Refiro-me a um participante da Guerrilha do Araguaia, cuja atuação foi algo tão forte, constituindo-se numa espécie de essência daquele movimento organizado pelo Partido Comunista do Brasil – PC do B. Naquele ocasião – fins da década de sessenta e início da década de setenta, o partido entendeu que a luta armada seria o caminho para retirar o Brasil da ditadura estabelecida a partir do golpe militar de 1964.

Quando Glênio (Sá), junto com o seu companheiro de partido Alírio Guerra, morreu vítima de um acidente nunca investigado completamente, o Diário de Natal publicou uma manchete muito significativa, que dizia: “Morrem os caminhantes dos sonhos”. Aquele título, dado por um jornal com o qual o próprio Glênio havia travado embates extremados – pois tinha à frente o jornalista Luís Maria Alves, anti-comunista declarado e, na sua trincheira, um combatente leal, pois lhe dava a consideração dos direitos de respostas – dava uma dimensão da importância de Glênio (e do companheiro daquela jornada, Alírio, que não fora da Guerrilha do Araguaia, mas participou de lutas também de grande importância).

O título de caminhante dos sonhos caracterizava a então chamada utopia, mas ia além, pois era pública e notória em todos os meios a postura decidida, corajosa, firme, amiga e leal de Glênio, que atuou no movimento estudantil de Fortaleza; foi para o Araguaia, onde participou de variadas etapas da guerrilha; foi preso e torturado, sendo levado a vários porões da ditadura; e liberado de forma estranha, pois o regime não queria documentar nada que configurasse a existência do movimento guerrilheiro. Voltando ao Rio Grande do Norte, aos poucos retomou uma vida revolucionária, como estudante de Geologia, militante do movimento estudantil e dirigente do partido.

Antes de assumir outras tarefas, depois de estudar radio na Escola Industrial e fazer um curso de rádio do Instituto Universal, já montava rádios e tinha o hábito, quase hobby, de captar emissoras do mundo inteiro. Naquele tempo sintonizei a Rádio Tirana, da Albânia, que falava sobre o movimento guerrilheiro no interior do Brasil. Tinha acesso a revistas e jornais e nunca vira nada a respeito. Daí a ânsia de comentar com alguém aquele achado. Fazia um lanche na Praça Pedro II com um amigo e, ao falar entusiasmado sobre o que ouvira, fomos abordados por um homem que apresentou uma carteira da Marinha e nos aconselhou esquecer o assunto, para nosso próprio bem. Tomamos um grande susto e nunca mais voltei a ver aquele agente.

Anos depois, voltamos a sintonizar aquela rádio, eu, Glênio e outros, ainda em busca das notícias que a censura não deixava a imprensa publicar. A face sertaneja do guerrilheiro ficava rubra, devido à emoção que não podia evitar que transparecesse, como que revivendo cada momento dramático da sua vida. Certa noite detalhou tudo para os amigos. Contou que em 1970 partiu para São Paulo e depois se engajou no então clandestino PC do B, indo atuar no sul do Pará. Dedicado ao trabalho no campo, terminou preso pelo Exército quando buscava tratamento para malária e foi delatado. Submetido a diversos atos desumanos, chegou a permanecer em uma cela solitária na qual sequer podia ficar em pé. Glênio voltou ao convívio da família em setembro de 1974.

A têmpera revolucionária de Glênio fazia-o buscar incessantemente a re-implantação do Partido na região, através dos contatos possíveis. Noites, madrugadas e dias afora ele tentava reconstituir os documentos do Partido, ao mesmo tempo em que procurava participar dos raros eventos democráticos que eram programados. Corajosamente, fundou, no início de 1980, no afastado bairro de Igapó, uma sociedade de defesa dos direitos humanos, que reunia um grupo considerável de pessoas e discutia os assuntos políticos da época. Tratava-se de uma entidade democrática e comprometida com a luta dos setores populares. A primeira grande luta da sociedade foi contra a poluição provocada por uma fábrica de diatomita, que afetava os moradores do bairro.

Depois de retomado o contato com o Partido, periodicamente ele recebia a visita de alguém do Comitê Central, que trazia documentos e informações, além de realizar reuniões completas para atualizar a todos. Eram antigos camaradas, que traziam grandes experiências da luta revolucionária e novos militantes, que estavam exercendo funções importantes na política nacional ou regional. As reuniões eram sempre um período de total tensão. O aparelho tinha que ser mantido na mais perfeita camuflagem e o sigilo sobre a presença do representante nacional era total. Nada podia ser revelado nem mesmo aos familiares que não estivessem envolvidos com o Partido, pois tratava-se de questão de vida ou morte.

Esta reflexão surge quando vemos as informações disponibilizadas pela Rede Globo sobre sua nova novela – Araguaia -, as quais fazem uma referência relâmpago aos fatos ocorridos na região escolhida para cenário da nova trama. É preciso registrar que o Araguaia não é apenas uma bela paisagem e uma área para a qual o Brasil precisa voltar-se de forma mais completa e verdadeira. Ali ocorreram fatos como aqueles documentados no filme “A conspiração do silêncio”. Foi algo muito profundo, muito completo e de grande valor histórico. No dizer de uma das guerrilheiras, “os moradores da região nunca mais foram os mesmos, depois da guerrilha”.

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Jornalista