A sociologia vem, nos últimos anos, conquistando terreno em um campo de análise habitualmente dominado por economistas no Brasil: os estudos da pobreza e da desigualdade. O primeiro ato desse movimento foi a incorporação de técnicas próprias da economia por parte de autores da chamada sociologia econômica, como a econometria e o recurso ao individualismo metodológico. Mais recentemente, é na perda de credibilidade dos prognósticos de economistas do paradigma dominante que se deve buscar a explicação para a renovação do interesse pela interpretação sociológica dos fenômenos ligados à distribuição do excedente produtivo.

É nesse contexto epistemológico que se insere o novo livro de Adalberto Cardoso, pesquisador do prestigiado Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), organismo ainda há pouco vinculado à Universidade Cândido Mendes, atualmente abrigado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A empreitada é ambiciosa: trazer ao público acadêmico uma interpretação global da evolução da percepção social da desigualdade no Brasil nos últimos 150 anos. O resultado fica, porém, aquém das expectativas do leitor, que, no entanto, poderá se entusiasmar ao folhear especialmente a introdução.

O ecletismo que orienta a mobilização de teorias econômicas antagônicas resulta em uma colagem por certo interessante para aqueles curiosos em relação a novas possibilidades metodológicas nas ciências sociais, mas pouco eficiente para promover uma explicação coerente da persistência das desigualdades no país. Se não, como explicar o que existe em comum entre as concepções de funcionamento da dinâmica econômica da teoria do capital humano e a da escola francesa da regulação? Produzir uma síntese entre Gary Becker e Michel Aglietta, pela qual se esforça o autor, é algo como buscar uma conciliação teórica entre Mário Henrique Simonsen e Maria da Conceição Tavares.

Produzir uma síntese teórica entre Becker e Aglietta é como buscar conciliação entre as ideias de Simonsen e Maria da Conceição

De um lado está um instrumental controverso, de orientação ideológica conservadora, que segue preso à impossibilidade de explicar os salários pelo nível educacional dos indivíduos, quando a direção dessa causalidade parece ser a inversa, especialmente em países subdesenvolvidos. De outro lado, os regulacionistas franceses propõem uma análise crítica da economia política, resgatando a importância de instituições como a relação salarial, o Estado e o tipo de inserção internacional de um país para entender sua dinâmica da acumulação. Para os primeiros, não existem classes sociais: somos todos capitalistas, pois detemos “capital humano”. Para os últimos, são exatamente as diferenças de classe que caracterizam o pertencimento a um ou outro regime de acumulação (liberal, fordista, pós-fordista ou neoliberal).

Fica, sobretudo, a impressão de que, para Cardoso, o Estado é uma entidade suprema e intocável diante dos conflitos que se manifestam na esfera produtiva. A caracterização do Estado brasileiro como “antissocial”, responsável por nossas piores mazelas, deixa de lado o mais fundamental: sua construção como fruto de um processo histórico do qual a elite conservadora é diretamente responsável. Elite que conquistou o Estado em 1964 e que, desde então, o transformou de maneira a garantir o status quo social e os privilégios do capital monopolista – para usar uma terminologia própria do sociólogo cuja ausência é a que mais se sente na bibliografia final: Octavio Ianni.

A relutância em analisar a evolução do Estado brasileiro por meio de contradições e rupturas históricas, privilegiando o continuísmo e a herança do passado colonial, afeta o entendimento do objeto central do livro. O esforço salutar em revisitar os acontecimentos passados, para investigar a construção da indiferença do brasileiro perante as desigualdades, torna-se indefensável quando, sem uma argumentação convincente, o autor ataca teses bem estabelecidas de nossa historiografia. Como quando retoma a polêmica e combatida visão segundo a qual escravidão e capitalismo no Brasil conviveram no século XIX. Falta grave. Pretender tratar do sistema escravista não pelos 10% de escravos do centro dinâmico, mas pelos 90% de lúmpen, porém libertos, da periferia, é o mesmo que tentar defender que o motor da economia mundial de hoje é a riqueza produzida pelas centenas de milhões de vendedores informais, e não pela acumulação financeira. Na verdade, a revolução capitalista no Brasil só se dá com a libertação dos escravos em seu centro dinâmico, gerando uma massa de assalariados, e permitindo que o excedente antes subutilizado no sistema escravista passe a ser mobilizado na produção industrial, corroendo os alicerces de sustentação da oligarquia cafeeira tempos depois. É esse o processo de que o autor, por enxergar um caráter capitalista na escravidão, é incapaz de dar conta na parte histórica de sua obra.

Consequentemente, tomar a sociabilidade atual como uma herança das relações escravistas é ignorar um conjunto de transformações estruturais que deixaram aquela época rural do país em um passado já muito remoto. Se hoje sobrevivem enormes distâncias sociais, parece ser mais por decorrência de um esforço – muito bem-sucedido, por sinal – das elites conservadoras em impregnar o subconsciente das massas com o seu ideal de meritocracia liberal e de responsabilidade fiscal, do que pela percepção individual da desigualdade.

Ainda que essa mobilização dispensável de elementos de metodologia econômica neoclássica – de forma velada às vezes, mas sempre acrítica, infelizmente – seja recorrente, a nova sociologia econômica que se reflete na obra de Cardoso traz subsídios importantes para a análise empírica das desigualdades, próprias da maneira de pensar de um sociólogo. É justamente aí que reside sua maior riqueza e uma contribuição original para aqueles que buscam uma interpretação para além da economia vulgar. Pois permite avançar no debate da relação entre ética e economia, e traz elementos que ajudam a desvendar as inconsistências da concepção liberal de justiça distributiva, e seu impacto na legitimação de uma ordem social profundamente desigual, a partir da visão do verdadeiro personagem desta história: o povo brasileiro.

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“A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil”. Adalberto M. Cardoso. FGV/Faperj. 404 páginas, R$ 49,00

Pedro C. Chadarevian, professor do programa de pós-graduação em economia da Universidade Federal de São Carlos, é doutor pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. (http://pedrochadarevian.wordpress.com)

Fonte: jornal Valor Econômico