E que mantém o mundo claramente dividido em esquerda e direita. A esquerda fantasma funciona como um conveniente bode expiatório. A direita a acusa pela degeneração moral e pelo caos fiscal. A social-democracia a utiliza para apelar à "moderação". E enquanto perdemos nosso tempo a falar bobagens, a máquina do poder corporativo está, cega, cruel e irrefletidamente, a devorar com gosto o Estado.

O desaparecimento da esquerda radical na política estadunidense tem-se demonstrado catastrófico. Noutros tempos, a esquerda abrigava desde militantes anarquistas a uma imprensa alternativa e independente, passando por movimentos sociais e políticos desatrelados do mecenato corporativo. Mas o seu desaparecimento, resultante da longa caça às bruxas anticomunista, à pós-industrialização e ao silenciamento de quem não subscreveu a visão utópica da globalização, significa que não há forças a se contrapor à nossa regressão ao neofeudalismo corporativo. Esta dura realidade, no entanto, não é exatamente palatável. Assim, as empresas que controlam a comunicação de massa conjuram o fantasma de uma esquerda, e põem nele a culpa por nossa decadência. E nos põem a falar em coisas absurdas.

A esquerda fantasma desempenhou um papel central nas ruas neste fim de semana em Washington. Teve, para Glenn Beck (1), um desempenho admirável, a tal ponto que ele o utilizou em seu próprio comício, como uma espécie de para-raios, para despertar a raiva e o medo. E essa mesma esquerda fantasma mostrou-se igualmente útil para os comediantes Jon Stewart e Stephen Colbert (2), que falaram para a multidão fantasiada de vermelho, branco e azul. Os dois comediantes evocaram o fantasma da esquerda, como os social-democratas sempre fazem, na defesa de moderação, ou melhor, apatia. O argumento que se segue é: se a direita é insana e a esquerda também, então nós, os moderados, somos os razoáveis. Sejamos bacanas. A Exxon e a Goldman Sachs, juntamente com os outros bancos rapinantes e a indústria bélica, podem estar rasgando as tripas do país, nossos direitos básicos – incluindo o habeas corpus – podem estar sendo revogados, mas não nos enfureçamos com isso. Não sejamos histéricos. Não façamos como os lunáticos esquerdistas.

Jon Stewart perguntou: “Por que trabalhar com os marxistas para subverter ativamente a nossa Constituição, ou com os racistas e homófobos que não enxergam nenhuma humanidade a não ser a própria?” E continuou: “Nós ouvimos todo santo dia sobre como o país se encontra fragilizado, sobre como está à beira da catástrofe, sobre como se encontra rasgado pelo ódio da polarização, e sobre como é uma vergonha que não possamos nos unir para superar os problemas. Mas a verdade é que o fazemos. Trabalhamos juntos para resolver as coisas, todo santo dia. Os únicos lugares onde não estamos juntos são aqui [em Washington] ou na TV a cabo.”

O comício foi uma mensagem política desprovida de realidade ou conteúdo. A corrupção da política eleitoral por recursos de empresas e lobistas, a crença ingênua de que podemos de alguma forma votar pelo retorno à democracia, tudo foi ignorado para fins de catarse emocional. A direita odeia. Os social-democratas riem. E o país se torna refém dos dois.

O “Rally To Restore Sanity” (Comício pela Restauração da Racionalidade), realizado no National Mall de Washington [em 30 de outubro de 2010], trouxe consigo outra nota triste: a morte da social-democracia. Foi tão inócuo quanto uma reunião de escoteiros. Expôs o Tea Party ao ridículo sem reconhecer que a dor e o sofrimento de muitos de seus apoiadores são não somente reais, mas legítimos. Fez troça de bufões que estão a erguer-se do pântano moral para tomar de assalto o Partido Republicano, sem aceitar que aqueles que os apoiam tenham sido vendidos pelos social-democratas, em particular, por um Partido Democrata que virou as costas à classe trabalhadora em prol do dinheiro das empresas.

Glenn Beck, da Fox News, e os seus aliados da extrema-direita podem usar o ódio para mobilizar, porque há dezenas de milhões de estadunidenses que têm boas razões para o ódio. Eles foram traídos pela elite política que dirige o Estado corporativo, pelos dois principais partidos políticos e pelos apologistas da social-democracia, incluídos aí os que têm espaço na televisão, e que aconselham a moderação enquanto os empregos desaparecem, os salários despencam e o seguro-desemprego se esgota. Enquanto a social-democracia falar com a voz morta da moderação, continuará a dar combustível à reação furiosa da extrema-direita. Somente quando aquela se apropriar dessa fúria como sua própria, somente quando se insurgir contra os sistemas estabelecidos de poder, incluindo o Partido Democrata, nós poderemos ter alguma esperança de conter essa nova frente ensandecida do Partido Republicano.

O saqueio do Tesouro Nacional por Wall Street, o cerceamento de nossas liberdades civis, os milhões de execuções de hipotecas fraudulentas, o desemprego permanente, as falências pessoais causadas por contas médicas, as guerras sem fim no Oriente Médio e o acúmulo de trilhões de dólares em dívidas que nunca poderão ser pagas estão nos conduzindo a um mundo hobbesiano em colapso. Ser bacana e moderado não vai ajudar. As forças corporativas têm a intenção de reconfigurar os Estados Unidos num sistema de neofeudalismo. Estas forças da sociedade não serão interrompidas por cartazes engraçadinhos, sujeitos vestidos como o Capitão América ou por belas palavras.

A social-democracia quer se eternizar no centro político para permanecer moral e politicamente desconectada. Enquanto houver uma esquerda fantasma, tão ridículo e atrofiada como a direita, a social-democracia poderá se manter à margem do compromisso político. Se esta classe admitir que o poder foi arrancado do povo, será obrigada, caso resolva agir, a construir movimentos externos ao sistema político. Isto exigiria que a social-democracia protagonizasse demandas por atos de resistência, incluindo a desobediência civil, numa tentativa de salvar o que resta do nosso anêmico estado democrático. Mas este tipo de atividade política, tão custosa quanto difícil, é muito desagradável para um establishment social-democrata falido que vendeu sua alma aos interesses corporativos. Assim, a esquerda fantasma ficará conosco por um longo tempo.

A política nos EUA tornou-se um espetáculo. É uma outra espécie de show business. A multidão em Washington, bem treinada pela televisão, foi condicionada a desempenhar o seu papel diante das câmeras. Os cartazes – “O Volume do Blablablá Está Alto Demais”, “Os Patriotas de Verdade Podem Lidar com Diferenças de Opinião”, ou “Eu me Masturbo e Voto” – refletem a vacuidade do discurso político atual e a epistemologia perversa da televisão. Os discursos do comício foram proferidos exclusivamente na iconografia empobrecida e na linguagem televisivas. Estavam cheios de hipocrisia política despida de sentido, músicas e piadas. Era como qualquer outro programa de variedades da televisão. Vendiam-se personalidades, não plataformas políticas. Na verdade, a sociedade do espetáculo é exatamente isto.

O espetáculo moderno, como o teórico Guy Debord (3) assinalou, é uma ferramenta potente para o apaziguamento e a despolitização. Trata-se de uma “guerra do ópio permanente” que entorpece seus telespectadores e os desconecta das forças que controlam suas vidas. O espetáculo desvia a raiva para os fantasmas e para longe dos perpetradores da exploração e da injustiça. Produz sensação de euforia. Ele faz com que os participantes acabem por confundiro espectáculo em si com a ação política real.

As celebridades da Comedy Central e os apresentadores dos talk shows podres da Fox News estão no mesmo negócio. Eles são divertidos. Eles fornecem o material vazio e emocionalmente carregado que anima conversas intermináveis que vêm e vão sobre supostos programas de televisão de esquerda e direita. É uma pantomima nacional. Mas não se engane. Não é política. É entretenimento. É espetáculo. Todo o debate nacional nas ondas eletromagnéticas é impulsionado pela mesma fofoca vazia, pela mesma trivialidade absurda, pelos mesmos fricotes de de celebridades e pela mesma postura ridícula. Pode ser apresentado de diferentes maneiras. Mas nada disso diz respeito a ideias ou à verdade. Não se trata de informar, e sim de emocionar. Trata-se de nos levar a confundir os nossos sentimentos com o conhecimento. E no fim, para aqueles que nos servem essas asneiras, o que importa é mesmo o dinheiro, na forma de índices de audiência e publicidade. Beck, Colbert e Stewart servem todos aos mesmos senhores. E não somos nós.

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Notas

(1) Apresentador da TV a cabo Fox News e um dos incentivadores do movimento de extrema-direita Tea Party, dissidência do Partido Republicano formada em 2009.

(2) Apresentadores dos programas “The Daily Show” e “The Colbert Report”, transmitidos nos EUA pela TV a cabo Comedy Central.

(3) http://en.wikipedia.org/wiki/Guy_Debord

Fonte: truthdig.com, no Brasilianas.org

Tradução: Luiz Lima