deveria poder interferir. Interferiria, sim, na prestação de contas. Aí seria o caso de adotar pesadas penas pecuniárias e criminais para os responsáveis por eventuais irregularidades na construção. O contribuinte seria duplamente beneficiado: teria a obra concluída, e eventuais desvios corrigidos. Quanto ao Ministério Público, concordo com o projeto no Congresso que pretende eliminar seus poderes de investigação. Há polícias para isso. Sua interferência só atrapalha.

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Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.

Fonte: Carta Maior