Um dos inúmeros pontos de polêmica a respeito da estratégia a ser adotada pela equipe do novo governo, que deverá tomar posse em janeiro do ano que vem, refere-se à questão da assim chamada “desindustrialização”, processo pelo qual estaria atravessando a economia brasileira.

Atualmente, o tema tem aparecido com bastante freqüência no debate entre os candidatos a cargos importantes na área econômica na futura equipe, servindo muitas vezes apenas para “marcar posição” e estabelecer os limites e as fronteiras entre os diversos grupos de interesse no meio empresarial e mesmo no conjunto da sociedade.

Em primeiro lugar, faz-se necessário trazer um pouco de luz para melhor compreendermos o que se pretende com tal definição. O que viria a ser a tal desindustrialização? Uma das abordagens prioriza o foco na redução da perda relativa do processo industrial face aos estímulos oferecidos às atividades vinculadas a outros setores como o extrativista, o rural e o do agro-negócio. Outra visão, diz respeito ao processo de elevação das importações dos produtos industriais, com a conseqüente redução relativa da importância do parque industrial instalado no território nacional. Finalmente, o conceito surge em um contexto bastante distinto dos anteriores, ou seja, o caso de países que começam a superar a fase da produção industrial e avançam rumo à vanguarda da economia do conhecimento, especialmente graças aos avanços obtidos nos setores de ciência e tecnologia.

No primeiro caso, o fenômeno de referência passou a ser aquele que as analogias do economês começaram a tratar genericamente como a “doença holandesa”. O termo deriva da análise do processo experimentado pela Holanda, com o crescimento de suas explorações de petróleo a partir da década de 60 do século passado. Surfando na onda da dependência extrema de todo o mundo para com o chamado “ouro negro”, houve uma espécie de acomodação rentista da sociedade holandesa, que acabou optando por uma tranqüilidade derivada da exploração de suas reservas petrolíferas e dos ganhos derivados das exportações do mesmo. No entanto, pouco a pouco, percebeu-se que aquilo que inicialmente era visto como uma dádiva, acabou operando como uma espécie de maldição…

Ao invés de utilizar o potencial oferecido pela descoberta de uma riqueza natural para alavancar ainda mais sua economia, a Holanda rendeu-se a uma postura quase passiva de usufruir tranqüilamente das rendas oferecidas pelo petróleo. Atrasou-se na modernização de seu parque industrial e mais tarde deu-se conta de que as exportações de petróleo não conseguiam assegurar um salto à frente de forma sustentável em direção ao longo prazo. Processo semelhante foi experimentado por outros países menos desenvolvidos, cuja economia era dependente de um ou mais fatores de exploração natural, como os países da OPEP no Oriente Médio e a Venezuela aqui na América Latina.

O segundo caso não está diretamente relacionado a uma opção que um país faça por um setor em que consiga retirar maiores vantagens comparativas, como no exposto aqui acima. Na verdade, trata-se de um processo de desindustrialização provocado por decisões de política econômica, que terminam por estimular setores extrativistas e agrícolas, em detrimento da atividade industrial. Em geral, há alguns instrumentos que tendem a ser mais utilizados para a implementação de tal estratégia. Um deles é a política cambial. Com uma taxa de câmbio mais valorizada, os bens produzidos no exterior tornam-se mais baratos e com isso estimulam-se as importações de uma forma geral. No caso de países menos desenvolvidos e com pouca capacidade industrial instalada, o resultado tende a apresentar um aumento no volume de importação de produtos manufaturados. Outra hipótese refere-se à opção por favorecer as atividades de natureza extrativista, agrícola e pecuária, por meio de medidas de estímulos como a concessão subsídios, empréstimos a juros subvencionados, garantia de preços mínimos, etc.

Nesse caso, o conjunto da sociedade é chamada a “colaborar” com tal estratégia, por meio da alocação dos recursos orçamentários para tais setores não industriais e que oferecem o que o economês chama de bens de “baixo valor agregado”. O exemplo típico é o da cadeia que evolui da extração do minério-de-ferro, passa pela produção do aço na indústria siderúrgica e chega na fabricação de máquinas especializadas ou navios na indústria de bens de capital. A cada etapa ocorre agregação de uma porção mais elevada de valor e, obviamente, os países e sociedades que se concentram nas fases finais tendem a se apropriar de mais riqueza gerada em comparação com a simples operação no setor primário. De forma geral, os países que se especializam na oferta de produtos na escala mais “para trás” correm o risco de acabar criando estruturas políticas internas que se acomodam com tal sistema e impedem o avanço da industrialização de ponta.

Nesse ponto, cabe mencionar um caso meio híbrido, mas que chegou a ser considerado como uma espécie de panacéia para o atraso relativo dos países em desenvolvimento, um meio seguro para atingir níveis mais avançados de industrialização. Refiro-me à construção das chamadas “plataformas de exportação” ou “zonas de processamento de exportações” – ZPEs. Esse tipo de modelo estava na base da concepção da nossa Zona Franca de Manaus e vai entrar com mais ímpeto na nossa agenda interna no ano que vem, com o crescimento de propostas de criação de ZPEs pelo Brasil afora, todas em tramitação no Congresso Nacional.

O exemplo mais emblemático dos problemas derivados da adoção de tal estratégia é o caso do México. Combinado ao processo de ingresso no NAFTA (Área de Livre Comércio da América do Norte), o território mexicano foi utilizado para instalação de uma quantidade enorme de empresas multinacionais operando em vários setores, como automobilísticas e de eletro-eletrônica. Contando com facilidades concedidas pelo governo local e operando com remuneração de mão-de-obra a níveis mais baixos do que a média dos países desenvolvidos, o sistema prevê a possibilidade de importação de matéria-prima e equipamentos sem impostos e o estímulo para a exportação dos bens manifaturados. Ficou conhecido em espanhol como o modelo “de las maquiladoras”.

A analogia com a maquiagem refere-se justamente à essência do aspecto operacional: os componentes importados todos entram no México com isenção de impostos e a contribuição local é meramente a montagem numa linha industrial que opera com salários reduzidos e condições de trabalho degradantes. Em seguida os produtos são re-exportados, pois os mercados demandantes estão no exterior – EUA, Canadá e resto do mundo. Assim, o questionamento que fica é sobre a natureza e os benefícios de tal processo de industrialização para o país que o adota. Os balanços demonstram que a maioria da sociedade mexicana pouco se beneficia de tal mecanismo. Pelo contrário, elevou-se o nível das desigualdades regionais, sociais e econômicas. E mais de 90% da produção vai ser consumida no exterior, enquanto a população daquele país continua a viver em condições de extrema pobreza. Ou seja, que industrialização é essa? Quase uma desindustrialização…

Finalmente, há o caso de países que avançam tanto em direção aos setores de ponta da atividade produtiva que terminam por se afastar da própria produção… Trata-se de uma das grandes contradições experimentadas pela sociedade nos tempos atuais. Os processos de maior agregação de valor são altamente intensivos em conhecimento e estão bastante distantes do modelo clássico da produção capitalista do século anterior. Nesses casos, a desindustrialização significa o aumento relativo de participação do setor de serviços de alta complexidade e os setores de elevada tecnologia. Esse tipo de modelo implica a redução da presença das empresas industriais típicas de um processo produtivo que parece estar em processo de superação. Abandonam-se os chamados “processos sujos” e ganham relevância os processos de alta densidade tecnológica e resultados praticamente intangíveis ou de reduzido volume físico. Aqui a tendência à desindustrialização pode ser vista como a construção do caminho para a vanguarda.

No caso do Brasil, o debate atual está mais vinculado aos primeiros casos. Existe muita polêmica, os números e os argumentos são esgrimados em ambos os sentidos. Há economistas e pesquisadores que entendem que o nosso País corre um sério risco de desindustrailização no sentido de “perder o bonde da História”, em função da opção de fortalecimento de atividades ligadas ao chamado setor primário (extrativismo e agronegócio). De outro lado, há os que defendem o modelo, argumentando que o processo que o Brasil está experimentando é mais dinâmico e que não haveria tal risco de desindustrialização, uma vez que sobraria espaço suficiente para a convivência entre os setores “atrasados” acima mencionados e os setores mais modernos associados à indústria.

Como estamos vivendo esse processo que tem características de longo prazo, fica relativamente difícil encontrar respostas absolutas, assim à quente. A forma relativamente suave com que a crise internacional nos afetou entre 2008 e 2009 permitiu a recuperação da atividade econômica e os dados já apontam para um crescimento do PIB superior a 6% em 2010. Os dados relativos ao emprego também demonstram uma tendência à elevação da demanda por parte das empresas. As informações referentes à produção e às vendas no comércio também vão na mesma linha.

A grande dúvida que permanece é relativa ao tipo de modelo que está sendo forjado nessa saída pós-crise. Isso porque não restam dúvidas de que a opção colocada em marcha ao longo dos últimos anos tem contribuído fortemente para a tendência à desindustrialização. Senão, vejamos.

A política monetária de juros elevados praticada pela equipe econômica tem assegurado ao Brasil, de forma persistente, a faixa de campeão mundial da taxas de juros. Com esse patamar estratosférico da taxa SELIC do Banco Central e a prática criminosa dos elevados “spreads” pelas instituições do sistema financeiro, há um verdadeiro desestímulo ao investimento produtivo. A remuneração oferecida pelos que aplicam em títulos financeiros acaba se revelando como mais segura e mais atrativa até do que iniciar um novo empreendimento em nosso País.

A política de valorização da taxa de câmbio do real frente ao dólar, ao euro e demais moedas estrangeiras tem provocado a perda de competitividade da produção nacional, especialmente no setor industrial. Assim, não apenas as exportações brasileiras ficam mais difíceis no mercado externo, como tem se verificado um aumento significativo das importações de produtos industriais. Essa perda de competitividade da indústria brasileira reduz seu ritmo de crescimento e tem provocado um perigoso atraso nas decisões de investimento.

Por outro lado, os setores que mais têm contribuído para a retomada do crescimento tem sido os de baixo valor agregado. Construção civil e o agronegócios são os exemplos mais significativos. A iniciativa do governo com as obras do PAC foi importante para manter a demanda interna acrescida e para gerar novos empregos. Porém, os projetos não estão conseguindo dar conta dos enormes gargalos na infra-estrutura e, principalmente, não operam nessa inflexão da desindustralização. Sobre a dependência do atual modelo face às atividades vinculadas ao “agribusinness”, nem há necessidade de comentar. O próprio nome é explicativo.

Os que não temem pela desindustrialização tentam nos tranqüilizar apontando dados sobre a retomada dos investimentos, os empréstimos do BNDES, as medidas do governo de política industrial, o estímulo ao desenvolvimento na área de ciência, tecnologia e inovação. É verdade! Tudo isso está em ocorrendo, mas os resultados ainda não surgiram, até porque o tempo de maturação é mais longo.

No entanto, o fato é que a política de juros altos continua. E a política de valorização cambial também. Nada mudou, pelo contrário. Comenta-se até que o COPOM poderia aumentar ainda mais a taxa SELIC em sua próxima reunião! Ou seja, o risco de desindustrialização é um dado inescapável da equação a ser enfrentada.

Para finalizar, avanço aqui alguns dados relativos ao encerramento do primeiro semestre desse ano na área de comércio exterior. E a situação não melhorou em quase nada. Verifica-se uma acentuação da perda relativa de posição dos produtos manufaturados no total de exportações. Ou seja, há um crescimento do peso dos produtos primários, de baixo valor agregado. Por exemplo: entre os 25 anos de 1982 e 2007, a média havia sido de 58% de industrializados no total das exportações. Nos últimos 3 anos, essa participação baixou para 49%, 43% e 41%. Quando se analisam algumas informações do lado das importações, a situação também merece preocupação. A participação dos bens manufaturados no total das importações brasileiras ficou na média de 12% ao longo dos últimos 20 anos – com exceção dos anos de câmbio valorizado sob FHC. Já em 2009 e 2010, houve um crescimento significativo dessa participação, saltando para 16% e 17%. Ou seja, algo como se a demanda interna em expansão estivesse sendo atendida por produtos industriais importados. Em síntese: continuamos a exportar bens com baixo valor agregado e a importar cada vez mais produtos manufaturados de maior valor agregado para nosso consumo. A velha estória de nos vangloriarmos de exportar soja, minério de ferro, suco de laranja e carne, ao passo que importamos produtos eletrônicos, computadores, celulares e outros bens de alto valor agregado.

Como se percebe, a questão é complexa e não se pode afirmar com segurança que o processo de desindustrialização seja efetivo. No entanto, parece evidente que qualquer proposta para evitar ou enfrentar tal tendência deve passar pela redução da taxa de juros e por medidas que contribuam para trazer o real a níveis realistas de taxa de câmbio, com algum tipo de desvalorização em relação às demais moedas do mundo.

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Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

Fonte: Carta Maior