Por conseguinte, avaliar a Revolução Russa de 1917 sem atender ao papel preponderante de Lênin seria um exercício impossível, dada a relação íntima entre o homem revolucionário russo e o processo que galgou milhões de homens a um novo estádio humano, social, político e económico da vida em sociedade. No fundo, no ano em que se comemoram 140 anos do nascimento de Lênin e no contexto de uma forte crise estrutural do sistema capitalista importa atender ao modo como, dialecticamente, a acção do Partido Bolchevique liderado por Lênin foi decisiva e imprescindível para o processo de construção de uma sociedade socialista. Em contextos futuros de possibilidade de construção do socialismo, as lições de Lênin e do Partido Bolchevique afiguram-se como dados inescapáveis a uma qualquer análise marxista para tal cenário.

Face à derrota/queda da URSS, a alternativa do socialismo e do comunismo sofreu um recuo óbvio enquanto projecto alternativo de sociedade junto das massas. Neste capítulo, o imperialismo tem aproveitado em seu proveito este facto que, diga-se, contribuiu fortemente para esse próprio desfecho. A campanha ideológica anticomunista e anti-soviética aí estão com toda a força e pujança, nem que para isso se tenha de manipular dados, menosprezar factos, omitir feitos históricos da URSS. Sem uma compreensão profunda das causas da derrota do socialismo no Leste Europeu, nomeadamente na União Soviética, dificilmente poderemos passar à ofensiva ideológica contra o capital. Todos nós já fomos alvo, quase sempre inconscientemente, das armadilhas e mentiras da produção ideológica da burguesia sobre o tema. Ora, se os próprios comunistas se encontram por vezes desarmados e desatentos sobre a verdadeira natureza do socialismo na União Soviética, que pensar das massas populares sujeitas ao bombardeamento propagandístico do grande capital 24 horas por dia? Nesse sentido, reveste-se de particular importância a reflexão colectiva sobre este tema. A tomada de consciência do que foi de facto o socialismo na URSS representa, por isso, um objectivo primordial no nosso trabalho político e ideológico.

Ao mesmo tempo, persistindo as condições estruturais do capitalismo que possam detonar novas movimentações gigantescas de massas revoltadas com a barbárie do sistema sobre os trabalhadores e sobre os povos, a perspectiva do socialismo surge como uma necessidade e uma possibilidade a ser construída pelas próprias massas. Como uma necessidade, na medida em que face aos efeitos devastadores da exploração capitalista, da condenação de milhões e milhões de seres humanos à fome, à pobreza, ao desemprego, à vulnerabilidade extrema da sua condição de vida, só o socialismo pode resolver as necessidades mais básicas e os direitos mais candentes e civilizacionalmente imperativos dos trabalhadores e de outras classes oprimidas. Como uma possibilidade, na medida em que a construção do socialismo depende, entre outros factores, da unidade das massas populares, da firmeza ideológica de uma organização política de vanguarda, da capacidade de adequação do programa comunista ao evoluir do processo político. Nesse sentido, o factor subjectivo alinhavado nestas suas traves-mestras, assume-se, num processo de avançada mudança social e política, como um domínio determinante, mais ainda quando as condicionantes objectivas – crise económica, agravamento severo das condições de vida das massas, desestruturação do aparelho de Estado – já se encontram num grau de maturação muito avançado. Assim, o factor subjectivo surge como o elo seguinte de uma complexa cadeia causal de factores no processo revolucionário. Não que este último dependa exclusivamente do factor subjectivo, mas que, estando os vários dados objectivos lançados, acaba por adquirir uma importância capital para a construção do socialismo. Mais uma vez se reafirma, neste capítulo, o exemplo e as lições de Lênin e do Partido Bolchevique representam um legado imenso para situações revolucionárias futuras. Por uma questão de economia de espaço centraremos a nossa análise ao período 1917-1924.

A construção do socialismo no período 1917-1924

Nesta secção, procuramos introduzir dados factuais de forma a dar solidez ao exercício interpretativo que temos vindo a efectuar. Ao mesmo tempo, decidimos dividir este período em três fases: a) primeiros oito meses, portanto até à deflagração da Guerra Civil; b) 1918-1920, que cobre o período do chamado “comunismo de guerra”; c) 1921-1924, período de introdução da NEP.

• Os primeiros oito meses
Um texto essencial desta fase é “As Tarefas Imediatas do Poder Soviético” publicado em 28 de Abril de 1918 no Pravda. Nessa pequena brochura Lênin dá conta dos empreendimentos a curto prazo realizados e a realizar pela Rússia Socialista. Destaquemos oito deles.

1) Tomando como tese de que era impreterível “elevar o nível económico do país, sequer se pode falar de uma elevação minimamente séria da capacidade defensiva” (Lênin, 1978f, p.560). No fundo, sem o desenvolvimento das forças produtivas e sem um mínimo de estruturação do tecido económico a própria segurança e sobrevivência do Estado socialista seria uma miragem. Esta tese será recuperada mais tarde por Stáline aquando da implementação da industrialização pesada do país e do I Plano Quinquenal como instrumentos económicos vitais e insubstituíveis para a defesa da União Soviética da invasão nazi-fascista. O objectivo último do Estado operário era executar “o trabalho positivo ou construtivo de organização de uma rede extraordinariamente complexa e delicada de novas relações de organização que abarquem a produção e a distribuição planificada dos produtos necessários à existência de dezenas de milhões de pessoas” (idem). O revigoramento do aparelho produtivo destruído com a Primeira Guerra Mundial era uma empreitada não apenas para defesa do imperialismo – que não foi nunca considerado um factor despiciendo pelo poder soviético – mas também para a edificação da sociedade socialista. Voltaremos a este ponto mais à frente.

2) Em decorrência do ponto anterior, cabia agora ao Partido Bolchevique e ao Estado Soviético passar a uma nova fase. Depois de terem convencido a maioria do povo da “justeza do seu programa e da sua táctica” e de conquistarem o poder político, tratava-se agora de, nas palavras de Lênin, “organizar a administração da Rússia” (idem, p.562). Para o grande revolucionário russo “esta tarefa [era] a mais difícil, pois trata[va]-se de organizar de um modo novo as bases mais profundas, as económicas, da vida de dezenas e dezenas de milhões de pessoas” (idem).

3) Operacionalizando as medidas imediatas para levar a cabo a defesa do Estado socialista e a construção da sociedade nova, Lênin adverte para os aventureirismos de querer criar o socialismo de uma hora para a outra. “Na ordem do dia coloca-se o restabelecimento das forças produtivas, arruinadas pela guerra e pela gestão da burguesia; a cura das feridas provocadas pela guerra, pela derrota na guerra, pela especulação e pelas tentativas da burguesia para restabelecer o derrubado poder dos exploradores; o ascenso económico do país; a protecção firme de uma ordem elementar” (idem, p.563) [itálicos nossos].

4) Se a burguesia tinha sido desalojada do poder de Estado ela não tinha desaparecido enquanto classe social. Nem os seus amplos recursos económicos, mas sobretudo, políticos, ideológicos e militares. “A burguesia foi vencida no nosso país, mas ainda não foi arrancada pela raiz, não foi aniquilada nem sequer totalmente quebrada” (idem, p.564). Colocava-se, assim, a necessidade de passar a uma nova fase da luta de classes: “a tarefa muito mais complexa e difícil de criar condições nas quais não possa nem existir nem surgir de novo a burguesia” (idem). Esta afirmação de Lênin ecoa terrivelmente nos ouvidos dos comunistas de hoje face à derrota/queda da URSS. A superação das relações sociais e políticas que sustentam em todas as suas múltiplas dimensões (na produção, no Estado, no Partido, nas massas, no controlo da gestão das empresas soviéticas, etc.) a burguesia ou agentes seus que décadas mais tarde restauraram o capitalismo cauciona a tese de Lênin. Sem a eliminação – que hoje se sabe mais difícil, complexa e profunda do que inicialmente se pensou – das condições de produção de elementos de tipo burguês, o perigo de reversão do socialismo espreita em cada esquina da História. Referindo-se aos especialistas burgueses e aos quadros técnicos especializados (na sua maioria anticomunistas) que o poder soviético empregou no restabelecimento da produção económica, Lênin tomou a posição justa. Reconhecendo que faltavam, em 1918, qualificações e conhecimentos especializados e avançados na maioria do operariado industrial russo, a utilização desses especialistas burgueses era uma inevitabilidade. Sem a reconstrução técnica e económica do país a guerra civil nunca teria sido vencida contra os Brancos. Contudo, recordemos sempre as palavras de Lênin sobre os cuidados a ter na ligação com os gestores e técnicos burgueses: “os especialistas, em virtude de todas as condições de vida social que fez deles especialistas, são inevitavelmente burgueses na sua massa” (idem, p.566). A questão colocada por Lênin não é somente relacionada com a posição política dessas categorias sociais. Enquadrados politicamente nas fábricas por uma maioria ampla de operários partidários do socialismo, dificilmente esses quadros burgueses colocariam problemas ao poder soviético. Os seus maiores estragos passaram por sabotagens e explosões de fábricas e maquinaria industrial. Esse tipo de acções é terrível e desgasta, mas não destrói o poder político dos sovietes. O aviso de Lênin refere-se particularmente para o seu papel no processo de produção e na gestão da vida económica. Fazendo uma ponte para os dias de hoje, não será por acaso que boa parte dos gestores de empresas soviéticas dos anos 70 e 80 se tornaram capitalistas e proprietários, ou então administradores-executivos, dessas mesmas empresas. A germinação larvar e subterrânea desses elementos foi decisiva para numa determinada fase de desenvolvimento da URSS se defenderem e aprofundarem princípios de mercado e a autonomia financeira e, mais relevante do que isso, administrativa das unidades produtivas locais em relação ao sistema de planificação central.

5) A importância do registo e do sistema de controlo da produção à escala nacional russa. Em poucas palavras,

“o Estado socialista pode surgir unicamente como uma rede de comunas de produção e consumo, que registem conscienciosamente a sua produção e consumo, economizem o trabalho, elevem constantemente a sua produtividade e com isso alcancem a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho até sete, seis horas e mesmo menos. Sem organizar um registo e um controlo nacionais, rigorosíssimos e universais sobre os cereais e a obtenção dos cereais (e depois também de todos os outros produtos necessários), não é possível sair daqui” (idem, p.571) [itálicos nossos].

Portanto, sem a consolidação de um sistema nacional de planificação global da economia, a possibilidade de construir uma sociedade socialista assente no controlo da produção pelos operários seria pouco mais do que uma impossibilidade. Ao mesmo tempo, só essa centralização e alocação das informações relativas ao volume de produção e trocas económicas dariam ao Estado soviético o controlo necessário da vida económica para a defesa da pátria socialista. Para rematar este ponto ressalte-se a menção dos cereais por Lênin. Como veremos ao longo do estudo da NEP toda a problemática da construção da economia socialista nos campos andará em torno da produção de excedentes de cereais, da sua requisição aos camponeses e seu transporte para as cidades. Evidentemente, os cereais correspondem ao lado facial e mais visível da luta de classes que se desenrolava mais profundamente, bem como a face mais visível da nova organização económica em vista.

6) A “criação de um sistema social superior ao do capitalismo, a saber: a elevação da produtividade do trabalho” (idem, p.573). Em termos puros, a defesa da aplicação do taylorismo nas fábricas soviéticas parece um recuo pois implicaria a adopção de um sistema de organização do trabalho assente na desqualificação e na exploração da força de trabalho operária. Contudo, a socialização dos meios de produção e o controlo operário de todo o tecido produtivo por todo o território russo não estavam na ordem do dia, pelo que a elevação da produtividade do trabalho era essencial para o crescimento económico e para o desenvolvimento das forças produtivas, aspecto sem o qual nenhum desenvolvimento industrial posterior seria possível.

7) Contudo, o incremento da produtividade do trabalho industrial num país devastado pela guerra exigia o ascenso cultural e educativo da população. Nesse sentido, a criação de uma imprensa que “não distraia e não mistifique as massas com vacuidades políticas picantes, mas que submeta ao juízo das massas as questões económicas quotidianas e as ajude a estudá-las seriamente” (idem, p.575), em simultâneo com o uso das comunas modelo como “educadores, professores e estímulos” para as massas e as unidades produtivas mais atrasadas, eram dois elementos importantíssimos para a aprendizagem técnica e política do processo produtivo pelas massas.

8) Consolidar a ditadura do proletariado. Isto é, por um lado, reforçar o poder político dos sovietes operários e do Estado socialista. Por outro lado, porque “é impossível vencer e desarreigar o capitalismo sem esmagar de maneira implacável a resistência dos exploradores” (idem, p.578), exigia-se a luta política e prática contra as anteriores classes dominantes e seus agentes. No fundo, o conceito de ditadura do proletariado coloca em cima da mesa duas vertentes. Respectivamente, uma geral e outra instrumental. A primeira refere-se à noção de poder político controlado pelas classes populares e pelo seu Partido de vanguarda. Esta é uma noção que vem de Marx e Engels e atravessa todas as experiências de poder operário e de construção de uma sociedade socialista. A segunda vertente refere-se ao contexto russo onde o poder da burguesia só poderia ser aniquilado por intermédio do uso da força, como meio para quebrar a força política, económica e militar da burguesia. Apesar de esta ser uma vertente variável tanto na História das revoluções operárias e populares, como na sua intensidade, muito dificilmente ela não deixará de aparecer em futuros contextos de construção do socialismo. Como a História tem mostrado, a burguesia não larga o seu poder pacificamente e sem recorrer a todo o tipo de actos violentos. Importante é registar que o principal conceito da ditadura do proletariado é a noção de poder operário e popular. A violência é, na esmagadora maioria dos casos, o instrumento de resistência e de resposta da classe trabalhadora contra a burguesia, não devendo ser confundida como a substância de um Estado socialista: o poder operário e do seu Partido de vanguarda.

• 1918-1921: “Comunismo de guerra” e a guerra civil
A construção do socialismo não é nunca um modelo definido a priori, mas tem sempre em conta a conjuntura histórica em que ocorre. No caso da Rússia soviética, relembremos que esta foi-se construindo, por um lado, num contexto de isolamento internacional e, por outro lado, onde os primeiros objectivos da Revolução Socialista eram, simultaneamente, a satisfação de necessidades primárias das populações e a sobrevivência militar e política do socialismo. Assim, a guerra civil foi desencadeada pelas classes dominantes russas desalojadas do poder político com a Revolução de Outubro. Contudo, a guerra civil de 1918-1920 não foi um conflito bélico estritamente nacional. De facto, a intervenção de 14 países imperialistas foi essencial não só no abastecimento de armas e mantimentos ao exército contra-revolucionário dos Brancos, mas essas próprias potências imperialistas intervieram directamente no cenário de guerra contra o poder bolchevique. O seu objectivo, ontem como hoje, era muito simples: derrubar a primeira experiência de poder operário que se estava a implantar em todo um território nacional (e até continental, dada a imensidão do futuro território soviético) e não apenas numa cidade como na Comuna de Paris de 1871.

Os meses seguintes à Revolução foram momentos que permitiram à reacção (russa e internacional) reagrupar forças e definir estratégias de afrontamento ao poder dos Sovietes. A contra-revolução consubstanciou-se numa ofensiva em todo o território do ex-Império Russo, articulando acções militares com actos terroristas contra altos dirigentes soviéticos. A descrição de Maurice Dobb, economia marxista inglês, do desencadear das hostilidades é bastante ilustrativa:

“No dia 29 de Maio chegaram notícias da revolta de tropas checoslovacas nos Urais e a 30 de Maio a lei marcial foi decretada em Moscovo e outras cidades importantes. Na primeira semana de Junho o general Krasnov e os seus cossacos no sul atacaram Tsaritsin. Depois da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk em Março, os alemães tinham ocupado a Ucrânia e no decurso de Julho tropas britânicas desembarcaram em Arcangel no norte. As forças aliadas estabelecidas em Murmansk logo desde Abril (para onde tinham ido por acordo das autoridades soviéticas como forma de prevenir a sua captura pelos alemães na Finlândia) começaram a avançar para o sul. Em Agosto, o Exército Voluntário de Denikin no Cáucaso Norte capturou Ekaterinodar no Kúbano e em 5 de Setembro deu-se a tentativa de assassinato de Lênin” (Dobb, 1972, p.94).

Esta sucessão de eventos apresenta a entrada em cena dos vários actores contra o regime socialista com os seus objectivos bem definidos: afogar em sangue a Revolução Socialista de Outubro. Como afirma o mesmo autor, “nestas circunstâncias, não só a atitude da burguesia contra o regime se endureceu, tal como qualquer boa vontade para cooperar economicamente como tinha ocorrido inicialmente se evaporou imediatamente, mas também para o poder soviético as necessidades militares tomaram precedência sobre todas as outras considerações” (idem). Nesse sentido, toda a orientação da política económica e toda a política de construção do Estado socialista se direccionou para os esforços de guerra.

O desenvolvimento inicial da guerra civil foi francamente desfavorável para o Estado soviético. Sem um Exército Vermelho ainda constituído e com um aparelho económico quase moribundo, as apostas da burguesia internacional eram claramente viradas para uma vitória dos Brancos.

Num perspicaz livro sobre a economia do período da transição para o socialismo na URSS encontramos algumas notas valiosas acerca da essência económica do “comunismo de guerra”:

“a base da economia de guerra do período de 1918-1920 era a mobilização de toda a indústria para resolver as tarefas de defesa do Estado socialista. Para assegurar a vitória, era precisa a concentração máxima dos recursos, em primeiro lugar, para o desenvolvimento da indústria, e a economia estrita na utilização desses recursos” (Economia Nacional da URSS no Período Transitório, 1983, p.75).

Por conseguinte,

“um traço característico do “comunismo de guerra” foi a diminuição do volume das relações monetário-mercantis e a naturalização dos vínculos económicos”. Isto é, “a maioria esmagadora do produto social foi concentrada nas mãos do Estado soviético sem qualquer indemnização (trata-se dos produtos da indústria nacionalizada e dos sovkhozes, da propriedade confiscada aos elementos capitalistas da cidade e do campo) ou por preços fixos, em moeda que se encontrava, então, em franca desvalorização”. Para além disso, “o grosso dos fundos estatais de víveres e de mercadorias era utilizado para o abastecimento gratuito do exército, da indústria e dos operários empenhados em satisfazer as necessidades das frentes de combate”. Em síntese, “toda a política financeira” e económica “do poder soviético visava a concentração dos recursos do país nas mãos do Estado e a sua utilização em prol da vitória sobre o inimigo” (idem, p.76).

Assim, sem romper a aliança da classe operária urbana com as faixas pobres e médias do campesinato, a verdade era que esta relação sofreu um forte abalo com a política – contingente, mas necessária – do “comunismo de guerra”. Maurice Dobb sublinha que as medidas do “comunismo de guerra” eram impreteríveis. Naquele contexto de guerra, o Estado soviético “só poderia obter os recursos necessários para a sua sobrevivência através de medidas que passaram pela coerção e pelo controlo e distribuição centralizados dos bens existentes. O excedente de cada propriedade camponesa, acima das necessidades essenciais de sobrevivência, foi sujeito à requisição compulsória. A recolha e a alocação deste produto para o exército e para a indústria (…) foi uma das pedras-chave” (Dobb, 1972, p.103) da vitória bolchevique na guerra civil. Sem este trabalho de centralização dos esforços económicos e políticos na vitória das forças inimigas, muito simplesmente, a primeira experiência de construção do socialismo numa escala nacional teria sucumbido. Por conseguinte, o “comunismo de guerra” surge como uma resposta à pressão de condições internas e externas sobre o país dos Sovietes e não como uma pretensa via de passagem directa para o socialismo como, por um lado, vários detractores burgueses e, por outro lado, as teses (na altura) esquerdistas de Bukharine apregoavam.

Internamente, a fracção da classe dominante organizadora da contra-revolução eram os kulaks. Para Lênin, com a guerra, “estas sanguessugas beberam o sangue dos trabalhadores, enriquecendo tanto mais quanto mais fome passavam os operários nas cidades e nas fábricas. Estes vampiros apanharam e apanham nas suas mãos os latifúndios, escravizam uma e outra vez os camponeses pobres” (Lênin, 1978g, p.667). Esta dimensão opressora dos kulaks continuará a persistir nas primeiras duas décadas do poder socialista e só com a colectivização dos anos 30 desaparecerão como classe social. Por outro lado, é indubitável o ódio de classe dos kulaks relativamente aos trabalhadores (a quem condenavam à maior miséria) e aos bolcheviques pelo que Lênin enuncia a seguinte palavra de ordem no contexto da guerra civil: “guerra implacável contra estes kulaks! Morte a eles! Ódio e desprezo aos partidos que os defendem: os socialistas-revolucionários de direita, os mencheviques e os actuais socialistas-revolucionários de esquerda! Os operários devem esmagar com mão de ferro as insurreições dos kulaks, que concluíram uma aliança com os capitalistas estrangeiros contra os trabalhadores do seu país” (idem).

Esta citação de Lênin tem um valor inestimável pela demonstração de uma série de vectores que se foram registando ao longo da História da URSS. Na guerra civil só os kulaks poderiam organizar política e ideologicamente a guerra contra o Estado soviético. A burguesia industrial, obviamente, era anticomunista, mas estava isolada nas grandes cidades sem qualquer base social de apoio por parte do operariado. Ora, os kulaks tinham uma influência (ideológica) secular sobre grandes massas do campesinato russo. Agitando o medo quase genético do “roubo da propriedade pelos comunistas” junto do campesinato – fenómeno transversal a todos os processos revolucionários contemporâneos –, os kulaks e o Exército Branco foram capazes de mobilizar boa parte dessa massa humana até determinado ponto da guerra civil. Contudo, com o regresso do latifúndio e de uma quase-servidão aos campos russos, o campesinato passou a apoiar os bolcheviques. Adicionalmente, o trabalho político do Partido Bolchevique nos campos e a reorganização do Exército Vermelho permitiu derrotar os Brancos. Ainda sobre esta citação de Lênin reflicta-se sobre a ligação que elementos contra-revolucionários internos efectuaram com o imperialismo estrangeiro. É neste ponto que as causas internas da derrota da URSS se ligam com os factores externos, dando o adequado relevo a ambos. Finalmente, repare-se que Lênin afirma que os “operários devem esmagar com mão de ferro as insurreições dos kulaks”. Portanto, era a constituição real da classe operária como classe de vanguarda no processo revolucionário que asseguraria a vitória na guerra civil. Esta seria a classe que com todas as suas forças – humanas, materiais e morais – poderia derrotar a contra-revolução.

As vitórias do Exército Vermelho no Outono de 1918 na região do Volga contra as tropas checoslovacas e os seus avanços no final desse ano nos Urais começaram a romper o cerco imperialista da Rússia soviética. Nesse contexto, Denikine, rearmado pelas forças imperialistas estrangeiras, realizou uma nova ofensiva em Junho de 1919. Como sucedeu anteriormente, Lênin compreendeu que, dada a incapacidade de os Brancos destruírem o poder dos Sovietes, no caso de uma vitória bolchevique contra Denikine, a vitória na guerra civil estaria mais próxima. Aí, mais do que nunca, “todos os comunistas, antes de tudo e acima de tudo, todos os simpatizantes, todos os operários e camponeses honrados, todos os funcionários soviéticos devem pôr-se em pé de guerra, dirigindo o máximo do seu trabalho, dos seus esforços e preocupações para as tarefas imediatas da guerra, para repelir imediatamente a invasão de Denikine, reduzindo e reorganizando, em subordinação a esta tarefa, toda a sua restante actividade. A República Soviética é assediada pelo inimigo. Deve tornar-se um campo militar único” (Lênin, 1978h, p.162).

Daí que a tenção de forças por parte das forças revolucionárias e de todo o povo contra os seus inimigos encarniçados fosse a prioridade das prioridades. Esta lição política – demonstrativa do grau de consciência política e de dedicação à causa da liberdade, do socialismo e do comunismo por parte de amplas camadas do povo trabalhador e camponês – seria novamente repetida contra a invasão nazi-fascista de 1941-45. Na segunda metade de 1919 as vitórias contra Kolchak na Sibéria e nos Urais e contra Denikine na Ucrânia foram uma dura machadada nas aspirações contra-revolucionárias de tentarem destruir o jovem Estado operário pela via das armas e da violência mais feroz. Ao mesmo tempo, estas vitórias mostravam a todo o mundo como um exército formado por centenas de milhares de operários e camponeses era capaz de bater os mais poderosos exércitos imperialistas. A construção de um poderoso exército que defendesse o socialismo só era possível no cenário de guerra. A guerra civil forjou a organização militar operária e popular mais poderosa da História, a organização militar que iria livrar a Humanidade da barbárie do nazi-fascismo. Lênin, num discurso a 13 de Maio de 1920, quando a guerra se encaminhava para o seu término descreveria o principal factor da vitória do Exército Vermelho:

“Em última análise, a vitória em qualquer guerra depende do espírito animado pelas massas que cospem o seu próprio sangue no campo de batalha. A convicção de que a guerra tem uma causa justa e a compreensão de que as suas vidas devem ser colocadas ao dispor pelo futuro bem-estar dos seus irmãos, fortalece a moral dos homens que lutam e permite-lhes enfrentar esforços inacreditáveis. Os generais czaristas diziam que os homens do nosso Exército Vermelho eram capazes de esforços e feitos que o exército czarista seria incapaz. A razão é que cada trabalhador ou camponês mobilizado sabe porque está a combater e está preparado para oferecer o seu sangue pelo triunfo da justiça e do socialismo” (Lênin, Collected Works vol.31, p.137).

A vitória na guerra civil iria chegar em Novembro de 1920 após o armistício com a Polónia e após o barão Wrangel ter sido derrotado. Todavia, a vitória soviética só foi conseguida à custa de enormes esforços políticos, humanos e económicos que não poderiam ser superados de uma hora para a outra. Dos 3.024.000 operários industriais da Rússia de 1917, em 1921, sobravam 1.243.000 para uma população total de 136 milhões de habitantes. Em Petrogrado dos 400 mil operários de Outubro de 1917, restavam 71.575 em Abril de 1918 (dados recolhidos em Martorano, 2002, p.126). Segundo dados oficiais, o número de trabalhadores empregados em 1922 era menos de metade do que antes da Primeira Guerra – 4,6 milhões em vez dos 11 milhões de 1913 (dados da Narodnoye Khozyaistvo SSSR 1922-1972 p.345 e 346 citados por Bettelheim, 1976, p.172). Sorlin, na sua obra The Soviet People (Sorlin, s/d, p.78), afiançaria que dois anos de guerra civil – por intermédio da fome, dos assassinatos e dos conflitos bélicos propriamente ditos – mataram mais russos do que quase quatro anos da Primeira Guerra Mundial: 7,5 milhões na primeira contra 4 milhões na segunda. Ludo Martens no seu livro – Um outro olhar sobre Stalin – vai falar em 9 milhões de mortos na guerra civil. Repita-se mais uma vez, guerra civil desencadeada pelas forças mais reaccionárias das antigas classes dominantes russas e com o apoio e intervenção directas do imperialismo internacional em território russo.

A supramencionada tenção de forças políticas, económicas e sociais na guerra civil tiveram como base de organização económica o chamado “comunismo de guerra”. Esta foi a resposta dos bolcheviques, em termos de política económica ao contexto de encarniçada guerra civil (do proletariado contra a burguesia e as classes dominantes), ainda mais numa formação social russa permeada por três modos de produção conflituantes entre si: capitalismo (D-M-D’), socialismo e modo de produção simples de mercadorias (M-D-M). Como dizia Lênin “as formas fundamentais da economia social são: o capitalismo, a pequena produção mercantil e o comunismo. As suas forças sociais fundamentais são: a burguesia, a pequena-burguesia (especialmente os camponeses) e o proletariado” (Lênin, 1978i, p.203). Com efeito, com estes dados lançados em cima da mesa, a prossecução dos objectivos de construção do socialismo e da defesa imediata da república dos Sovietes exigia o fortalecimento do Partido de vanguarda e o estreitamento da sua relação com as massas operárias e camponesas russas. E como isto se poderia efectivar mais agudamente no terreno?

“Primeiro, pela consciência da vanguarda proletária e pela sua dedicação à revolução, pela sua firmeza, pelo seu espírito de sacrifício, pelo seu heroísmo. Segundo, pela sua capacidade de se ligar, de se aproximar e, se quiserdes, de se fundir até certo ponto com as mais amplas massas trabalhadoras, antes de mais com as massas proletárias, mas também com as massas trabalhadoras não proletárias. Terceiro, pela justeza da direcção política que esta vanguarda exerce, pela justeza da sua estratégia e da sua táctica políticas, com a condição de que as mais amplas massas se convençam desta justeza pela experiência própria. Sem estas condições é irrealizável a disciplina num partido revolucionário verdadeiramente capaz de ser o partido da classe avançada, chamada a derrubar a burguesia e a transformar toda a sociedade” (Lênin, 1978i, p.281).

Esta ligação do Partido Comunista à classe expressava-se igualmente no apelo e no trabalho político que realizava para elevar a participação e auto-iniciativa das massas.

“Existe um grande número de organizadores talentosos dentre os camponeses e a classe trabalhadora, e que só agora começam a ficar conscientes deles mesmos, a acordar, a passar a um trabalho enorme, vital, criativo que consiga dar conta, com as suas próprias forças, a tarefa da construção do socialismo. Uma das tarefas mais importantes, senão a mais importante, é desenvolver esta iniciativa independente dos proletários e de todos os trabalhadores e do povo explorado em geral, trabalho desenvolvido tão vastamente quanto possível no trabalho organizacional criativo. A todos os custos, devemos quebrar o velho, absurdo, selvagem, desprezável e nojento preconceito de que só as chamadas “classes superiores”, só os ricos e aqueles que frequentaram as escolas dos ricos, seriam capazes de administrar o Estado e, assim, dirigirem o desenvolvimento organizacional da sociedade socialista” (Lênin, Collected Works, vol.26, p.409).

Sobre o Partido Bolchevique gostávamos ainda de sublinhar que a evolução da sua base militante foi a seguinte: 24 mil em Janeiro de 17, 612 mil em Março de 1920 e 732 mil em Março de 1921. A isto seguiram-se depurações do Partido resultando na franquia de 499 mil militantes em 1923. No que toca ao número de operários no Partido – aspecto essencial para a manutenção do carácter e independência de classe de uma organização socialista de vanguarda – havia cerca de 14 mil em 1917, cerca de 270 mil em 1920 e 300 mil em 1921. O número de camponeses passou de 1800 em 1917 para mais de 200 mil em Janeiro de 1921 (dados da Bolshaya Sovyetskaya Entsiklopedya citados por Bettelheim, 1976, p.208). O enorme crescimento do Partido Bolchevi que teve várias consequências: a) a constatação óbvia da implantação desse Partido nas massas e a viva simpatia e prestígio junto do povo; b) a redução proporcional do número de operários industriais e urbanos no Partido Bolchevique ao mesmo tempo que aumentaram exponencialmente os membros de origem camponesa; c) a adesão ao Partido Bolchevique num contexto de controlo do poder político traz também elementos oportunistas. Deste último item ressalte-se o papel das depurações no Partido. Por exemplo, quando no 8º Congresso do Partido Comunista Russo (bolchevique) (Março de 1919) existiam 350 mil membros, a direcção do Partido decidiu levar avante um propósito de elevado alcance revolucionário: seleccionar os melhores quadros da classe operária e eliminar elementos parasitários e oportunistas que procuravam sobreviver à custa do novo poder soviético. Assim, no Outono de 1919 o Partido Bolchevique não tinha mais do que 150 mil membros. Porém, Lênin e os seus camaradas não tinham uma concepção fechada e sectária do Partido pelo que nos últimos meses do ano de 1919 abriram as portas do Partido numa fase decisiva da guerra civil, onde a adesão de carreiristas era menos provável já que, por um lado, se vencessem os bolcheviques eles seriam expulsos do Partido e, por outro, se vencessem os Brancos os oportunistas não seriam poupados por terem estado ao lado dos comunistas. Ao mesmo tempo, a perspectiva de uma possível derrota dos comunistas na guerra civil não era um chamativo muito forte de oportunistas ao Partido, mas antes de operários e camponeses que queriam dar o melhor de si à defesa da Revolução, da Revolução que defendia os seus interesses e que eles consideravam como sua. Um outro desafio para o fortalecimento do Partido era o baixo número de militantes que eram membros do Partido antes de Fevereiro de 1917. Contudo, numa fase de aguda luta de classes, com uma Revolução e com uma guerra civil pelo meio, a aprendizagem política de todos esses novos militantes seria impressionante para a sua formação política.

Tomando como pressuposto o papel dirigente do Partido Comunista Russo (bolchevique) no processo histórico de construção do socialismo, passemos, então, ao estudo socioeconómico do “comunismo de guerra”. Ao contrário do que imensos apologistas do capital afirmam o “comunismo de guerra” não foi uma tentativa de o Partido Bolchevique realizar a transição do capitalismo para o comunismo. Pelo menos essa não era a visão dos leninistas, mas a de Bukharine ou Trotsky, nunca a da maioria do Comité Central do Partido e das suas vozes mais representativas. De facto, o “comunismo de guerra” foi um efeito directo do cerco imperialista realizado ao Estado socialista. Em termos muito simples, no “comunismo de guerra” o Estado soviético podia apropriar-se da produção camponesa acima de um mínimo necessário para alimentar a família. Tudo o que restasse desse mínimo definido de acordo com o número de membros do agregado familiar era propriedade do Estado soviético como forma de colmatar as gravíssimas carências de bens nas cidades e de matérias-primas para incrementar a indústria de guerra contra a reacção dos Brancos e dos imperialistas. Com o decorrer da guerra e com a exasperação dos conflitos, o Estado soviético mais não pôde fazer do que recolher o excedente agrícola ao máximo que podia. Estas nunca foram mais do que medidas provisórias, vistas sempre como parte integrante do esforço de guerra.

Não se deve também exagerar a animosidade do campesinato a estas medidas. Se é verdade que grande parte estava profundamente descontente com a requisição “forçada” de cereais e outros produtos agrícolas, não parece prudente afirmar que o relacionamento do Partido Bolchevique e da classe operária com o campesinato seria apenas sustentado na base da coerção. Se não houvesse um mínimo de consciência política do que estava em jogo em caso de vitória dos Brancos por parte de camadas amplas do campesinato – o retorno do latifúndio e da servidão – não temos dúvidas que, dado o anterior apego daquela classe à tradição e à propriedade individual, os bolcheviques não teriam triunfado e, muito menos, teriam recolhido uma grande quantidade de cereais e produtos agrícolas. Isto não apaga a difusão de um mercado negro que duraria e se agravaria com a NEP, nem procura omitir a necessidade do uso da violência para que o Estado soviético pudesse apropriar o excedente económico dos campos. Importa, isso sim, compreender o carácter provisório e precário do “comunismo de guerra”. Dizemos precário porque a Revolução não duraria se não resolvesse a deterioração da aliança operário-camponesa (smytchka) que se ia desenvolvendo. Daí que se tenha começado a proceder a uma renovação da política económica soviética com a introdução do imposto em espécie depois do fim da guerra civil.

Vejamos, para terminar esta secção, como Lênin via esta questão:

“O sistema por nós criado [o “comunismo de guerra”, nota nossa] foi ditado pela guerra e não por requisitos, condições ou considerações económicas. Não havia outra saída para o estado calamitoso em que nos encontrávamos, onde depois de uma guerra enorme tivemos de enfrentar e suportar várias guerras civis. Devemos assumir que na execução da nossa política cometemos muitos erros e excessos noutros casos. Mas nas condições de guerra então existentes, no seu geral, a política seguida foi correcta. Não tivemos outra alternativa senão concentrar toda a produção e confiscar todos os excedentes em stock, mesmo que sem compensações” (Lênin, Collected Works, vol.32, p.233-234).

Com o fim da guerra e com a derrota dos Brancos, deu-se a introdução de um imposto em espécie, medida transitória até à implementação da NEP.

• 1921 – 1924: A NEP como etapa de recuo táctico
A Revolução Socialista de Outubro assentou inquestionavelmente na aliança social e política entre a classe operária das grandes cidades industriais e o pequeno e médio campesinato. Com a vitória das forças revolucionárias na guerra de 1918-20, novos desafios surgiram. Um dos mais candentes era, sem dúvida, o do restabelecimento da economia. Intimamente ligado a este estava a relação entre a classe operária e o campesinato. O enorme peso deste último na sociedade russa – ainda profundamente ruralizada e com laços fortes com um passado de servidão de tipo feudal – nunca escapou a Lênin. No X Congresso do Partido Comunista Russo o líder revolucionário afirmou peremptoriamente: “sabemos que só o acordo com o campesinato pode salvar a revolução socialista na Rússia, enquanto não eclodir a revolução noutros países” (Lênin, Tomo III, p.475). De facto, este não era um slogan de propaganda mas a consciência aguda da situação do país em Março de 1921, data do referido congresso do Partido Bolchevique. Por outro lado, como Lênin afirmaria no IV Congresso da Internacional Comunista, “ninguém duvida que no nosso país o campesinato é o facto decisivo” (idem, p.623).

Assim, os dois grandes desafios – ou se se preferir os dois lados do mesmo desafio – que se colocavam na passagem de 1920 para 1921 eram o restabelecimento da economia e o fortalecimento da aliança com o pequeno e médio campesinato. Nesse sentido, Lênin advogou a necessidade de “uma certa liberdade de circulação de mercadorias, uma liberdade para o pequeno proprietário privado e, em segundo lugar, é necessário conseguir mercadorias e produtos” (idem, p.477). Enfatizando que a manutenção do controlo do poder político pelo proletariado e pelo seu Partido de vanguarda era condição indispensável para o sucesso de qualquer nova linha política, Lênin considerou que nos anos de 1918-20 se tinham ido “demasiado longe: fomos demasiado longe no caminho da nacionalização do comércio e da indústria, no caminho de bloquear a circulação de mercadorias local” (idem, p.478). Lênin reforça esta ideia: “as requisições obrigatórias pressupunham: confiscar todos os excedentes, estabelecer o monopólio estatal obrigatório” (idem, p.483). Era inquestionável que a guerra levou a esse tipo de medidas que se revelaram desfasadas dos sentimentos das massas camponesas: “não podíamos proceder doutra maneira, estávamos numa situação de extrema penúria” (idem, p.483). Contudo, era tempo de rectificar a trajectória e ganhar essas massas para o socialismo. O caminho seria pela persuasão e de forma gradual, sublinhando sempre o controlo do poder político pela classe operária e pelo seu Partido.

“Num país camponês que tem indústria – e a indústria trabalha – e se existe uma certa quantidade de mercadorias, é possível aplicar como medida transitória o sistema do imposto e da livre circulação de mercadorias. Essa circulação é para o camponês um estímulo, um incentivo. O proprietário” das terras “pode e deve esforçar-se no seu próprio interesse, pois não lhe serão tomados todos os excedentes, mas apenas um imposto, que, se possível, deve ser fixado antecipadamente” (idem), o imposto em espécie.

Como se afirmou acima, a introdução do imposto em espécie foi a primeira medida económica visando restabelecer as trocas económicas de tipo mercantil entre o campo e a cidade. A necessidade do rompimento com o “comunismo de guerra” – uma fase de cariz temporário derivada do deflagrar da guerra civil – prendia-se, segundo Lênin, com a relação que o Partido Bolchevique vinha estabelecendo com o campesinato pobre, a imensa maioria da população russa.

“Sob nenhumas circunstâncias devemos esconder o que quer que seja; devemos tomar consciência de que o campesinato está insatisfeito com o tipo de relações connosco, ele não quer relações desse tipo e não querer continuar a viver como até aqui. Isto é inquestionável. O campesinato já expressou a sua vontade sobre este aspecto o suficiente. É a vontade das vastas massas da população trabalhadora. Devemos reconhecer isto e somos lúcidos o suficiente para dizer francamente: temos de reexaminar a nossa política em relação ao campesinato. O estado de coisas prevalecente até hoje não pode continuar muito mais. Devemos tentar satisfazer as aspirações e necessidades dos camponeses que estão insatisfeitos e fartos desta situação, legitimamente e que não poderíamos esperar outra coisa. Devemos dizer-lhes: “sim, isto não pode continuar assim”. Como será o camponês satisfeito e o que satisfaze-lo significa? Onde está a resposta? Naturalmente, esta reside nas demandas do campesinato” (Lênin, CW, p.217).

Esta análise de Lênin é interessantíssima pelos pontos que aborda. Não se trata de uma abordagem estritamente teórica, mas onde a teoria está ao serviço da prática, onde a reflexão sobre um assunto em concreto serve como potenciador de uma prática concreta em prol e na defesa da Revolução. Lênin compreende que o peso numérico mas também o grau de consciência política do campesinato (pequeno e médio) são variáveis inultrapassáveis para a construção do socialismo. Desse modo, a qualidade da aliança operário-camponesa não é um mero slogan de propaganda mas é um elemento de capital importância para a sobrevivência da Revolução. Lênin compreende que uma classe operária urbana isolada e com uma boa parte aniquilada fisicamente na guerra civil não conseguiria fazer avançar o processo revolucionário. Note-se também o papel do Partido neste contexto: captar as necessidades mais prementes das massas populares no seu conjunto (no caso em específico, do campesinato) e orientar-se politicamente para as contemplar no seu projecto político.

A NEP estabelecia, portanto:

“a substituição das requisições de víveres pelo imposto em espécie; admissão do comércio livre; permissão do arrendamento da terra e da utilização de trabalho assalariado” dentro de certos limites; “arrendamento de pequenas empresas pertencentes ao Estado às cooperativas, associações e indivíduos particulares, e desnacionalização parcial destas empresas; admissão e utilização da indústria estatal de forma a torná-la rentável economicamente e conforme com os princípios de estimulação material dos trabalhadores e das suas colectividades e de renúncia à distribuição equitativa” (Economia Nacional da URSS, 1983, p.109).

Consequentemente, depois das medidas relativas à regulamentação do imposto em espécie, em 1922 a legislação sobre a NEP torna-se mais consolidada. Por exemplo, em Maio de 22 é publicado o decreto que estipula a criação de associações ou sociedades agrárias de produtores agrícolas (as zemelnoye obshchestvo). O código legal sobre a terra de Novembro do mesmo ano aprofunda ainda mais o incentivo à agricultura de cariz individual. Objectivo: relançar a produção dos pequenos e médios camponeses que na sua esmagadora maioria não empregavam força de trabalho alheia à sua unidade familiar. A produção de um excedente nos campos era vital para o arranque da industrialização e para o aprovisionamento das populações operárias famintas das cidades. De referir que essas associações de terra eram dirigidas por um skhod, isto é, uma assembleia-geral dos camponeses de uma determinada localidade. Em teoria, todos os camponeses (pequenos, médios ou grandes) poderiam participar de igual para igual nessas assembleias e determinar a orientação política da vida económica local. Contudo, na prática, tal não se verificava. De facto, o poder político expresso no skhod passou a ser detido, como nas antigas assembleias de aldeia (o mir) pelos camponeses ricos. Por dois grandes motivos: pelo seu francamente superior poder económico que não tinha sido fortemente abalado nos primeiros anos da Revolução por via, tanto do florescimento do mercado negro no período do comunismo de guerra, como do arrebatamento de terras pertencentes a grandes latifundiários de origem aristocrática; em segundo lugar, a reprodução de laços de paternalismo e de reverência ideológica aos camponeses ricos, reforçava o submetimento consentido de amplas massas camponesas pobres aos kulaks. Numa análise do Partido Bolchevique sobre a situação nos campos em 1928, surgirá como natural a afirmação de que “o skhod de aldeia continua a ocupar a posição predominante na vida da aldeia” (citação no livro Foundations of a Planned Economy, volume 2, de Carr, p.248). O mesmo é dizer que a classe dominante nos campos era os kulaks. Autores soviéticos como Ustinov (na obra K voprosu o formakh zemlepolzovaniya, citado por Bettelheim) considerariam que a consolidação do skhod, no médio prazo, favoreceu largamente os camponeses ricos. Ao mesmo tempo, a fraca implantação à época do Partido Bolchevique junto do campesinato ajudou ao crescimento dos kulaks nos órgãos de poder locais.

Em 1923 foi permitido o emprego de trabalho assalariado pelos camponeses, bem como foram asseguradas condições de aluguer de terras para cultivo para um período nunca superior a três anos. Em consonância, o governo Bolchevique autorizou igualmente a concentração de terras entre pequenas propriedades no sentido de evitar a mini-parcelarização das terras. O objectivo era evitar a fragmentação das terras produtivas e eliminar recursos desnecessários como os pequenos caminhos, cercas, etc. inerentes às propriedades de reduzidas dimensões. No conjunto, as medidas de 1922 favoreceram o conjunto do campesinato, nomeadamente, no aumento do excedente agrícola mas também no acesso e controlo a parte do mesmo para a subsistência alimentar das suas camadas mais pobres. Contudo, a relação de forças nos campos acabaria por fomentar um crescimento maior da posição dos kulaks relativamente à restante massa camponesa. O crescimento dos kulaks nos anos seguintes da NEP, e a posterior confrontação nos campos em 1930, demonstraria isso mesmo.

Acentue-se ainda sobre esta temática da NEP, que se é inegável o peso do factor “pequena propriedade privada” na balança das forças em jogo, isso não significa que a NEP se teria resumido a incrementar a produção e o comércio mercantil. A formação de cooperativas camponesas teve um papel não negligenciável e que funcionou como exemplo futuro de como a organização colectiva da produção em kolkhoses se afigurava como económica e produtivamente mais vantajosa para o campesinato russo. Já em 1923 – portanto, quando a produção agrícola e a produção industrial começavam a sair dos níveis baixíssimos registados anteriormente – Lênin começou a defender a aposta na cooperativização do campesinato que para tal já se encontrasse habilitado.

“Ao passar à NEP fomos demasiado longe, não no sentido de termos dedicado demasiado lugar ao princípio da indústria e do comércio livres, mas ao passar à NEP fomos demasiado longe no sentido em que nos esquecemos da cooperação, de que subestimamos agora a cooperação e começamos já a esquecer a gigantesca importância da cooperação” (Lênin, Tomo III, p.658).

Lênin alertava aqui contra os perigos de fetichização e eternização das relações mercantis e da pequena propriedade privada, atirando a centralidade da construção do socialismo para as calendas gregas. Por conseguinte, Lênin defenderia que

“é necessário conceder à cooperação meios do Estado que ultrapassem, ainda que pouco, os meios concedidos às empresas privadas (…). Deve entender-se o apoio prestado ao comércio cooperativo no qual verdadeiramente participem verdadeiras massas da população” (idem, p.659).

Quer dizer, com o desenvolvimento da iniciativa privada – necessária e útil naquele contexto de recuo táctico, mas temporal e historicamente provisória – importava começar a desenvolver os germes das relações sociais socialistas nos campos de modo a evitar a propagação excessiva das relações mercantis a todo o tecido económico. Sem dúvida que as cooperativas de pequenos camponeses não foram desenvolvidas a um estado pleno e estavam sobretudo confinadas ao comércio e distribuição, e menos no que tocava à esfera da produção. Como afirmou Lênin,

“esta condição da cooperativização completa implica um tal grau de cultura do campesinato (precisamente do campesinato, como uma massa enorme), que essa cooperativização completa é impossível sem toda uma revolução cultural”, ou seja, com a alfabetização escolar, técnica e política do campesinato. Prossegue Lênin, “para nós é suficiente esta revolução cultural”, relembre-se, simultaneamente escolar, técnica e política, para nos tornarmos um país completamente socialista” (idem, p.662).


O relevo é aqui dado à participação popular na construção do socialismo. Porém, Lênin adverte, “mas esta revolução cultural apresenta incríveis dificuldades para nós, tanto no aspecto puramente cultural (pois somos analfabetos) como no aspecto material (pois para sermos cultos é necessário um certo desenvolvimento dos meios materiais de produção, é necessária uma certa base material)” (idem).

Por conseguinte, de modo a incrementar a produção económica num quadro de profunda desestruturação da formação social russa provocada por dois conflitos bélicos e a permitir a sobrevivência da aliança operário-camponesa, pode-se afirmar que a NEP, durante um determinado período, teve as suas virtudes. Contudo, o conflito entre elementos políticos e económicos socialistas com as relações mercantis levariam a uma necessária suplantação destes últimos. Mas esse seria o tema de outro ensaio.

Balanço breve da construção da sociedade socialista na Rússia Soviética: algumas questões a considerar

1) O socialismo, a luta de classes e a supressão das classes.
“É impossível suprimir as classes de repente. As classes mantiveram-se e manter-se-ão durante a época da ditadura do proletariado. A ditadura tornar-se-á inútil quando as classes tiverem desaparecido. Sem a ditadura do proletariado elas não desaparecerão.

As classes mantiveram-se, mas cada uma delas modificou-se na época da ditadura do proletariado; modificaram-se as suas inter-relações. A luta de classes não desaparece sob a ditadura do proletariado, toma apenas outras formas.

No capitalismo, o proletariado era uma classe oprimida, uma classe privada de toda a propriedade dos meios de produção, a única classe directa e inteiramente oposta à burguesia e, por conseguinte, a única capaz de ser revolucionária até ao fim. Depois de ter derrubado a burguesia e conquistado o poder político, o proletariado tornou-se a classe dominante; ele detém nas suas mãos o poder de Estado, dispõe dos meios de produção já socializados, dirige os elementos e as classes vacilantes, intermédias, reprime a energia crescente da resistência dos exploradores. Todas estas são tarefas particulares da luta de classes, tarefas que o proletariado não colocava nem podia colocar anteriormente.

A classe dos exploradores, dos latifundiários e dos capitalistas, não desapareceu nem pode desaparecer de repente sob a ditadura do proletariado. Os exploradores foram derrotados, mas não aniquilados. Continuam a ter uma base internacional, o capital internacional, de que eles são uma sucursal. Continuam a ter em parte alguns meios de produção, continuam a ter dinheiro, continuam a ter um grande número de relações sociais. A energia da sua resistência cresceu centenas e milhares de vezes, precisamente em consequência da sua derrota. A “arte” de dirigir o Estado, o exército, a economia, dá-lhes uma superioridade muito grande, de modo que a sua importância é incomparavelmente maior do que a sua parte no conjunto da população. A luta de classe dos exploradores derrubados contra a vanguarda vitoriosa dos explorados, isto é, contra o proletariado, tornou-se infinitamente mais encarniçada. E não poderia ser doutro modo se se fala de revolução, se não se substitui este conceito pelas ilusões reformistas” (Lênin, 1978i, p.208) [itálicos nossos].

Sublinhe-se deste importantíssimo trecho as seguintes observações: a) elementos burgueses e contra-revolucionários podem persistir numa sociedade socialista até que desapareça todo e qualquer vestígio das sociedades de classes; b) não desaparecendo as classes dominantes e/ou elementos que permitam uma sua reconstituição futura, a luta de classes nunca acaba durante a fase da ditadura do proletariado, ou seja, nos termos de Lênin, enquanto durar a transição socialista a luta entre explorados e exploradores – em novas formas como afirma o próprio – é uma inevitabilidade. A omissão desta questão – que é ela própria decorrente da tese anterior – pode constituir-se como um facto político gravíssimo para a evolução posterior do desenvolvimento do socialismo; c) a burguesia pode reproduzir-se mesmo não tendo a propriedade da maioria dos meios de produção. Ela pode reproduzir-se por via da sua capacidade (evidentemente, que não inata mas adquirida) de administrar e gerir a sociedade e a economia. Por conseguinte, facilmente elementos de origem burguesa podem reproduzir-se sem que uma burguesia exista enquanto tal. Esses elementos reflectem-se, por exemplo, em concepções políticas oportunistas. No que diz respeito a este período, veja-se as teses de Trotsky, Bukharine e Preobrazhensky acerca do “comunismo de guerra” como uma fase de transição para o comunismo, ou da “revolução permanente” de Trotsky, etc..

2) O início da edificação de uma planificação central.
Apesar de todos os obstáculos da guerra civil – que obrigou o Estado soviético a desviar a maior parte dos seus recursos económicos e políticos para o esforço bélico – deram-se passos importantes na construção de um sistema de planificação central. Veja-se o que diz Lênin sobre o “plano económico único” em Fevereiro de 1921.

“O único trabalho sério sobre a questão do plano único é o Plano de Electrificação da RSFSR, relatório da GOELRO (Comissão Estatal para a Electrificação da Rússia) ao VIII Congresso dos Sovietes, editado em Dezembro de 1920 e distribuído no VIII Congresso. Nesse livro está exposto um plano económico único, que foi elaborado – naturalmente apenas como primeira aproximação – pelas melhores forças científicas da nossa República, por encargo dos seus organismos superiores. (…) O plano está calculado aproximadamente para um decénio e indica o número de operários e a potência (em milhares de cavalos-vapor). Por certo este plano é apenas aproximativo, inicial, grosseiro, com erros, um plano “que é uma primeira aproximação”, mas é um verdadeiro plano científico. Temos os cálculos precisos de especialistas para todas as questões fundamentais. Temos os seus cálculos relativos a todos os ramos da indústria” (Lênin, 1978j, p.463-464).

Daqui retire-se, portanto, os primeiros passos na institucionalização de um aparelho próprio de planificação central (a GOELRO daria lugar, mais tarde ao Gosplan), instrumento necessário de articulação de toda a organização económica soviética.

3) A construção do socialismo e o Partido Comunista
Na construção do socialismo intervêm inúmeros factores que aceleram ou entravam o processo revolucionário. Estando as condições objectivas relativamente estabelecidas para a construção do socialismo (no caso de 1917, salientem-se a crise do Estado czarista, a crise económica, a falência da dominação política e ideológica da classe dominante, a derrota militar na Primeira Guerra Mundial, a fome, o desvio de abastecimentos alimentares para o esforço de guerra imperialista, etc.), as condições subjectivas passam a desempenhar um papel acentuadamente importante. Não que o Partido revolucionário seja menos importante em fases de recuo do que em fases históricas de ascenso revolucionário. Mas nas condições de uma revolução, a organização política de vanguarda é essencial para o desenvolvimento do processo de tomada do poder político pelas massas populares. Se a exasperação das massas tem um elevado grau de espontaneidade, esse caudal de aspirações de transformação social é impossível de tomar sem a condução política e ideológica de uma força política organizada e com um programa político adequado à situação revolucionária. Nesse sentido, o papel do Partido de vanguarda, seus dirigentes e seus militantes é insubstituível. Com particular realce, destaque-se a contribuição decisiva de Lênin para todo o processo de construção do socialismo.

4) A indústria pesada e a construção da base material do socialismo
O assunto da industrialização soviética assente na aposta na indústria pesada é assaz polémico e tem gerado grande controvérsia. Muitas concepções advogam que tal empreendimento sofreria de uma forte dose de megalomania, típica de regimes totalitários. Outras concepções, ditas “socialistas” ou de “esquerda”, afirmavam que a construção do socialismo não necessitaria de tal esforço gigantesco pois, dizem estas concepções, este teria consumido demasiados esforços e recursos.

Por conseguinte, importa situar esta questão à luz da sua real dimensão e importância para a edificação de uma sociedade socialista. Já em 1922, aquando do IV Congresso da Internacional Comunista, Lênin defendia a necessidade da industrialização pesada como um passo imprescindível para o futuro socialista da jovem república soviética.

“A salvação da Rússia não está apenas numa boa colheita nas explorações camponesas – isto não basta – nem apenas na boa situação da indústria ligeira que abastece o campesinato com artigos de consumo – isto também não basta; precisamos também duma indústria pesada. Esta precisa de subsídios do Estado. Se os não encontrarmos pereceremos como Estado civilizado, para já não dizer como Estado socialista” (Lênin, tomo III das obras escolhidas, p.624).

Lênin analisou a realidade concreta onde se poderia construir o socialismo. Reconhecendo o atraso económico e tecnológico da Rússia, Lênin percebeu nitidamente que sem uma forte infra-estrutura técnica e industrial não se fabricariam o armamento necessário à defesa do país, nem muito menos se teria condições para surgirem novas relações sociais de produção, relações sociais de tipo socialista em escala alargada. No fundo, num contexto subsequente à destruição protagonizada pelas guerras, à sabotagem industrial pela grande burguesia russa, o atraso económico e tecnológico, o peso da produção e da circulação simples de mercadorias, só a industrialização poderia criar a base técnico-material do socialismo. Sem forças produtivas modernas não haveria nem base de sustentação para relações de produção de tipo socialista nem possibilidade de elevar o contingente de operários. Neste campo, a elevação da produtividade do trabalho era essencial.

“O crescimento da produtividade do trabalho exige, antes de mais, que se assegure a base material da grande indústria: o incremento da extracção de combustíveis, o aumento do fabrico de ferro, de maquinaria e de produtos químicos” (Lênin, 1970, colectânea de textos intitulada “Acerca de la base tecno-material del comunismo” publicada pela Editorial de la Agencia de Prensa Nóvosti, p.32).

Lênin acrescenta que outra das condicionantes do aumento da produtividade do trabalho teria de passar pela “elevação do nível cultural e da instrução de grandes massas da população” (idem). Portanto, sem participação activa do povo trabalhador e camponês e sem todo um processo de aprendizagem – simultaneamente técnica, escolar e político-ideológica – a evolução positiva de uma variável de tipo técnico como é a produtividade do trabalho seria impensável. Lênin estaria aqui a pensar na dialéctica entre a construção das estruturas técnica e económica do socialismo e a participação popular. No fundo, como ambas se entrelaçam e se condicionam reciprocamente. Com forças produtivas desenvolvidas mais facilmente se podem criar condições para uma mais vasta e profunda qualificação da classe trabalhadora russa. Com uma classe trabalhadora crescentemente escolarizada e qualificada, mais consciente é o processo de construção da base material do socialismo e mais adaptada esta se encontra às reais necessidades do socialismo. Para a consecução deste processo Lênin abordaria, como já se observou anteriormente, a questão da presença dos especialistas técnicos burgueses na gestão do processo produtivo e industrial numa fase transitória. De facto, sem qualificação o operariado industrial russo de inícios dos anos 20 necessitou da introdução nas fábricas de especialistas técnicos burgueses como forma de adquirirem conhecimentos técnicos para administrarem o novo aparelho económico em construção. A relação do operariado com os quadros técnicos era vista por Lênin da seguinte maneira:

“é preciso esforçar-se de forma constante para rodear os especialistas burgueses de um ambiente de trabalho colectivo fraternal com a massa de operários da linha de produção, dirigidos por comunistas conscientes, e procurar paciente e tenazmente, sem deixar vir abaixo por alguns fracassos inevitáveis, despertar naqueles homens dotados de uma preparação científica a consciência da infâmia que é valer-se da ciência para fins de lucro pessoal e para a exploração do homem pelo homem, a consciência da elevada tarefa que consiste em tornar a ciência acessível à grande massa trabalhadora” (idem, p.39).

Apesar da origem burguesa ou pequeno-burguesa dos especialistas técnicos, Lênin reconheceu que só a vigilância revolucionária sobre os mesmos permitiria os necessários dividendos em termos de melhoria da instrução técnica do operariado e da regeneração do aparelho industrial e produtivo.

Se o socialismo, enquanto um novo modo de produzir e organizar a vida social, política e económica não significa apenas um elevado crescimento económico mas também implica novas relações sociais de produção, uma estrutura do Estado e a superação de cambiantes ideológicas e culturais passadas, não nos podemos esquecer que sem um grau mínimo de desenvolvimento tecnológico e de organização da produção, para um país continental como a União Soviética era impossível sobreviver ao cerco imperialista e, ao mesmo tempo, ir construindo uma nova sociedade. Assim, o fortalecimento (se é que não se deve falar mesmo em criação quase de raiz) da base técnica e material do socialismo era um domínio vital para o futuro da União Soviética como Estado independente e para a edificação de uma sociedade socialista. Em resumo, para Lênin,

“a base material do socialismo não pode ser senão a grande indústria mecanizada, capaz de reorganizar também a agricultura. Mas não devemos limitarmo-nos a este princípio geral. Há que concretizá-lo” (idem, p.68).

Se é inevitável que a questão da construção da base material do socialismo será diferente de país para país, a sua problematização por todos os que colocam o socialismo no horizonte será essencial em futuros processos revolucionários. O objectivo do socialismo não é, em última instância, apenas elevar os índices de crescimento económico e industrial per si, mas transformar as relações sociais, reconfigurando revolucionariamente e pela acção das massas populares anteriores estruturas assentes na exploração e na opressão em novas estruturas libertas de fenómenos de dominação e de exploração. Contudo, este longo processo histórico de transformação social não é independente da criação de condições materiais básicas para a sua concretização. A luta de classes, o reforço da luta operária e socialista – assente na participação popular em larga escala e na solidificação política, ideológica e organizativa de um Partido revolucionário – e a construção da base material e tecnológica interactuam dialecticamente num processo revolucionário. Esta questão detalhada e intensamente abordada por Lênin nos últimos anos da sua vida parece-nos ser uma tese a ter em conta em futuras situações de ascenso revolucionário.

* João Valente Aguiar é professor da Universidade do Porto