Seja qual for a verdade dos factos – e no momento em que escrevemos muita coisa está ainda por esclarecer – é uma evidência que o caso Dominique Strauss-Kahn está longe de ser uma pura questão de polícia e muito menos uma manifestação de exemplar independência e isenção de classe do sistema de justiça norte-americano, sistema que dá cobertura aos piores crimes do imperialismo por todo o mundo. Mas se DSK, o principal dirigente de uma das mais poderosas organizações internacionais caiu nas malhas da justiça dos EUA, caiu também nas malhas da crise do capitalismo e da agudização da luta entre as diferentes fracções do grande capital e entre as grandes potências pela maior fatia possível do bolo imperialista.

Não há qualquer razão para erguer um só dedo em defesa de DSK, um daqueles «socialistas» – como Sócrates, Papandréou ou Zapatero – absolutamente indispensáveis à sobrevivência do capitalismo. É sabido que preconizava soluções de algum pendor keynesiano, aí residindo possivelmente uma razão para o seu meteórico afastamento. É sabido que partilhava a opinião de que a situação da Grécia era insustentável e que, obviamente no interesse do euro e do sistema financeiro, era realmente necessária alguma reestruturação da dívida grega, apesar do risco de «contágio» que Merkel e quejandos tanto temem. Uma posição que estava longe de ser pacífica no seio do directório de grandes potências que comanda a UE e que entretanto, não só se prepara para impor ao povo grego um novo pacote de pesados sacrifícios, como – declarações do patrão do euro Jean-Claude Juncker ao Der Spiegel em 21.05.11 propondo a criação de uma Treuhand (*) grega – congemina para a Grécia formas de ingerência institucionalizada de recorte abertamente colonial.

DSK é um homem do sistema que servia diligentemente a alta finança capitalista, mas que dificuldades e contradições terão tornado incómodo e descartável. Um daqueles políticos burgueses que nos tempos da juventude navegaram em águas de «esquerda» e que o grande capital descobriu, comprou e formatou para o servir. Um típico exemplo daquela categoria de tecnocratas que transformaram a social-democracia num pilar do imperialismo mas exibe uma fachada «anti-neoliberal» e um verniz de «esquerda» utilíssimos ao capitalismo para travar a erosão da sua base de apoio. DSK foi um dedicado servidor do grande capital e nada garante, como tantas vezes aconteceu com expoentes da classe dominante «caídos em desgraça», que não regresse ao primeiro plano da cena política.

Mas pelos vistos o sistema sente-se melhor servido de momento pela srª Christine Lagarde à frente do FMI: França, Alemanha e Grã-Bretanha já se entenderam para apoiar a candidatura da actual ministra da economia de Sarkozy, conhecida pela sua trajectória e orientação anglo-saxónica. A importância do FMI na cúpula do sistema capitalista torna-o objecto de uma disputa particularmente intensa no quadro do aprofundamento da crise capitalista. Independentemente do apuramento da verdade sobre o «caso DSK», esta é uma questão incontornável.

A crise que percorre a UE e que os portugueses vivem na pele, a persistência da recessão no Japão (que o desastre de Fukushima veio agravar ) e o espectro que pesa sobre a economia dos EUA em consequência do seu brutal endividamento e das faraónicas injecções da Reserva Federal no sistema financeiro, são realidades que ensombram de incerteza a situação internacional, num quadro em que avulta como grande questão não resolvida a reforma do sistema monetário, e com ela o questionamento do domínio do dólar e do papel dos EUA no mundo. Os fait divers da vida internacional não devem fazer-nos perder de vista o essencial: a profunda crise estrutural e sistémica do capitalismo, os perigos que comporta e a necessidade de lhe fazer frente com determinação e confiança.

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(*) A Treuhand criada pelo governo alemão no processo de anexação da RDA, foi o instrumento fundamental para privatizar e desmantelar o poderoso sector estatal deste país socialista.

Fonte: jornal Avante!