“Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido vedado a toda a cidade?”

Fala de Ismênia na tragédia Antígon

Corpos à espera do sepultamento. Familiares à espera de concretizar o luto, de acabar com a incerteza. Almas à espera da travessia do Aqueronte.

Cena 1: o começo ou sepultamento inusitado

Segunda-feira, 18 de maio de 1992. Em Jales, a 600 quilômetros de São Paulo, um caixão fechado é velado na Câmara Municipal. Foi decretado feriado, a cidade inteira está parada. A Câmara está lotada. Presentes crianças e adolescentes, gente de todas as idades. É um dia de sol muito quente, daqueles que nem ferro de marcar. Após o velório, um cortejo segue a pé até o cemitério.

Depois de anos de busca do filho desaparecido, Ruy Thales consegue enterrá-lo. O caixão é finalmente depositado no jazigo da família Berbert. Dentro dele, porém, não havia um corpo. Nem restos mortais. Apenas um terno completo e os sapatos de Ruy Carlos Vieira Berbert, desaparecido desde 1972. Objetos que haviam permanecido até então intocados em seu quarto, para “caso ele voltasse”.

Antes do início das cerimônias, Ruy Thales, o pai, chamou Amélia Teles em casa para tomar um café. Ela estava em Jales representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Ele havia me chamado para o enterro, mas eu sabia que os restos mortais não haviam sido encontrados. Aceitei o convite e não perguntei nada. Ele também não me disse nada”.

Depois do café, o conteúdo do caixão foi revelado. Naquele dia, Amélia foi cúmplice de Ruy Thales. Ninguém, além dos dois, sabia que o ataúde estava praticamente vazio. O pai já estava bastante idoso, e, prevendo que morreria logo, quis enterrar o filho. Mesmo sem ter um corpo. No fim do dia, depois do ato na Câmara e do enterro, deu um jantar para 80 pessoas. “Era uma mesa enorme, parecia um banquete”, conta Amélia. O pai de Berbert morreu pouco tempo depois. Mas conseguiu enterrar seu filho.

Cena 2: Ruy Carlos Vieira Berbert, presente!

O ritual foi a forma encontrada pela família Berbert para acabar com a espera. A maneira de encerrar o luto que já durava 20 anos. Estavam se libertando de um fantasma que, até hoje, assombra a vida de famílias inteiras: filhos, pais, mães e irmãos. Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos.

“Não pode haver aceitação da ideia de que ainda existem mais de 140 brasileiros que muitos vivos sabem onde estão seus corpos ou como seus corpos deixaram de existir”, afirma Paulo Vannuchi, à frente da Secretaria Especial de Direitos Humanos desde o final de 2005.

O caso de Ruy Carlos Vieira Berbert é emblemático. Nascido em Regente Feijó, no interior paulista, em 1947, veio para São Paulo tentar o vestibular da USP. Passou em letras, começou o curso e se tornou militante no movimento estudantil. Mais tarde, passou à luta armada. Em 1969, viajou, pela ALN – Ação Libertadora Nacional, organização de maior expressão no cenário da guerrilha urbana, nascida como dissidência do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e que teve Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira como dirigentes –, para Cuba, de onde retornou como militante do Molipo – Movimento de Libertação Popular, surgido a partir de um racha da própria ALN.

A maioria dos que voltavam do treinamento na ilha socialista já chegava ao Brasil “queimada” e procuradíssima pela repressão. Quando os serviços de informação da ditadura souberam que os integrantes do Molipo estavam se espalhando de forma clandestina para dentro do país, o governo baixou uma ordem exigindo a prisão de todo e qualquer estranho recém-chegado às cidades do interior.

O turista relâmpago

Na virada de 1971 para 1972, Berbert instalou-se em Natividade (na época, em Goiás, hoje, no Tocantins), em uma pequena pensão. No dia seguinte, foi preso enquanto conversava tranquilamente na calçada com a filha do dono do estabelecimento.

A delegacia da cidade era bem antiga. Suas celas possuíam amplas janelas gradeadas que davam para a praça principal. Da janela, o preso conversava com as pessoas que por ali passavam. Em algumas horas, o militante tornou-se celebridade, quase uma atração turística. Ficou conhecido.

Dois ou três dias após sua prisão, baixou em Natividade “o pessoal de São Paulo”, como eram chamados os agentes do DOI-Codi. Nesse mesmo dia, Berbert apareceu enforcado em sua cela. A versão oficial: suicídio.

No dia seguinte, um grande proprietário de terras da região, não muito querido pela população local, também morreu. Os dois corpos partiram em cortejo rumo ao cemitério, seguidos por boa parte dos habitantes daquela cidade. Os agentes da repressão acreditavam que era por conta da morte do latifundiário, mas as pessoas estavam seguindo Berbert, o turista relâmpago, que, embora tivesse ficado tão pouco tempo na cidade, angariou simpatia e admiração, e que, do mesmo jeito que chegou, foi-se embora num piscar de olhos. Enterraram o latifundiário na ala “dos ricos” do cemitério, e o militante, numa vala comum, junto aos indigentes.

A família Berbert passou a ter informações sobre o filho somente através de notícias de jornal. Em 1979, um general ligado ao aparelho repressivo admitiu sua morte em entrevista concedida à Folha de S. Paulo. Na ocasião, dona Ottília, mãe de Ruy Carlos, disse ao grupo Tortura Nunca Mais que gostaria de mostrar a luta constante pela qual passaram, na busca incerta da solução de um passado certo: “Apesar dos fatos comprovarem a quase certeza de sua morte, nós vivemos mais de uma década com a esperança e o sonho de vê-lo novamente”.

Corpo que não era corpo

Apenas em 1991 começaram a obter dados mais concretos. Um atestado de óbito com o nome de João Silvino Lopes foi entregue à Comissão 261/90 da Prefeitura de São Paulo, criada no mandato da prefeita Luiza Erundina, para acompanhar a identificação das 1.049 ossadas encontradas na vala clandestina do cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus. Segundo a versão oficial, Lopes havia se suicidado em 2 de janeiro de 1972, em Natividade. Embora pudesse ser um militante político, seu nome não constava na lista de desaparecidos.

Só um ano mais tarde, em 1992, quando os familiares dos mortos e desaparecidos tiveram acesso aos arquivos do Dops, foi encontrada uma relação elaborada a pedido de Romeu Tuma, diretor da unidade paulista do órgão entre 1977 e 1982. Nela, estava o nome de Ruy Carlos Vieira Berbert com as seguintes observações: preso em Natividade, suicidou-se na Delegacia de Polícia, em 2 de janeiro de 1972. Concluiu-se que João Silvino Lopes era o nome com que fora enterrado Ruy Carlos Vieira Berbert.

Tendo-se como base esse mesmo documento, foi possível saber que seu corpo estava no cemitério de Natividade, mas não em qual local exatamente. Para exumá-lo e fazer a posterior identificação, seria preciso escavar o cemitério inteiro. Membros da Comissão 261/90 explicaram a situação à família Berbert, que, resignada, se contentou com um atestado de óbito, concordando em não fazer a exumação praticamente impossível. O corpo permaneceu no local, mas um enterro simbólico foi realizado na cidade onde seus pais moravam.

Naquele dia, quem passou pela Câmara Municipal de Jales prestou homenagens frente ao caixão vazio de corpo, mas repleto de símbolos. Velaram um corpo que não era corpo, que não sabiam que não era corpo, mas que reverenciavam e o fariam ainda que o soubessem. No cemitério, colocaram a bandeira a meio-pau e cantaram o hino nacional. Tudo isso para o homem que não estava lá.

Quando o filho de dona Gertrudes morreu, ela começou a se interessar em saber mais sobre a sua luta. Já senhora, foi estudar direito e leu todos os livros que pôde sobre a esquerda brasileira. Saiu atrás das pessoas que conheceram seu filho e que com ele militaram. Soube da participação de Frederico Eduardo Mayr na ALN, descobriu que ele foi treinar guerrilha em Cuba e que voltou como militante do Molipo.

Dona Gertrudes participou ativamente da luta dos familiares de mortos e desaparecidos. Conseguiu localizar os restos mortais de Frederico (na vala comum do cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus), pois haviam documentos que atestavam sua morte e o local onde ele havia sido enterrado.

“Dona Gertrudes era capaz de dizer quando seu filho havia sido preso, onde e quem o prendeu, sabia de tudo, mas dizia que, até o dia de enterrá-lo, toda vez que chovia à noite e uma porta ou janela batia, pulava da cama e corria para a porta dizendo ‘é ele, é ele!’”. Quem conta a história é o ministro Paulo Vannuchi. Mayr foi morto sob tortura no DOI-Codi em 1972. Foi enterrado, no Rio de Janeiro, somente 20 anos depois.

“Esse é o tema da espera que gosto de colocar em todas as conversas que tenho, posso ter e terei ainda com o [ministro da Defesa Nelson] Jobim e com chefes militares”. Vannuchi afirma que não entra na discussão da punição dos torturadores. Não diz que não, nem que sim, mas, se o pressionam muito, acaba confessando ser a favor de punir, sim. “Não que punir seja necessariamente enfiar na cadeia, porque significaria enfiar na cadeia octogenários”. Mas defende que essa discussão é tema do Judiciário. O presidente Lula já avisou: o Executivo não entra no debate sobre punição.

“Lula insiste em que eu coordene o trabalho de apoio às famílias, para localizar todas as informações, arquivos e, sobretudo, os corpos. Porque os corpos constituem um problema limiar de uma ideia de barbárie. Essa espera eterna se constitui numa manutenção da violação dos direitos humanos, numa manutenção do crime. A ocultação de cadáveres não está protegida por nenhuma lei de anistia”, diz Vannuchi, que acrescenta: “Às vezes, as famílias se irritam e dizem: ‘temos de obrigá-los a falar onde estão os corpos’.Vamos obrigar com 110 ou 220 volts? Não tem pau de arara, não tem cadeira elétrica. Não tem como obrigar ninguém, o esforço agora é de convencimento. E, nesse sentido, o convencimento é muito difícil quando a imprensa e setores conservadores não ajudam a reforçar esse consenso necessário e nacional de que não queremos discutir quem ganhou ou quem perdeu. Vamos dizer que o Brasil perdeu”.

Narrativa e reconstrução

O regime ditatorial sufocou a cultura, a manifestação, o pensamento, a juventude. Matou e torturou. “Eles vão dizer que, se não houvesse isso, haveria uma ditadura comunista pior ainda”. Para Vannuchi, esse não é o ponto. “Continuemos pensando diferente, vamos debater isso no voto, na universidade. O problema é que não dá pra dizer que o assunto terminou, que está encerrado”.

Segundo ele, não adianta colocar uma pedra em cima. “É preciso acabar com a ocultação de cadáveres e, se não houver cadáver, é preciso construir uma narrativa oficial, formal, com um pedido oficial de desculpas feito pelo presidente da República e pelo ministro da Defesa, ou os chefes das três armas”.

Vannuchi cita o caso de Ulysses Guimarães. Até hoje, não encontraram seu corpo. Porém, há uma reconstituição do acidente. Ele estava em um helicóptero, sobrevoando o mar de Angra dos Reis no dia 12 de outubro de 1992. A aeronave caiu no oceano – a hora exata do acidente pode ser informada –, foram detectados os problemas que a fizeram cair e foram encontrados os corpos de todos os outros passageiros à bordo: sua mulher, o senador Severo Gomes e esposa, e o piloto.

A narrativa e a reconstrução do momento permitem afirmar que, mesmo sem terem achado o corpo, ele está morto. Sem o corpo e, pior, sem a narrativa e a certeza da morte, resta a dúvida: “e se fulano foi torturado até perder a consciência, teve uma amnésia e está encostado em um asilo ou abrigo?”, indaga o ministro.

“A narrativa é importante para encerrar esse processo de espera que se caracteriza como crime continuado e violação de direitos continuada. Essa incerteza, essa angústia, produz situações como a de dona Gertrudes. Tem que haver uma narrativa. Sem ela, não existe nenhuma certeza. E sem a certeza, os familiares não podem processar o luto. Isso tem que acabar, os familiares de desaparecidos não podem legar aos seus filhos essa espera”.

Cena 4: o ritual necessário ou a travessia de Caronte

O ministro sabe o que está dizendo. Segundo Carl Gustav Jung, um dos “pais” da psicologia analítica, para lidar com o imponderável, de nada adianta ao homem seu pensamento lógico e sistematizado que explica o mundo. Em situações em que o desconhecido, o incompreensível e o inexprimível estão envolvidos (no caso, o desaparecimento de familiares), a instância simbólica se compõe como a única solução. Apenas os rituais permitem ao homem, de alguma forma, participar do fenômeno e vivenciá-lo de fato.

A busca incansável dos familiares pelos corpos dos desaparecidos está ligada à instância simbólica. Racionalmente, há muito pouca diferença entre ter ou não o corpo, a prova concreta dessas perdas. Simbolicamente, no entanto, isso representa muito mais do que uma prova; o corpo sem vida é a passagem para o que Jung chamou de participação mística, que permite à pessoa enlutada transformar o momento de dor e melancolia em verbo, significá-lo, fazê-lo acontecer.

Por isso, a situação dos familiares de desaparecidos políticos, de nutrir uma esperança sobre a morte, é pior do que o luto, “uma tristeza inteira”. Aquilo que não pode ser definido e não pode ser falado, não se concretiza. Somente a simbolização poderia fazer essa ponte, o que, nesse caso, só poderia ocorrer com um enterro dos corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Os familiares se certificariam de sua perda e concretizariam a morte, pondo fim à eterna angústia da incerteza.

A necessidade de rituais fúnebres está tão arraigada no imaginário da humanidade que já existia na mitologia grega. O barqueiro Caronte tinha a função de atravessar as almas para a outra margem do Aqueronte, o rio dos Mortos. Porém, só transportava as dos que tinham tido seus corpos devidamente sepultados.

Segundo essa lenda, as almas dos que não haviam sido sepultados não podiam atravessar o rio, e estavam condenadas a vagar pela margem do Aqueronte durante 100 anos.

A história dos irmãos Petit é um caso emblemático, dos três que foram para a Guerrilha do Araguaia em 1970, até hoje apenas um foi encontrado

Cena 5: sobre Penélope e Antígona – Laura Petit tem 63 anos. Viu seus irmãos, pela última vez, em 1970. Viveu e vive a melancolia até hoje. Espera até hoje. Assim como Antígona, quer enterrar seus irmãos, para que eles não sejam obrigados a vagar durante um século às margens do rio dos Mortos. Como Penélope, que aguardava seu Ulisses, Laura espera a abertura dos arquivos da ditadura, espera respostas, e a punição dos responsáveis.

Eram em quatro: Lúcio, o mais velho, Jaime, ela e Maria Lúcia, a mais nova.
O pai deles morreu antes de Maria Lúcia nascer. Era administrador de uma fazenda de café perto de Jaú, no interior de São Paulo, quando um de seus capatazes o assassinou. A mãe, de então 28 anos, ficou viúva cedo e com quatro filhos pequenos.

Permaneceram por um tempo onde viviam, na fazenda que pertencera aos parentes da escritora Hilda Hilst, numa cidade hoje chamada Itapuí. A família do pai das crianças ofereceu à mãe uma casa que havia sido do avô delas, em Amparo. E para lá se foram, os cinco. Lúcio e Jaime, os mais velhos, fizeram o primário na cidade e Laura começou a estudar por lá. Moraram ali durante quatro ou cinco anos. Era uma casa enorme, com um quintal muito grande também. Clóvis, o quinto irmão, nasceu do segundo casamento da mãe.

“As lembranças são boas. Crescemos juntos, todos tínhamos quase a mesma idade.
Lúcio sempre se destacava, porque era muito inteligente, e a professora lá de Amparo ficava admirada. Ele surpreendia”, conta Laura. De Amparo, mudaram-se de novo, dessa vez, para Bauru, onde o avô materno administrava uma fazenda.

Ali, Lúcio começou a fazer o ginásio e a mãe, sozinha e sem apoio da família do pai, começou a ter dificuldade para manter os quatro filhos estudando. Decidiu: “os meninos vão continuar estudando e as meninas vão parar”. Mais tarde, escreveu para um tio das crianças que morava em São Paulo, que aceitou receber Laura e custear seus estudos.

Que nem a Emília – “Nas férias, eu reencontrava meus irmãos. Eu sentia falta, porque éramos muito unidos. Nessa fase que minha mãe passou dificuldade para comprar material escolar para quatro filhos, o Lúcio a ajudava. Tinha um esquema de escolher café em casa. Era trabalho doméstico infantil”. Laura ri quando conta que a mãe punha todo mundo numa mesa grande para tirar graveto e escolher o café. E recorda: “Uma coisa que foi o traço mais forte de Lúcio era o de sentir e perceber as diferenças. Um dia, estávamos na casa do meu avô em Amparo com relativo conforto, depois, estávamos passando necessidade. Ele teve que trabalhar ainda criança, ajudar a mãe a criar os irmãos. Com certeza, sentiu isso”.

Em Bauru, a família Petit morava perto da estação de trem, por onde passavam a pé na volta da escola. Lá, havia um armazém de cargas coberto, sob o qual paravam ciganos e “um pessoal que rodava o mundo”. Um dia, Lúcio viu um homem negro e muito, muito pobre, que levou para casa. Lá chegando, deu a ele um prato de comida, mesmo diante das dificuldades da família. Depois, buscou uma caixa de ferramentas e pegou um alicate para tirar, do sapato do homem, um prego que estava machucando seu pé. “Eu era bem pequena na época, mas aquilo ficou muito marcado em mim. O Lúcio era assim, solidário e fraterno com o sofrimento alheio. Em termos de caráter, tinha essa coisa de partilhar, de ser solidário, e, por isso, dá para entender porque mais tarde lutou contra uma ditadura opressora e por um mundo melhor onde todos fossem iguais”.

Laura estudava em São Paulo, Lúcio em Minas Gerais e Jaime no Rio, cada um na casa de um tio ou parente que aceitara custear seus estudos. Maria Lúcia e Clóvis, os mais novos, ficaram com a mãe em Duartina, cidade para a qual haviam se mudado recentemente. Nas férias, os três primeiros se encontravam em São Paulo, na estação da Luz, e tomavam o trem até lá, onde se reuniam com os irmãos menores e a mãe durante o mês inteiro, até a volta das aulas.

“Nessa época, na escola, as professoras falavam que a Maria Lúcia era muito crítica. Ela lia e discutia muito. Meus irmãos, que vinham de fora, traziam as discussões para dentro de casa. Ela leu a coleção do Monteiro Lobato inteira e era ‘perguntadeira’ que nem a Emília”.

Pela última vez – Mais tarde, com Lúcio e Jaime formados em engenharia, Laura cursando ciências sociais e Maria Lúcia tendo acabado a escola, os quatro juntaram-se outra vez em São Paulo. Mas não por muito tempo. Lúcio e Jaime tornaram-se militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 1967. Maria Lúcia entrou para o partido ainda como estudante secundarista.

Em 1968, Jaime, que havia sido preso por alguns dias por conta do 30º Congresso da UNE e fichado pelo Dops, foi chamado para depor. “Já havia muita repressão. Ele ficou com medo de ser interrogado e preso, então, a partir daí, entrou na clandestinidade. Ele não veio para nossa casa, porque podia ser procurado”.

Mais tarde, Laura ficaria sabendo que ele se hospedara na casa de uma tia-avó, na zona Norte paulistana. As filhas dessa tia-avó contaram que haviam sido recomendadas a não comentar com ninguém que ele estava lá. “Ele só saía à noite, para reuniões. Foi aí que o partido o mandou para o interior, mas não podia nos dizer onde por questões de segurança”.

Quando Jaime ia a São Paulo para reuniões, visitava a irmã. Não podiam trocar cartas, mas, mais tarde, Laura soube que ele morou em Goiás. Os três Petit foram para o Araguaia, para a região onde seria instalada a guerrilha, em princípios de 1971. Laura os viu pela última vez, em datas distintas, em fins de 1970.

Maria Lúcia ainda não estava clandestina quando foi para o Araguaia. Trabalhava com Laura em uma escola municipal. “Prestamos os primeiros concursos da Prefeitura para o cargo de professora. Ela tinha acabado de sair da escola e passou. Foi efetivada e escolhemos o mesmo lugar para trabalhar. Ela queria ainda estudar medicina, tinha muitos planos, mas, depois, a vida a levou para outro lado. As coisas mudaram”, conta.

Cena 6: a ditadura que não era branda – Maria Lúcia deixou São Paulo no começo de 1970, e Lúcio, no final do mesmo ano. Ele tampouco estava clandestino: trabalhou como engenheiro até partir. No período de preparação da guerrilha, Maria Lúcia, frequentemente doente de amidalite, fez uma operação e se preparou como pôde. “Eu sabia que ela ia para algum lugar, mas não sabia para onde”, conta Laura.

Sua irmã se despediu no começo de 1970, mas voltou em dezembro, para as festas de fim de ano. “Ela ficou alguns dias na minha casa e, depois, visitou nossa mãe em Bauru. Veio para reuniões do partido. Na noite do reveillón, as irmãs se juntaram “ao pessoal da USP” e foram para o samba no Camisa Verde e Branco, na Barra Funda.

“Nessa época, eu estava grávida, meu filho nasceria em fevereiro. Na hora de se despedir, Maria Lúcia disse: ‘ainda bem que eu não vou conhecer meu sobrinho, seria uma pessoa a mais para sentir saudades lá’”. E se foi mais uma vez. E, mais uma vez, Laura não sabia exatamente para onde. Só sabia que era um lugar quente e com muitos insetos: “quando ela veio, estava muito morena de sol e tinha picadas de pernilongo pelo corpo inteiro”.

A partir de então, Laura não tinha mais contato direto com os irmãos. “Um mensageiro trazia as cartas, eu respondia, e ele as levava de volta. Eu não sabia onde estavam, não tinha nenhuma dica. Esse mensageiro era da direção do partido. Eu o conhecia como Antônio”.

O Exército chegou ao Araguaia em abril de 1972. “Ele nos trouxe a notícia. Não era o momento exato, mas a guerrilha havia começado”. Ainda estava em fase de preparação, mas fora descoberta. Antônio explicou que era difícil circular pela região. Laura ficou sem notícias dos irmãos, mas, agora, sabia onde eles estavam.

“Em 73, vi em um jornal pendurado em uma banca com uma foto imensa estampada na capa: Antônio estava morto. Eram aquelas versões inventadas: tentativa de fuga, morto em confronto com a polícia ou outras alegações do gênero. Já sabíamos que não teríamos mais sequer as notícias dele. A partir daí, ficamos sabendo que Antônio era Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB”. Ele havia sido morto sob tortura, no DOI-Codi.

Sofrer em silêncio – “Pegamos todos os documentos do partido, fotos dos meus irmãos, o jornal A Classe Operária e meu marido levou numa ponte do Tietê e jogou tudo rio abaixo. Como o Antônio vinha em casa, a qualquer hora poderiam aparecer. Foram livros do Marx, do Lênin e tudo que era considerado ‘subversivo’”.

Laura ficava preocupada com a falta de notícias. “Em fins de 1968, depois de decretado o Ato Institucional número 5, o AI-5, a ditadura nunca foi ‘ditabranda’. A situação estava feia. Pode ter sido branda para quem ficou assistindo televisão, que veiculava as propagandas do governo do tipo ‘este país vai pra frente’ ou ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Para quem sentiu na pele a repressão, sabe que de branda a ditadura não teve nada”.

Em 1973, Laura foi visitar a mãe em Bauru. Quando voltou, seu marido disse que tinha uma notícia muito ruim. Contou que havia encontrado Regilena de Aquino. Ela, que também havia participado da guerrilha, mas que estava de volta, pois havia se entregado ao Exército, fora casada com Jaime, seu irmão.

Regilena havia contado com detalhes que Maria Lúcia estava morta. Ela fora à casa de um camponês do Araguaia, seu “compadre”, João Coioió, que lhe havia comprado mantimentos. Maria Lúcia se tornaria madrinha de seu filho. Combinou de ir à casa logo cedo, com mais dois companheiros, Miguel Pereira dos Santos, conhecido como Cazuza, e Rosalindo de Souza, vulgo Mundico, que a ajudariam a carregar os mantimentos. Quando estava chegando, recebeu um tiro na altura da bacia e outro na cabeça. Os militares estavam na casa e a executaram assim que ela se aproximou. Seus companheiros conseguiram escapar.

Laura conta que, no momento em que soube da morte da irmã, teve que ficar calada. Sofria em silêncio e chorava às escondidas. Não podia compartilhar seu luto nem contar da morte da irmã aos amigos mais próximos.

Como um processo doloroso de espera durou cinco anos, mas poderia ter durado apenas 15 dias. Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos

Cena 7: será Maria Lúcia? – Quase 20 anos depois, em 1991, acharam ossadas do Araguaia. A irmã de João Carlos Haas, militante do PCdoB que também esteve na guerrilha, obteve indicações de moradores da região de que seu irmão estava enterrado no cemitério de Xambioá, no Tocantins. A Comissão de Justiça e Paz da Prefeitura de São Paulo foi até a região, acompanhada de uma equipe de legistas da Unicamp.

No lugar da escavação em busca de restos mortais de João Hass, foi encontrada, envolta em um paraquedas, uma ossada de uma mulher que teria entre 20 e 24 anos. Junto, estavam os projéteis de uma metralhadora de uso militar. Na ocasião, Fortunato Badan Palhares, à frente da equipe de legistas, afirmou, em entrevista à TV Manchete, que certamente era uma guerrilheira, principalmente porque tinha uma coroa de dente tratada. Se fosse uma moradora da região, não teria tratamento dentário nem tipo algum de prótese.

A informação chegou à Laura Petit. Os restos mortais encontrados talvez pudessem ser de sua irmã. A ossada foi levada à Unicamp. “Na volta do cemitério de Xambioá para São Paulo, Badan Palhares parou em Brasília e conversou com Romeu Tuma. Consta que, nessa época, Tuma teria recomendado a Palhares que não identificasse ossadas de nenhum guerrilheiro do Araguaia. Assim, a atitude dele mudou completamente depois daquela primeira entrevista para a TV Manchete”, conta Laura.

Nessa época, Luiza Erundina, prefeita de São Paulo, deu muito apoio à comissão de familiares. Selou um convênio para que o Departamento de Medicina Legal da Unicamp fizesse identificações de ossadas.

História da carochinha– “Fui umas três vezes até a Unicamp levar fotos e outras coisas que pudessem ajudar na identificação da ossada. Mostrei fotos da Maria Lúcia e o depoimento da Regilena dizendo como ela estava vestida no dia em que foi morta: com uma calça de brim e um cinto de couro com fivela de metal. Portava uma cartucheira de 20mm e uma espingarda de caça. Como estavam no meio da mata, tinham que caçar para comer”, lembra.

“Cheguei à Unicamp um dia cedo, e o Palhares não estava. Fiquei esperando até às dez horas da noite. Ele tinha ido a Vinhedo ver uma santa que chorava para fazer a perícia. Chegou tarde e me atendeu muito rapidamente. Já chegou falando: ‘não, não é sua irmã, o cabelo que tem aí é claro. Na foto que você me trouxe, ela tem cabelo escuro. Essa mulher que está aí dentro tem cabelo encaracolado, o que não era o caso da sua irmã!’. Ele tentou me contar uma história da carochinha: ‘você ainda vai encontrar sua irmã, não se preocupe’. Como se eu não tivesse certeza absoluta de que ela tinha sido executada. E ainda gritou comigo: ‘o cabelo que está aí é claro, você quer ir lá dentro ver?’. Imagine se eu, sendo irmã, às dez horas da noite, cansada e impactada pela expectativa, diria ‘sim, eu quero que você me mostre’. Recuei: ‘não, agora, não’. Como é que, sem preparo algum, eu poderia entrar naquela sala e olhar? Não sou uma técnica de Instituto Médico Legal!”. Laura conta que Palhares nunca deu a possibilidade de se fazer um exame de DNA. “Eu era a irmã dela e nossa mãe ainda estava viva quando a ossada foi encontrada”.

Badan deixou o caso de lado por um tempo, e, além disso, Laura estava passando por um período muito difícil. Em 1990, perdeu a filha caçula, de então quatro anos de idade. Em 1991, quando houve a exumação e a possibilidade de identificar a irmã, ainda estava muito impactada pela perda da menina. Foi algumas vezes até a Unicamp e não teve retorno algum. “Ainda disse a Palhares que conhecia o dentista que havia tratado o dente da Maria Lúcia. Eu poderia procurá-lo. E ele falou: ‘procure e me traga as radiografias’. Fui até Bauru atrás do Dr. Tanaka e pedi as radiografias. Ele disse que, depois de mais de 20 anos, não tinha mais nada de Maria Lúcia, mas que, apesar disso, lembrava direitinho do trabalho feito. Nossa mãe não tinha muito dinheiro para uma coroa de ouro, então ele fizera de outro metal. Afirmou ser capaz de reconhecer o dente, porque o trabalho de prótese é quase artesanal. Quando contei ao Badan Palhares, ele afirmou que só aceitava receber o dentista com as radiografias em mãos”.

Estado que ainda mata – Em abril de 1996, o jornal O Globo publicou uma grande reportagem, durante uma semana, sobre a Guerrilha do Araguaia. Um militar entregara todas as suas anotações com fotos e fatos sobre os enfrentamentos entre as forças da ditadura e os militantes do PCdoB. Uma das autoras da reportagem foi a São Paulo à procura de Laura.

Queria que ela reconhecesse Maria Lúcia. “Era uma foto da Maria Lúcia deitada em um paraquedas com um saco plástico cobrindo seu rosto. Eu reconheci, claro que era a Maria Lúcia. E aparecia a calça de brim e o cinto com fivela de metal que estavam com a ossada na Unicamp. Além disso, aqueles restos mortais haviam sido achados envoltos em um paraquedas”.

Depois de ver as fotos, Laura voltou para casa. Estava atordoada, desolada. Viu a irmã morta, lembrou-se da filha que havia perdido e ficou, então, comparando o que as duas tinham de parecido. “A Maria Lúcia era ligeiramente estrábica, usava óculos desde pequena e minha filha também precisou usar, desde bebê”. Quando chegou em casa e ligou a televisão, o noticiário anunciava: 17 de abril de 1996, no sul do Pará, 19 sem-terra foram mortos pela polícia. Era o massacre de Eldorado dos Carajás. “Pra mim, aquilo foi muito, muito forte. Ligo a televisão e vejo PMs armados, praticamente na mesma região, matando camponeses. Dezenove deles. Lembro que, na ocasião, pensei: ‘puxa vida, este país está como anos atrás’. Tinha acabado a ditadura e o Estado continuava matando”.

Cena 8: é ela, é ela! – Depois de publicada a matéria, a jornalista d’O Globo mandou à Laura as fotos de Maria Lúcia ampliadas. “Fomos com a comissão de familiares até a Unicamp. Chegamos com as fotos e, a nós, se juntou uma comissão grande de estudantes da Unicamp, para colocar o Badan contra a parede. Tinha imprensa e tudo mais. Quando ele chegou e viu aquela movimentação toda, acuado, falou, naquele tom professoral típico dele, que só receberia a mim e a meu marido”.

Badan viu as fotos e, finalmente, falou que faria a identificação, “pois, agora sim, tinha indícios. Eu deveria até trazer o dentista de Bauru”, conta Laura. Sua ida à Unicamp foi perto do dia 2 de maio de 1996. Em 15 de maio, o legista convocou uma entrevista coletiva para anunciar à imprensa e à sociedade a identificação de Maria Lúcia. “Ele fez, em 15 dias, o que havia demorado cinco anos para fazer”. Depois do caso PC Farias e das ossadas de Perus, o Departamento de Medicina Legal da Unicamp foi fechado por processos administrativos. “No caso PC Farias, ficou muito claro o caráter desse homem”, diz Laura.

A família Petit esperou até 16 de junho para fazer o traslado dos restos mortais da Unicamp ao cemitério. Maria Lúcia havia sido morta em 16 de junho de 1972. Foram 24 anos para ser encontrada, identificada e enterrada. Mais tempo do que ela viveu. Foi morta aos 22 anos.

“Nessa época, minha mãe disse que passaria, então, a esperar para poder sepultar seus outros dois filhos, mas, infelizmente, faleceu antes de fazer isso. Ela viveu uma espera eterna. Não conseguiu sepultar os outros dois filhos, não conseguiu que os arquivos fossem abertos nem que o governo devolvesse às famílias os restos mortais”, conta.

Vida suspensa -“Durante todo esse tempo, eu pensava, diariamente, se era ou não era minha irmã e o que poderia ser feito. É uma angústia constante, que não te deixa nunca. Depois de todas as negativas do Badan, ficamos esperando ver se alguma coisa nova acontecia. Por isso, é cada vez mais necessária a abertura dos arquivos da ditadura. O simples fato de esse militar que não se identificou entregar seus arquivos possibilitou a identificação da Maria Lúcia”, diz Laura, que indaga: “Quantos outros desaparecidos não poderiam ser localizados e identificados para que as famílias pudessem encerrar esse luto eterno? O luto é uma tristeza muito grande, mas que podemos compartir socialmente. Choramos e depois começamos a tocar a vida de novo. No nosso caso, não conseguimos concretizar a morte, porque não temos um corpo para chorar. Não encerramos esse período de luto. Não é uma tristeza, é uma melancolia que passa a nos acompanhar a vida toda. Ficamos com a vida truncada. Suspensa”.

Até a Lei de Anistia, Laura acreditava que Jaime e Lúcio poderiam estar vivos. “Eu tinha a esperança, sobretudo, que o Lúcio voltaria. Diziam que ele era um mateiro muito experiente. Durante a infância toda, tinha pescado nos rios perto de onde morávamos. Eu pensava que ele poderia ter caminhado, caminhado, até chegar à fronteira com algum país. Eu tinha um primo muito companheiro da gente na juventude. Um dia ele foi à Salvador e voltou dizendo que havia visto o Lúcio por lá e que ele tinha passado reto e fingido que não o conhecia. As pessoas ficam nessa coisa, nesse sebastianismo: eu vi em tal lugar, eu sei que vai voltar”.

Cena final: 30 anos depois ou procura-se – Segundo relatos de um camponês da região na época da guerrilha, Jaime foi morto pelos militares. Estava sozinho em uma cabana, magro, com feridas de leishmaniose e sem munição. Abriram fogo contra a cabana, uma fumaça se levantou com a poeira do chão e, quando foram ver, o corpo de Jaime estava “esbagaçado” pelos tiros. Depois de morto, ainda teve a cabeça cortada para identificação e o corpo foi enterrado no local. A cabeça foi colocada em um saco e entregue ao chefe da operação na região, o doutor Augusto.

Já Lúcio foi preso, interrogado durante três dias e “foi feito” no dia de Tiradentes, 21 de abril. Na última foto em que se acredita que Lúcio aparece, ele está dentro de um helicóptero, provavelmente sendo levado para o “voo da morte”. Os prisioneiros eram levados para longe e executados.

Até hoje, nenhuma notícia deles. Nenhuma certeza. E Laura é apenas uma das pessoas que seguem esperando. Hoje, no Brasil, são 144 os desaparecidos políticos. Como definiu Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, “são os fantasmas que voltam sempre. São os fantasmas que querem lembrar que não podem ser esquecidos”.

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo

E deixar seu corpo descansar

Trecho da letra da música “Angélica”, de Chico Buarque.

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Fonte: revista CartaCapital