Tal caravana, marco da luta pelo direito à memória e a verdade no país brasileiro percorreu por mais de dez dias a imensa região, coletando informações, entrevistando moradores e debatendo com os camponeses o sentido daquela epopéia tão ferozmente atingida pelos lobos febrentos da repressão política. E tudo isso sob o cerco das ameaças e intidações dos donos do poder de então.

Dentre os vários entrevistados, todos muito corajosos e já ligados às ações da Igreja progressista, que à epoca albergara parcela significativa dos opositores da ditadura militar, estava a figura do ex-rastejador Pedro do Jipe que, pela primeira vez revelou aos caravaneiros e, por conseguinte, à memória nacional não apenas a estratégia dos militares e guerrilheiros mas, também, os métodos que ambos utilizavam em tão encarniçada luta.

Pedro do Jipe morava desde 1964 na beira dos Caianos, numa época em que São Geraldo do Araguaia não passava de uma currutela debruçada sobre o largo rio dos Karajás. Sua narrativa, inédita, nos ajuda à esclarecer os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975).

Toda a entrevista fora coordenada pelo “advogado-do-mato” Paulo Fonteles, principal responsável pelo contato e que contou com o acompanhamento dos viajantes: pais, mães, irmãos, esposas e amigos daqueles que se encontram até os nossos dias como desaparecidos políticos. 

O Mateiro inicialmente ilustra como adentrou no enfrentamento à guerrilha e afirmou que ” ‘tava’ em casa numa quarta-feira e eles (os militares) ‘chegou’ me procurando, um sargento e uns soldados, recrutas, e ‘perguntou’ por um povo que morava na mata, os ‘papamaqui’ ( jargão militar emprestado do exército estadunidense e que quer dizer ‘povo do local’), aí eu disse que não conhecia (…) passaram umas duas horas investigando (…) falaram para mim não fugir (…) se eu fugisse era pior (…) se eu não fosse eu iria preso, eles tinham a informação que eu conhecia a mata toda na região que eu morava (…) aí eles foram lá e me pegaram, deram pro comando (…) o comando era em Xambioá, no campo de aviação (…) eu ‘tava’ nervoso demais e com três dias nós pegamos o ‘sapão’ (helicóptero militar) e me deram um pau e um revólver (…) deram farda em sinal de guerra”.

Sobre o papel dos rastejadores na luta, ensinou que “é porque eu é que guiava eles na mata (o Exército), era preciso conhecer as matas, conhecer onde eles moravam (os guerrilheiros), mas eu não conhecia, só sabia andar (…) o rastro deles eu não conhecia, agora, eles conheciam o rastro, na hora em que batia num rastro diferente, eles conheciam (…) o calçado que esse povo ‘tava’ usando era com o calcanhar para a frente (…) para esconder e não encontrar eles na mata, pra rastejar ao contrário (…) o que eu fazia era só a hora em que eu enxergava eles, eu dava com o dedo para trás, pro sargento, eu não tinha ordem de atirar em ninguém. Eu dava o sinal para o sargento e caía no chão (…) eles faziam fogo naquele pessoal dentro das matas, nas montanhas (Serra das Andorinhas)”.

Quanto ao “modus-operandi” das tropas governamentais ensejava que “nós ‘entrava’ na mata com muito silêncio, não ‘fumava’ nem ‘conversava’, nem dizia nada com o outro, era no sinal toda a vida (…) entrava às cinco horas da manhã, cedinho, sem falar com ninguém (…) entrava de pé (…) de onde o helicóptero deixava, nós ‘entrava’ de pé pra frente (…) o helicóptero ia e descia naquelas capoeiras, descia a uma certa altura, aí descia o correntão pra gente pular (…) daquelas capoeiras a gente seguia para a mata (…) a alimentação que nós ‘levava’ era pão, toucinho, uma lata de manteiga (…) o que a gente levava para beber não sei se era água, não sei se era remédio num vidrinho, coberto, bem coberto (…) a gente bebia, criava coragem (…) era uma água meio azulada (…) a gente passava um mês com aquele cantil (…) na hora que terminava de comer, não podia tomar água, tomava aquele líquido.”

Para dar completude afirmara que “havia o ‘paquera’ (pequeno avião) que voava por cima (…) por cima do ‘sapão’ (…) agora quando ‘tava’ no perigo fazendo ‘fogo’ (…) vinha os dois (…) o ‘sapão’ de guerra, que era encarnado com metralhadoras de pé e metralhadoras de mão, tudo com a boca para baixo (…) quando nós ‘tava’ fazendo ‘fogo’, eles ‘tavam’ fazendo ‘fogo’ e o ‘paquera’ mais por cima pegando o rádio (…) se tinha morrido alguém, se ‘tava’ tudo sadio e se ‘tava’ muito perigoso”.

Perguntado sobre a composição do pelotão que adentravam as matas esclareceu que “era um sargento, um ‘mateiro’ e mais quatro soldados (…) e o ‘mateiro’ ia guiando e qualquer coisa assinalava para o sargento (…) a orientação que tinha na hora que assinalasse era de cair no chão (…) meu companheiro, meu parceiro no primeiro dia que nós ‘entrou’, meu parceiro morreu com esse ‘povo da mata’, atiraram nele”.

A evolução do depoimento revelou combates “já tava completando um mês na mata sem ver ninguém, só andando e dormindo (…) aí num dia cedo nós conseguimos encontrar a trilha deles (…) aí o sargento, eu dei o sinal pro sargento, aí ele veio, olhou e saiu, agachado, aí chegando perto de uma ‘grota’ (…) nós deitamos na ‘grota’ (…) todo mundo deitou e ficou em ponto de fazer ‘fogo’ (…) o sargento levantou, levantou e foi para a beira da água (…) ele atravessou o pau mais perto (…) meteu a mão na água e ficou (…) na hora em que ele atravessou o pau mais perto o cara atirou no peito dele (…) do jeito em que ele estava, encostado no pau, ficou (…) não caiu e nem pendeu (…) nos ‘fiquemos’ lá por quinze dias para conseguir tirar ele de lá (…) nós ‘fiquemos’ acoitados, ‘amoitados’ na mata, sem fazer movimento, nem pequeno movimento, nem de dia, nem de noite (…) depois que ‘tava’ com quinze dias conseguimos, saiu uma turma por detrás de uma ‘toqueira’, uns cinco (…) os soldados fizeram ‘fogo’, fizeram ‘fogo’ nesses cinco (…) o ‘sapão’ e o ‘paquera’ chegaram perguntando como é que ‘tava’ alí com o rádio do soldado (…) ‘paquera’ pro comando, como é que tá? (…) nós tocamos ‘fogo’ contra os ‘papamaqui’, que era esse ‘povo da mata’ (…) não queriam que a gente chamasse ‘fulano’, ‘cicrano’ (…) ás vezes a gente sabia do nome de alguns, mas não podia chamar (…) na hora que chamava, eles (os militares) ‘tocava’ o pé na bunda da gente, mandado pelo sargento, que a gente ‘tava’ acudindo pela parte deles (os guerrilheiros), ninguém podia falar nada sobre o pessoal da mata, tinha que fazer o que eles mandassem, era obrigado, se não fizesse morria, ia pelo mesmo caminho (…) o exército dizia que eles eram estrangeiros (…).”

Ainda sobre os cinco combatentes mortos em combate, explicou “esses cinco foram mortos depois que mataram o sargento (…) quando nós conseguimos voltar para matar mais, ordem do capitão (…) para pegar o resto dos ‘papamaqui’ que tinha corrido (…) veio o Sargento Francisco dessa vez (…) nós chegamos na beira de uma lagoa às quatro da tarde e nós deitamos na folha (…) um soldado pegou uma camisa, botou bem distante de nós (…) aquela camisa branca bem esticadinha (…) num toco de pau (…) quando foi às cinco da tarde eles atiraram na camisa (…) quando atiraram na camisa aí nós vimos (…) uns dez à doze, tudo com arma na mão (…) aí eles se afastaram , deitaram no chão, aí o sargento foi e mandou a ‘soldadão’ (?) fazer ‘fogo’ (…) da cintura para baixo não tinha nada inteiro, nem braço, nem mão (…) quatro já estavam mortos e só um ficou com um monte de documentos no bolso (…) o sargento foi pegar o documento dele (…) aí esse ‘papamaqui’ cuspiu na cara do sargento (…) ele ‘tava’ todo quebrado (…) o sargento interrogou ele (…) e ele (o guerrilheiro) falou o seguinte ‘que eles (os militares) eram uns cachorros e uns covardes, que ele morria mas não se entregava’ (…) o sargento tornou a baixar para pegar os documentos e ele tornou a cuspir na cara do sargento (…) aí o sargento deu um passo atrás e atirou na testa dele (…) nós ficamos mais quinze dias (…) veio uma outra equipe do Batalhão 25, com o Sargento Bandeira para pegar os ‘papamaqui’ (…).”

Sobre a infâme prática do corte de cabeças, asseverou que “cortavam as cabeças para levar ao comando (…) quem cortava a cabeça era o sargento (…) pegavam uma faca (…) daquela de dois ganchos com lâminas nas costas e na frente (…) eu ví o Sargento Francisco cortar (…) o Sargento Bandeira cortou a cabeça do ‘Osvaldão’ (…) ele pegou a faca e disse ‘é negão, tú agora não vai perseguir brasileiro nenhum’ (…) pegou a faca, pegou a cabeça dele, botou um pau debaixo e foi cortando, cortando (…) saía sangue demais (…) eu não aguentei e passei para trás, quando eu passei para trás o Sargento Bandeira me empurrou para frente e disse ‘tá com pena dele?’ (…) o Sargento Bandeira falou ‘de hoje em diante se você chegar com o FAL (Fuzil Automático Leve) cheio de bala na repartição você vai pelo mesmo caminho que eles estão seguindo’ (…) cortaram do ‘Joaquinzão’ (o camponês Joaquim de Souza Moura), cortaram do doutor Paulo (Rodrigues) (…) eu ví esses três, ‘teve’ outros que eles cortaram mas esses eu não ví, eu não conto porque eu não ví, só conto o que eu ví”.

Sabemos, através de um ex-militar que atuou no contencioso que muitas das cabeças cortadas eram acondicionadas em caixas de isopor cheias de gelo e enviadas de avião até Belém do Pará, para a identificação que aconteciam na 8ª Região Militar.

Pedro do Jipe em seu relato disse ter visto guerrilheiros aprisionados “eles pegaram dez (…) pegaram duas mulheres (…) a ‘japonesa’ (Sueli Yumiko) (…) a maioria não se entregava (…) a ‘Dina’ (Dinalva Oliveira Teixeira) foi ‘pegada’ no Rio Araguaia (…) diz o povo que o exército pegou ela, ela já ‘tava’ grávida (…) o Daniel (Callado) foi preso do outro lado do Goiás, ele chegou da mata correndo (…) ele chegou numa casa na beira do rio, pegou um relógio que tinha muito bom e deu pro dono da casa para ir, sair do outro lado do Rio Araguaia, de nome Itaipavas (…) aí o moço da casa disse que não ia deixar ele mas que ele pegasse a canoa e atravessasse para o outro lado (…) aí o moço da casa correu no comando em Vanderlândia (…) e avisou no comando, aí já ‘veio’ os soldados, os sargentos (…) por fora beirando o rio, já ‘veio’ por água e o ‘sapão’ (…) quando ele bateu do outro lado já foi sair em cima de uma equipe (…) trouxeram para Itaipavas para a nossa equipe, trouxeram ele batendo, chamavam ele de bandido, investigavam ele (…) quando ele dizia que era brasileiro socavam o pé na bunda dele e ele caía (…) judiaram com ele (…) pegaram ele e trouxeram para o comando do ‘Pontão’ (base militar da ‘Marcilinense’, atual município de Piçarra, no Pará), do comando do ‘Pontão’ aí é que foi outra investigação para ele, pra descobrir aonde os outros estavam, o que é que eles usavam na mata, qual era o medicamento que eles usavam para não enfraquecer, para não morrer de fome, qual era a sigla deles (…) ele só dizia ‘eu não sei’ (…) eles batiam nele demais (…) pegaram o Daniel e levaram para Xambioá (…) ele descobriu que tinha um oco de castanheira cheia de medicamento, cheia de armamento, de bala, dentro da mata (…) depois eu não sei o que aconteceu com o Daniel, eles ficaram com ele (…) nesse tempo em que pegaram o Daniel, eu fui despachado (…) isso já foi no fim da guerra , em 1974”.

Relatou, ainda, sobre a prisão de uma guerrilheira que “veio por dentro da mata (…) ela queria que eles não matassem ela e nem batessem, aí o Sargento Bandeira foi e disse ‘pega a mulher’ e pegaram (…) botaram ela dentro de um saco e dentro do saco botaram ela dentro de uma caixa, de uma jaula (…) trouxeram para Xambioá (…) não sei se ela foi levada para Araguaína(To), para Brasília(DF), se foi para Goiânia(Go) eu não sei (…) ela estava sozinha”.

Perguntado se as forças da repressão ainda faziam contato, informou que “eles têm contato (…) eles têm contato dos livros, porque eles têm os livrinhos (…) eu sei que a mamãe recebe todo o fim de mês hum mil e quinhentos contos (…) ela vai buscar na Prefeitura de Araguaína”.

Recentemente tivemos à informação, através de um ex-rastejador araguaiano, de que até 2003 o Exército fazia o controle de seus antigos colaboradores. Tal informante indica que tais atos eram feitos por oficiais que visitavam anualmente tais colaboradores sempre com a preocupação ‘se alguém estava investigando os mortos’. O mesmo, segundo suas próprias palavras ‘dá graças à deus pelo Lula ter ganho as eleições, assim eles pararam’.

No que se refere à prática de tortura, Pedro do Jipe denunciou que “batia e prendia (…) que quem ‘tava’ conversando muito, aí eles ‘pegava’, batia e prendia mesmo (…) teve um rapaz lá, rico, filho de fazendeiro, ele falou mentira, aí o Exército pegou ele e levou ele para a mata, para mostrar se ele sabia das sedes dos ‘papamaqui’, onde estavam os cento e cincoenta terroristas lá nessa mata (…) bateram muito (…) passou um mês e quinze dias com ele e não descobriram nem sinal (…) botaram ele no buraco (…) o buraco era muito fundo e ‘joga’ o sujeito dentro, aí pega aquelas pedras de gelo (…) aquele gelo fica pingando em cima da cabeça do cara (…) ninguém enxerga o chão (…) botam o sujeito lá dentro por uma corda (…) aí ele fica vinte e quatro horas (…) pingando aquela água de sal (…) sal e gelo (…) quando tiraram ele de lá ‘tava’ quase morto (…) ele passou três meses no hospital”.

Inquirido se conhecia os guerrilheiros, respondeu que “eles estavam fazendo a abertura da mata (…) plantando capim, plantando mamona, plantando abacaxí, plantando cacau, plantando laranja, tudo isso hoje tá lá na sede deles nos Caianos, o senhor pode chegar lá e ver (…) muita casa boa, curral bom (…) eu conhecia o doutor Paulo (Rodrigues), a ‘Dina’ (…) eles eram boas pessoas (…) você não passava necessidade com eles.”

Ademais revelou que “eu fui ser mateiro porque era obrigado (…) se eu não fosse era até capaz de me matarem (…) fui obrigado, fui na marra (…) eles diziam que o ‘povo da mata’ queriam tomar conta do Brasil, eu nunca acreditei nessa história (…)”.

Dez dias depois que os caravaneiros se retiraram da região, Pedro do Jipe amanheceu morto no entroncamento de São Domingos do Araguaia (Pa), na Transamazônica. Segundo outros ex-mateiros, o então Major Sebastião Curió soube do depoimento e teria ele mesmo dado a ordem para assassinar o rastejador.

Pedro do Jipe tinha 26 anos e não deixou filhos.