Eric Hobsbawm – que, por um desses acasos combinados da história e da biologia, nasceu justamente no ano que ele próprio apontou, muito mais tarde, como o ano em que terminou o século 19 e iníciou-se do século 20, o ano revolucionário de 1917 – foi não apenas o maior historiador de nosso tempo mas um grande renovador de sua ciência, a história.

As dezenas de livros que escreveu constituem uma notável investigação cujo marco inicial é a Revolução Francesa de 1789 e as revoluções burguesas na Europa – série a que denominou A Era das Revoluções, encerrada com o volume sobre a século 20, A Era dos Extremos. Tudo isso entremeado com investigações sobre cultura, ciência, história do nacionalismo, estudos sobre os trabalhadores, sua organização e sua luta. E também pela monumental História do Marxismo, que organizou e dirigiu entre as décadas de 1970 e 1980.

O destacado historiador que foi Hobsbawm foi um homem de seu tempo – das lutas de seu tempo. Ele próprio contou, em sua autobiografia que intitulou Tempos Interessantes, como despertou para a importância da luta política e ocorreu sua adesão ao marxismo.

Tendo vivido parte da adolescência em Berlim nos anos anteriores à ascensão do nazismo, ele escreveu: “qualquer um que tenha assistido, de primeira mão, à ascensão de Hitler, não poderia ter evitado ser politicamente moldado por este acontecimento. E este garoto está ainda dentro de mim, sempre estará”, garantia. “Os meses da minha estadia em Berlim fizeram de mim um comunista para toda a vida”, escreveu, ressaltando outra influência decisiva que trouxe desde a infância: “pertenço à uma geração para quem a revolução bolchevique representou uma esperança para o mundo”.

Estas são as raízes mais longínquas, e mais firmes, de uma prática historiográfica que atravessou o século, enfrentou modismos efêmeros e nunca arredou pé da compreensão da história como uma ciência fundamentalmente política e intimamente ligada à luta pelo socialismo. Convicção reforçada ainda menino quando, morando com um tio comunista, em Londres, leu o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. Foi uma iluminação, reconheceu mais tarde referindo-se a estes anos iniciais.

Hobsbawn filiou-se ao Partido Comunista Britânico em 1936, quando tinha 19 anos de idade. Anos depois, fez parte do grupo de historiadores ligados à escola do Partido e que incluía nomes que iriam renovar a ciência da história nas décadas seguintes – entre eles Maurice Dobb, Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson, George Rudé etc.

O grupo funcionou desde 1946. Em 1956, sob o impacto da crise aberta no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, das denúncias contra Stálin e da ação soviética contra o levante na Hungria, aquele grupo entrou em crise e muitos se afastaram, seja do partido, seja do próprio pensamento marxista. Hobsbawn ficou. Não abriu mão do marxismo e, mesmo com críticas, manteve-se ligado ao partido até o fim da vida, embora sem o ímpeto militante inicial.

O grupo de historiadores do Partido Comunista Britânico foi pioneiro no estudo da história dos trabalhadores, do povo, dos “de baixo”, inovando a pesquisa histórica em uma série de aspectos. Tinham claro compromisso com a luta política dos trabalhadores, deixando em segundo plano os maneirismos acadêmicos. Em 1952 fundaram uma revista importante chamada Past and Present (Passado e Presente) para desenvolver uma historiografia baseada no marxismo. Em 1992, os remanescentes daquele grupo de historiadores criaram a Social History Society (Sociedade da História Social), que admitia membros que já não fossem filiados ao Partido, e lançou a revista Socialist History (História Socialista).

Numa entrevista, em 2002, Hobsbawn explicou sua relação com o Partido Comunista: “Fui um membro fiel do partido comunista por duas décadas antes de 1956 (invasão soviética da Hungria) e depois me tornei um integrante silencioso sobre coisas que seriam razoáveis de não se calar.”

Mas Hobsbawm distinguiu-se entre seus colegas historiadores por não abrir mão da luta pelo socialismo e subordinar a ela sua elaboração historiográfica. Se a relação partidária teve altos e baixos, a convicção marxista nunca esmaeceu. Ao contrário, viu-se confirmada quando a crise econômica trouxe o pensamento de Marx de volta ao primeiro plano. “A redescoberta de Marx está acontecento”, disse numa entrevista de poucos anos atrás, “porque ele previu muito mais sobre o mundo moderno do que qualquer outra pessoa em 1848. É isso, acredito, o que atrai a atenção de vários observadores novo”.

Analista refinado e atento, foi um crítico radical do conservadorismo neoliberal que via na superação do capitalismo uma necessidade histórica e a promessa de novos ganhos civilizatórios para a humanidade.

Neste sentido, disse certa vez sentir-se “mais em casa na América Latina”, por um razão simples: “é o único lugar no mundo em que as pessoas fazem política e falam dela na velha linguagem – a dos séculos 19 e 20, de socialismo, comunismo e marxismo” Isto é, a linguagem que remete às promessas do futuro.

Afirmação confirmada por avaliações positivas sobre as mudanças que ocorrem em nossos países, e sobre lideranças importantes como Luís Inácio Lula da Silva ou Fidel Castro. Em 2010, ao final do governo Lula, saldou a experiência bem sucedida de seus dois mandatos, favorecendo os brasileiros e também o mundo. “Lula ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas”, disse. Em outra entrevista, na mesma ocasião, dizia ser muito significativo o fato de Lula ser “o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. E ninguém o havia feito nunca na história desse país”. Daí a grande popularidade do presidente, explicou. “Porque no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles, desenvolvendo ao mesmo tempo a indústria e a exportação de produtos manufaturados. A desigualdade ainda assim segue sendo horrorosa. Mas ainda faltam muitos anos para mudar as cosias. Muitos”.

Em relação a Fidel Castro, semelhante avaliação positiva foi taxativa. Quando o repórter Geneton Moraes Neto perguntou a ele “Como é que a História vai julgar Fidel Castro? Daqui a meio século, ele vai receber um julgamento positivo ou vai ser condenado como o último ditador comunista?”, Hobsbawm não teve dúvida. “O julgamento será positivo, sem dúvida alguma”, disse. “Fidel Castro será claramente a figura mais importante da história nacional de Cuba. Quanto à América Latina como um todo, Fidel Castro será um símbolo de libertação”.

A confiança na superação do capitalismo por uma sociedade superior foi reafirmada em 2011, quando lançou seu último livro, Como mudar o mundo? Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, rejeitou o fim, ou a redução, da esperança. “Não existe esperança reduzida hoje. O que digo agora é que os problemas do século 21 exigem soluções com as quais nem o mercado puro nem a democracia liberal pura conseguem lidar adequadamente. É preciso calcular uma combinação diferente.”

A renovação da história

Hobsbawm foi um renovador da forma de contar a história, renovação que não buscou inovar por modismo. O que ele fez foi aplicar os ensinamentos do pensamento marxista nas análises e na reconstrução magistral que fez das lutas dos séculos 19 e 20. Primeiro, tirou o foco tradicional dos historiadores, constituído pelos donos do poder e do dinheiro e, juntamente com seus parceiros marxistas do Partido Comunista britânico, dirigiu o olhar aos “de baixo”. Abriu o leque das preocupações, incluindo a política, a economia, a cultura, as artes, as ciências, os costumes em análises abrangentes para compreender a luta de classes e suas motivações mais profundas.

Alpém disso, usou o marxismo como um método de análise para compreender não só a luta do povo e dos trabalhadores, mas para analisar a evolução do próprio pensamento marxista. Ligou-se de forma perene ao pensamento de Marx seja por usá-lo como ferramenta de investigação e análise, seja por ter coordenado a indispensável História do Marxismo (publicada no Brasil em 12 volumes), seja por mudar a compreender o pensamento de Marx. Ele foi o autor de uma famosa Introdução ao pequeno volume que contém extratos do Grudrisse (rascunho de O Capital, publicado desde a década de 1950 mas mais conhecidos desde a versão em inglês de 1973).

Na época da publicação do pequeno volume que tem a Introdução de Hobsbawm (em 1964), os Grundrisse só existiam, na íntegra, em alemão, dificultando seu conhecimento nos outros países. O pequeno volume recebeu o título de Formações Econômicas Pré Capitalistas e, desde seu aparecimento incorpora a Introdução de Hobsbawn como uma parte necessária que ajuda não apenas ao conhecimento do pensamento marxista mas, sobretudo, da avançada maneira como Marx encarava a mudança histórica.

Numa entrevista publicada em 1988 no jornal O Estado de S. Paulo, Hobsbawm deixou claro porque. “A história marxista – na verdade qualquer história boa – não é apenas uma tentativa de investigar, descrever e analisar o passado, mas analisar como o mundo muda”. Este é o “problema básico”, disse. Isto é, não basta descrever o passado, sendo preciso compreender como a vida mudou. O “problema principal da análise histórica, que até mesmo o historiador mais especializado não pode esquecer, é como explicar essa extraordinária transformação”. Esforço de compreensão que tem no marxismo uma ferramenta indispensável, baseado que está na compreensão “da relação entre a base e estrutura, ou seja, como as várias atitudes ou atividades da vida estão ligadas, num período particular” Na mesma entrevista, ele rejeitou os modismos contemporâneos: “o tipo de História Social que analisa seja lá o que for, a história do cheiro, ou da menstruação ou alguma coisa assim, não tem ligação direta, em si mesma, com os problemas principais da transformação histórica. Por outro lado, tem uma relação direta com o problema das superestruturas, exatamente como, digamos, o conceito de sexualidade se relaciona com outros aspectos da sociedade. São, frequentemente, muito inteligentes, intuitivas e perceptivas, mas não acho que sejam marxistas”.

É preciso manter a “bandeira tremulando”, disse a seu colega o historiador liberal estadunidense Simon Schama. Disse que era assim que desejava ser lembrado. E será!

Fonte: Portal Vermelho