A Renascença marca o começo da modernidade com absoluta primazia na Itália, onde, a rigor, começa no século- XIV, com Dante, Petrarca, Boccaccio, Giotto e os Pisano, e alcança a Europa cento e muitos anos depois, quando Michelangelo nasce no apogeu da arte toscana. A Editora Unicamp acaba de publicar a tradução de Vida do gênio de Caprese, de autoria de Giorgio Vasari, na esmerada tradução de Luiz Marques, que também assina impecáveis textos de introdução e comentário.

(Acima, Michelangelo, a máscara mortuária. Ilustra-se com um livro de 1500 sobre o que significa ser artista autêntico)

Vasari foi amigo de Michelangelo, antes de ser pintor foi também o primeiro historiador da arte, ao completar com essa biografia uma obra ciclópica intitulada Vidas dos Mais Insignes Pintores, Escultores e Arquitetos, de Cimabue aos Dias de Hoje, publicada em 1550. Precipito-me de todo modo a sublinhar: seria simplesmente ridículo comparar Michelangelo com Cildo Meireles. Aqui não se cogita de confrontar talentos díspares e sim tempos brutalmente diversos. A Renascença não apresenta a mais tênue semelhança com os nossos dias, de crise mundial muito além de econômica.

Se o assunto é artes plásticas, vale registrar a evidência: desde os pintores rupestres das cavernas da Dordonha, 30 mil anos antes de Cristo, até Francis Bacon, o artista cuidou de representar e interpretar a realidade que o cerca. E me vem à memória Pietro Maria Bardi, polegares introduzidos debaixo das tiras do suspensório tornadas raízes para impedi-lo de levantar voo. Folheia o catálogo de uma exposição de Lucien Freud e diz, olhos arregalados, tom de deleite: “Este é um pintor!” Um artista no sentido profundo, agudo intérprete do seu tempo.

A arte, ensinou-me meu pai, além de jornalista dava aulas nessa matéria, a arte “é um fenômeno sociológico”. Espelha a quadra em que se manifesta. Ou por outra, não há qualidade se a qualidade falta em geral. Há uma conexão transparente entre todas as atividades humanas praticadas no mesmo momento, e a Renascença é extraordinário momento de mudança e renovação. A turva, aturdida hora que vivemos agora é de decadência. O mundo se esvai em suas contradições e carências, servo dos interesses de grupelhos, a acentuar disparidades cada vez maiores, materiais e morais.

A crise não é somente econômica, bem sabemos. Jean Clair, o mais importante crítico de arte francês, enxerga qualidade apenas na música e na dança. Haverá quem alegue o avanço científico e tecnológico. Está claro, contudo, que a prepotência e a desfaçatez de um punhado de semelhantes são o denominador comum da desgraça nos mais diversos domínios. Charlatães sempre houve, nunca, no entanto, o engodo foi institucionalizado urbi et orbi como a bênção do papa.

Vende-se fumaça em todos os níveis e em todas as instâncias, muito além dos mercados financeiros onde vigora a crença de que o ideal é produzir dinheiro em vez de bens e serviços. Aplicado à arte, por exemplo, o mesmo conceito produz as chamadas instalações, ou penosas e anacrônicas tentativas de imitar Duchamp, ou desabrida manifestação do nada. Os artistas ditos contemporâneos quando muito produzem bordados e tecidos de tapeçaria, brinquedos infantis ou mesmo o vácuo de Torricelli.

Perdoe o leitor se retorno a Michelangelo, exemplo máximo de uma arte que, em todas as suas maneiras de ser, representava o resumo, a síntese, a essência do seu tempo. Ao esculpir, ao pintar, ao criar novas formas arquitetônicas, Michelangelo estabelecia uma ligação exaltante, ética e estética, entre o pensamento e os costumes da época e a tornava eterna.

Hoje vende-se fumaça, cujo destino é dissolver-se no ar, sem deixar de ofender contingentemente a razão, quando não de provocar tragédias globais, no mínimo dramas. E não há como não comparar os marchands com os manipuladores do jogo financeiro, e com todos os demais adoradores do deus mercado.

Fonte: Carta Capital