Karl Marx e Friedrich Engels a A A. Bebel, W. Liebknecht, W. Bracke e outros (1)

Entretanto, chegou-nos o Jahrbuch (2) de Höchberg, contendo um artigo: «Rückblicke auf die sozialistische Bewegung in Deutschland» [«Retrospectivas do movimento socialista na Alemanha»] que, como o próprio Höchberg me dise, é precisamente da autoria dos três membros da comissão de Zurique (3). Temos aqui a crítica autêntica deles do movimento até agora e, portanto, o programa autêntico deles para a atitude do novo órgão (4), na medida em que isso deles dependa.

Logo desde o princípio diz-se:

«O movimento, que Lassalle encarava como um [movimento] eminentemente político, para o qual ele apelava não só aos operários mas a todos os democratas honrados, à cabeça do qual deviam marchar os representantes independentes da ciência e todos os homens imbuídos de verdadeiro amor pela humanidade [Menschenliebe], reduziu-se, sob a presidência de J. B. von Schweitzer, a uma unilateral luta de interesses dos operários da indústria.»

Eu não investigarei se e em que medida é que historicamente as coisas assim se passaram. A recriminação especial que aqui é feita a Schweitzer consiste em que Schweitzer reduziu o lassalleanismo — que é concebido aqui como um movimento burguês democrático-filantrópico — a uma unilateral luta de interesses dos operários da indústria, ao aprofundar o carácter dele como luta de classes dos operários da indústria contra a burguesia (5). Além disso, é-lhe recriminada a sua «rejeição da democracia burguesa». O que é que a democracia burguesa tem, pois, a fazer no Partido Social-Democrata? Se ele consiste em «homens honrados», ela não pode sequer querer entrar e se, contudo, ela quer entrar, então é só para causar disputa.

O partido de Lassalle «preferiu conduzir-se, da maneira mais unilateral, como partido operário». Os senhores que escrevem isto são eles próprios membros de um Partido que, como Partido operário, se conduz da maneira mais unilateral, estão agora investidos nele em altos cargos. Reside aqui uma incompatibilidade absoluta. Se o que escrevem, é o que querem dizer, têm que sair do Partido, [têm] pelo menos que se demitir dos altos cargos. Se o não fazem, têm de admitir que pretendem utilizar a sua posição em cargos para lutar contra o carácter proletário do Partido. O Partido trai-se, portanto, a si próprio se os deixa nos altos cargos.

O Partido Social-Democrata não deve, portanto, na perspectiva destes senhores, ser nenhum Partido operário unilateral, mas um Partido omnilateral «de todos os homens imbuídos de verdadeiro amor pela humanidade». Deve demonstrá-lo, antes de tudo, desembaraçando-se das grosseiras paixões proletárias, e dedicando-se ele próprio «ao cultivo [Bildung] de um bom gosto» e «à aprendizagem do bom tom» (p. 85) sob a direcção de burgueses filantrópicos cultos. Então, as «maneiras de maltrapilho» [«verlumpte Auftreten] de muitos dirigentes cederão [o passo] a «maneiras burguesas» muito honradas. (Como se as maneiras exteriormente de maltrapilho dos aqui aludidos não fossem o mínimo que se lhes pode recriminar!) Então também:

«virão numerosos aderentes dos círculos das classes cultas e possidentes. Estes, porém, têm, primeiro, que ser ganhos, se [se quiser que] a… agitação conduzida alcance sucessos tangíveis». O socialismo alemão «deu demasiado valor ao ganhar das massas e, por isso, esqueceu-se de fazer propaganda enérgica» (!) «nas chamadas camadas superiores da sociedade». Pois, «o Partido ainda tem falta de homens apropriados para o representar no Reichstag». É, porém, «desejável e necessário confiar os mandatos a homens que tenham tido oportunidade e tempo suficientes para se familiarizarem aprofundadamente com as matérias respectivas. O simples operário e o pequeno mestre [artesão]… só em poucos casos excepcionais têm para isso o necessário vagar».

Elejam, portanto, burgueses!

(Continua no próximo número)

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Notas

(1) A carta circular de Karl Marx e F. Engels de 17-18 de Setembro de 1879, enviada a Bebel, mas destinada pelos seus autores a toda a direcção do Partido Social-Democrata alemão, tem o carácter de um documento de partido. Na parte III que se publica, põe-se em relevo o comportamento capitulacionista de Höchberg, Bernstein e Schramm, que encabeçavam a ala direita do partido e haviam publicado, em 1879, nas páginas do Jahrbuch für Sozialwissenschaft und Socialpolitik (Anuário de Ciência Social e Política Social), artigos defendendo um oportunismo descarado.

Marx e Engels denunciam na carta as bases políticas de classe e ideológicas do oportunismo manifestado, e exprimem o seu protesto contra a transigência para com ele por parte da direcção do partido. Criticam acerbamente as vacilações oportunistas que se manifestaram no partido desde a promulgação da lei de excepção contra os socialistas. Defendendo o carácter consequente de classe do partido proletário, Marx e Engels exigem a eliminação de toda a influência dos elementos oportunistas no partido e no órgão do partido. A crítica de Marx e de Engels ajudou os dirigentes do Partido Social-Democrata alemão a melhorar a situação no partido, que soube, no período de vigência da lei de excepção, sob perseguições de todo o género, reforçar as sua fileiras, reestruturar a organização e encontrar o justo caminho para as massas, combinando as formas legais e ilegais do trabalho.

(2) Trata-se do Jahrbuch für Sozialwissenschaft und Socialpolitik (Anuário de Ciência Social e Política Social), revista de orientação social-reformista, publicada em Zurique de 1879 a 1881 por K. Höchberg, cujo pseudónimo era Ludwig Richter; saíram três números.

(3) Trata-se de Karl Höchberg, Eduard Bernstein e Karl August Schramm.

(4) Trata-se do órgão do partido que se tencionava fundar em Zurique.

(5) No lugar destas duas frases, estava originalmente o seguinte passo, riscado no manuscrito: «Schweitzer era um grande patife [Lump], mas uma cabeça plena de talento. O mérito dele consistiu em que rompeu o lassallianismo estreito originário com a sua limitada panaceia da ajuda do Estado… Apesar daquilo de que ele, por motivos corruptos, também teve culpa e do quanto, para manutenção da sua dominação, também se ateve à panaceia da ajuda do Estado de Lassalle, teve o mérito de ter rompido o lassallianismo estreito originário, de ter alargado o horizonte económico do Partido e de, com isso, ter preparado a sua ulterior absorção no Partido conjunto [Gesammtpartei] alemão. A luta de classes entre proletariado e burguesia, esse eixo [Angelpunkt] de todo o socialismo revolucionário, tinha já sido pregada por Lassalle. Quando Schweitzer acentuou este ponto de um modo ainda mais cortante, isso foi, em todo o caso, um progresso na coisa mesma, por muito que ele também possa ter forjado a partir daí um pretexto para lançar suspeitas sobre pessoas perigosas para a sua ditadura. É totalmente correcto que ele fez do lassallianismo uma unilateral luta de interesses dos operários da indústria. Mas, unilateral apenas, porque, por razões de corrupção política, ele não queria saber da luta de interesses dos operários do campo contra a grande propriedade fundiária. Não é isso que aqui lhe é recriminado; a «redução» consiste em que ele aprofundou o carácter dela como luta de classes dos operários da indústria contra a burguesia.».

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Selecção:

• Francisco Melo

Tradução:

• José Barata-Moura

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Fonte: jornal Avante!