Quando pequeno, Carlos Império Hamburger costumava ouvir do pai, Ernest: “Desligue essa caixa maldita!” – ele se referia à televisão, veículo malvisto pelos educadores e intelectuais da época. Anos mais tarde, Cao seria responsável por rechear a tal caixa com produtos aos quais nem Ernest se oporia, como a premiada série “Castelo Rá Tim Bum”, exibida por anos a fio na TV Cultura, um episódio de “Cidade dos Homens” (2004) e a série “Filhos do Carnaval” (2006).
No cinema, Cao fez “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias” – narrado sob o ponto de vista de um menino de 12 anos em meio à ditadura militar, ao afastamento dos pais e aos festejos da Copa do Mundo de 1970. Os pais do diretor, os cientistas Ernest e Amélia Hamburger, foram perseguidos e presos nessa época. “O filme funcionou como um expurgo desse trauma familiar”, conta Cao. Conquistou diversos prêmios, foi exibido em 20 países, mereceu indicação para melhor filme estrangeiro no Festival de Berlim, em 2007.

Agora é a vez de “Xingu”, projeto em que Cao esteve mergulhado nos últimos cinco anos. Produzido pela O2 Filmes, o filme narra as expedições dos irmãos Villas Bôas e a luta deles pela preservação dos índios na floresta amazônica – que culminou na criação do Parque Nacional do Xingu. Conquistou o terceiro lugar no prêmio de público do Festival de Berlim e foi selecionado para participar do Festival de Tribeca, em Nova York.

João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat em cena de “Xingu”

E chegou a hora do lançamento no Brasil. Cao gostaria mesmo é de sumir em dia de estreia. As quase três décadas de experiência e os prêmios amealhados de nada servem para abrandar seu nervosismo. Cao entra e sai da sala de exibição, espia de soslaio a reação da plateia ou fica “alucinado”, como cão de guarda na porta, para garantir que esteja sempre fechada. Quando as luzes se acendem, é hora de receber, sempre com desconfiança, os elogios dos convidados.

“Ninguém nunca diz a verdade para o diretor.” A não ser, claro, seu pai, que tem por hábito dar opiniões na lata.

Com todas as mesas ocupadas, o burburinho no restaurante é grande. “Nossa, vai dar para você gravar?”, Cao diz, olhando para o aparelhinho sobre a mesa, adivinhando o pior dos pesadelos da repórter. Para um diretor de cinema, ele diz, uma falha no áudio é mais grave do que o de uma lacuna na imagem.

Antes de estudar o cardápio, Cao anuncia que vai de macarrão. Logo muda de ideia e pede um peixe recheado com espinafre e “pinoli”, com um pouco de manteiga e sálvia, e substitui o purê de batatas, que faz parte do prato, por legumes. Peixe era o prato que mais consumia quando esteve com os índios. “Era pescado na hora e assado numa estrutura de galho. E muito beiju, feito de mandioca. Hum, um negócio.”

A garçonete o traz de volta ao sugerir como entrada uma salada de folhas verdes, parmesão e tomate-cereja. Nos copos, vinho branco.

Quando indagado sobre o que queria ser quando crescesse, o moleque sempre tinha a resposta na ponta da língua: “Pai”. Casado com a pedagoga Ana Maria Caira, eles têm dois filhos: Tom, que participou como assistente de direção em “Xingu”, e Carolina, que estuda pedagogia. Nos anos 90, época de “Castelo Rá Tim Bum”, as crias eram pequenas e Cao respirava o universo infantil 24 horas por dia. “Foi uma das fases mais felizes da minha vida”, diz, balançando o copo de vinho antes de dar o primeiro gole. Nunca teve dúvida: “Ter filhos é o grande evento da nossa existência.”

O segundo sonho de Cao era ser músico. Fez aulas de violão por vários anos e chegou a montar uma banda com o Titã Nando Reis, chamada Os Camarões. “Tentei ser músico, muito, muito, muito e de verdade. Até o momento em que percebi que não era bom e nunca seria. Desisti. Sou cineasta porque não consegui ser músico.”

Quando o projeto acalentado durante tanto tempo minguou, o rapaz se viu “meio perdidão”. Entrou em três faculdades diferentes – música, geografia e engenharia florestal – e não seguiu nenhuma. Até topar, no puro acaso, com um cartaz que oferecia um curso de cinema de animação.

Cao com atores de “O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias”

“Nossa, nunca tinha pensado nisso. Eu, como os irmãos Villas Bôas, já tinha uma preocupação com o meio ambiente.” Enquanto rega sua salada com azeite, segue apontando outras semelhança entre ele e os sertanistas. “Os três se meteram numa expedição sem saber o que queriam da vida e encontraram os índios; eu, procurando uma profissão, encontrei o cinema. Acho que todos nós, buscando um motivo para estar no mundo, passamos por isso. Nossa, me perdi, onde eu estava mesmo?”, pergunta, antes de espetar, certeiro, um dos tomates-cereja de seu prato.

Cao recebeu da família uma formação “diversa e aberta”. Os bisavós maternos, católicos praticantes, vieram da Itália, enquanto a família do pai, judia – e nem tão praticante assim – veio de Hamburgo, a segunda maior cidade da Alemanha, fugindo da guerra. Na infância, celebrava todas as festas cristãs e outras tantas judaicas.

Cao recorda-se de um domingo específico, lá pelos 18 anos, em que essa mistura ficou ainda mais evidente. No almoço, devorou macarronada e tomates recheados em volta de uma mesa em que todos falavam ao mesmo tempo na casa da avó italiana. No fim da tarde foi para a casa dos avós paternos, cheia de livros e móveis de madeira rústica, fartar-se de quitutes judaicos. À noite estava nos ensaios de bateria numa escola de samba paulistana. “Minha criação foi, literalmente, um grande samba do crioulo doido.”

Dos pais e do tio – irmão de Amélia, o cenógrafo e artista plástico Flávio Império (1935-1985) -, Cao e seus irmãos receberam grande incentivo para as artes. Prova disso é a profissão que cada um escolheu. Sônia é produtora de cinema; Vera, diretora de arte; Fernando, fotógrafo; Esther, professora de comunicações e artes; e Cao a gente já sabe.

“Castelo Rá Tim Bum”, sua criação, na TV Cultura desde os anos 1990

Os anos no Colégio Equipe corroboraram a vocação. “Era um ambiente muito efervescente, éramos adolescentes metidos a besta e a artistas, no bom sentido.” Dali saíram os artistas plásticos Rodrigo Andrade, Carlito Carvalhosa e Nuno Ramos – criadores da Casa 7, como ficou conhecido o grupo que marcou a arte brasileira nos anos 80 -, o apresentador Serginho Groisman, que estava à frente do centro cultural da escola – e todos os músicos dos Titãs.

A garçonete recolhe os pratos de salada vazios e passamos para a comida quente. Depois da primeira garfada, Cao – guiado pelo gosto do peixe – muda o rumo da conversa. “Xingu” foi, segundo ele, o trabalho mais difícil que já fez. O roteiro, elaborado com Anna Muylaert e Elena Soares, envolveu muita pesquisa. O narrador da história é Cláudio, dos irmãos Villas Bôas, aquele que sempre se mostrou avesso ao convívio em sociedade. “Ele não gostava de aparecer e não se sentia bem na cidade, por isso se enfiou no meio do mato”, Cao explica. “Me identifiquei muito com ele.” Em que ponto? “Tenho uma entrega sem limites, fico tomado pelo que faço. Foi assim com todos os meus trabalhos.”

Depois do roteiro, é o momento da “explosão”. “Precisa acontecer um ‘big-bang’ e o universo criado passar a fazer sentido e você acreditar nele. Esse é o grande mistério de fazer um filme. Todos os elementos têm que combinar de uma maneira harmoniosa e ao mesmo tempo explosiva.”

No reflexo da montagem de uma foto-instalação de Willy Biondani

Não há fórmulas para isso. O único segredo que tem dado certo é repetir parcerias, seja para escrever o roteiro, para fazer a trilha sonora ou a fotografia. “É uma das coisas mais sagradas de minha profissão. É muito difícil a química entre as pessoas acontecer; quando acontece, valorizo muito. Com os atores dá pra variar mais.”

A escolha dos atores, “fase mais prazerosa no processo”, é o início da materialização do roteiro. Para viver os irmãos Villas Bôas, Cao convocou João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat. Os dois últimos já tinham trabalhado com ele. “O fato de repetir eu quase chamo de coincidência. O mais importante na escolha é que o ator tenha a ver com o personagem e que forme uma química entre eles.”

O início das pesquisas para o filme coincidiu com a descoberta de um câncer em sua mãe, que morreu há um ano.

“Foi simbólico para entender como a vida acontece. Enquanto eu dava vida ao universo do filme, minha mãe estava morrendo. Quando fui para o Xingu, achei que nunca mais ia vê-la.” Cao mexe na comida, espalha os legumes no prato. “Foi muito duro. Tinha um esquema para eu voltar a qualquer momento, numa emergência e minha mãe…” – interrompe antes de completar a frase e depois de uma pausa prossegue. “Minha mãe morreu, eu tinha acabado de filmar.”

Os índios são incríveis, muito mais civilizados que nós. Têm um rigor ético, moral e uma organização social muito superior à nossa

Nesse momento o diretor de cinema Heitor Dhalia – que lança “12 Horas”, feito nos Estados Unidos, e almoça numa mesa próxima – levanta-se para saudar o colega. “Você está me devendo um almoço”, cobra. “Só falta marcar a data”, Cao responde. Assim que Dhalia se afasta, “Xingu” volta à baila.

Cao e sua equipe abandonaram o conforto da cidade para enfrentar desafios de toda sorte, em locações de difícil acesso no Tocantins e no Parque Nacional do Xingu (Mato Grosso). No primeiro dia de filmagens, a locação escolhida foi destruída por uma queimada, um dos aviões usados por eles caiu, muitas das quase 150 pessoas envolvidas no trabalho tombaram doentes. Isso, sem falar nas picadas de mosquitos e no calor de 40 graus. E como esquecer a invasão de um set por uma onça e outro por jacarés? A responsável pela maquiagem contou, ainda, no blog do filme, do medo “de cruzar com uma sucuri nadando no rio”.

Desse medo Cao não sofria, pois tomava banho de rio e dormia em rede. “É muito gostoso. Você tem que deitar atravessado, para não machucar a coluna.” Quando fala dos índios e da paisagem do lugar, se esquece de que “filmagem é um moedor de carne”, durante a qual tem que responder “a duas mil perguntas por dia” e dormir quase nada.

Cao tem dúvidas quanto ao futuro do cinema: “Não sei se vai durar da maneira como existe hoje”

Cao é só elogios aos índios que atuaram no filme. O único cuidado era com as cenas com muita gente – Cao conta rindo -, em que tinha que repetir a mesma tomada inúmeras vezes. Quando cansavam, os índios simplesmente abandonavam a cena e deixavam a equipe a ver mosquitos.

“Sabe, os índios são incríveis, muito mais civilizados que nós”, observa, deixando o garfo no prato e liberando as mãos italianas para enfatizar o relato. “Têm um rigor ético, moral e uma organização social muito superior à nossa.” Um exemplo?

Um dia duas pessoas da equipe técnica, já exaustas, discutiram por alguma bobagem. Os índios ficaram ofendidos, pois não brigam na frente de estranhos. “É muita prepotência achar que evoluímos mais que eles. Enquanto descobrimos a tecnologia, para a criação de computadores e máquinas [e aponta para a fotógrafa que dispara flashes em sua direção], eles evoluíram em outros campos. Sabem viver com pouca tralha, são mais felizes e menos ansiosos. É só observar a relação deles com o planeta, com o lugar onde moram. Têm sabedorias, é um tesouro mais valioso do que qualquer coisa que a gente possa oferecer para o mundo.”

Precisa acontecer um ‘big-bang’, o universo criado fazer sentido, e você acreditar nele. Esse é o grande mistério de fazer um filme$

A garçonete ameaça levar seu prato, e Cao só então se lembra da comida, que estava abandonada, e segura firme o garfo. A moça entende a mensagem e se afasta.

Despedir-se dos índios foi “emocionante”. Até hoje, o ator Caio Blat, que faz Leonardo, o Villas Bôas caçula, e Tom, o filho de Cao, mantêm contato com os índios pelo Facebook. Sim, os jovens das tribos são loucos por internet e celular.

“Xingu” não esgotou o interesse do cineasta pelo assunto, tanto que seu próximo projeto trata de grupos de índios que nunca tiveram contato com nossa civilização. “Fogem de nós feito diabo foge da cruz.”

Já o garçom não sai de perto e agora quer saber se queremos sobremesa. “Vocês já querem ir embora?”, Cao pergunta, rindo, e logo pede uma fatia de abacaxi. O restaurante, agora, tem apenas nossa mesa ocupada, e os funcionários começam a arrumar o salão.

Lembranças dos filhos e do “Castelo Ra Tim Bum”: “Foi uma das fases mais felizes da minha vida”

Cao circula entre os veículos, mas nunca se aventurou no teatro. “Não tem câmera, como faz?” E documentário, faz parte de seus projetos? “Tenho muito medo de fazer documentário. Porque não tem roteiro para eu me apoiar.” Conta que abandonou um documentário que tinha até título, “Um Terreno em Berlim”, sobre terras que foram confiscadas da família do pai pelos nazistas, depois passaram para os comunistas e só foram devolvidas após a queda do muro. “Eram 20 descendentes espalhados pelo mundo que não se conheciam. Era uma forma de reunir essa gente e entender a história. Mas não tive coragem de fazer. É a prova de que a gente só se arrepende do que não faz.”

Embora seus últimos trabalhos tenham sido para o público adulto, ele está envolvido em dois projetos para a televisão, voltados para crianças e adolescentes. Produz uma série para a TV Globo e o Canal Futura, sobre o período do império no Brasil, da vinda da família real até a Proclamação da República. “É mais de entretenimento que educativo”, avisa, enquanto brinca com a rolha do vinho entre os dedos.

A outra série que prepara é para a TV Cultura e tem os adolescentes como foco. Cao valeu-se da própria experiência para criar esse universo, que abordará temas como drogas, sexualidade e preconceito. “Tudo com muita delicadeza.” Vejam-se as cenas de sexo no filme “Xingu”, que são apenas sugeridas, lampejos. “Foi uma opção estética, não precisava mostrar.”

Na hora do café, Cao conta que, em 1995, fez um curta-metragem – “um dos trabalhos que mais me orgulho de ter feito” – para uma produtora do Reino Unido, chamado “O Menino, a Favela e as Tampas de Panela”, o que o levou a morar oito meses no país. Trata-se de um episódio brasileiro da série “Open a Door”, que pode ser visto no YouTube.

“Na época, a televisão independente no Brasil era rara, hoje está num momento muito bom. O cinema também tem uma tendência de coproduções, não só com a Europa e Estados Unidos, mas com a América Latina. Um movimento bem globalizado.”

Na segunda rodada de café, Cao diz que tem dúvidas quanto ao futuro do cinema. “Não sei se da maneira como existe hoje, em salas grandes, ainda vai durar. A gente vive um momento de transformação, com muitos filmes curtos na internet, até séries. Hoje, as pessoas gravam no seu iPhone, editam no seu iNão-sei-o-quê, jogam na rede. É o caminho natural. Na minha época, era super 8. Tenho curiosidade em saber aonde isso vai dar.”

Estamos velhos? “Não acho que estamos velhos”, responde, rindo. “Acho que a gente viveu bastante.” Há alguns anos, Cao mostrou para os filhos uma antiga máquina de escrever. Carolina encarou aquilo, virou o treco de ponta-cabeça e quis saber: “Pai, onde fica a impressora?”

Fora do restaurante o sol está forte, nem parece que o verão já se foi. Enquanto aguarda seu carro, Cao quer notícias sobre pessoas que a repórter também conhece, amigos com quem jogava bola anos atrás. Conto que um deles não pisa mais em campo desde que operou o joelho e outro não consegue mais correr, tamanha a barriga. Antes de entrar em seu carro, Cao anuncia. “Eu era um excelente goleiro. Pode checar!” O verbo no passado sugere que ele abandonou, além da música da juventude, as chuteiras. Sorte do cinema.

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Fonte: Valor