É comum o argumento de que a economia chinesa cresce muito porque sua taxa de poupança é alta. Já no Brasil poupa-se pouco e, por isso, seu crescimento requer a absorção de poupança externa, que se manifesta por meio de déficits em transações correntes. A ideia de que a poupança é um pré-requisito para o investimento não é consensual.

Keynes mostrou que a poupança decorre da renda, que resulta do investimento. O investimento não depende da poupança, mas, sim, do crédito de curto prazo demandado no intervalo de tempo entre a decisão de investir e sua implementação. Essa demanda de crédito (”finance motive”) é satisfeita por meio de arranjos financeiros de débito e crédito que não necessariamente têm como lastro a poupança. A crise do subprime é um exemplo desse “modus operandi” da economia, na qual a esfera financeira se descolou da esfera real. O adiantamento de recursos a partir de arranjos financeiros viabiliza o investimento, a geração de renda e poupança, cujo papel é o de superar a fragilidade financeira criada para credores e devedores quando aqueles concederam o crédito para o investimento.

Se for assim, a China poupa muito porque investe muito. No Brasil ocorre o oposto. Aqui os investimentos privado e público são baixos. O governo investe pouco porque boa parte de sua arrecadação se destina ao consumo e pagamento de altas taxas. Mas, por que no Brasil há absorção de poupança externa (déficit em transações correntes), enquanto na China há superávit em conta corrente? A resposta para essa questão remete a outra controvérsia.

Podem-se apontar duas causas do déficit em conta corrente. A apreciação da taxa de câmbio real (mudança de preços relativos dos bens “tradables” em comparação com os “nontradables”), afeta o saldo em conta corrente. Há, também, a tese dos déficits gêmeos. Ou seja, o investimento corresponde ao aumento do estoque de capital físico da economia e é contabilmente igual à soma das poupanças nacional e externa. A poupança nacional tem como contrapartida a produção de capital que irá satisfazer a demanda de investimento. Se o déficit público implica aumento do consumo para dado nível de renda, argumenta-se que haverá insuficiência da poupança nacional em relação ao investimento. O resultado é a absorção de poupança externa (déficit em conta corrente). Porém, o mecanismo que faria esse processo se manifestar não é claro.

Tavares et alli (1982, pág. 35. In: Tavares, M.C. e David, D. (org). A economia política da crise, RJ, Vozes) argumentam que tal processo não ocorre já que o aumento da absorção doméstica não transforma bens de capital destinados à produção de bens de capital em bens de capital destinados à produção de bens de consumo. Nesse caso, o déficit público não reduz a disponibilidade interna de bens de capital requeridos para o investimento e, então, seria falsa a tese dos déficits gêmeos (insuficiência de poupança nacional). Porém, esse argumento não vale para a economia aberta. Se a alteração na absorção doméstica é acompanhada de mudança dos preços relativos haverá mudança na oferta de bens de investimento, alterando a poupança nacional. Com a depreciação (apreciação) da taxa de câmbio real a poupança nacional pode ser ampliada (reduzida).

O aumento da absorção doméstica acima de uma dada taxa de crescimento do produto potencial, quando acompanhado de apreciação da taxa de câmbio real, reduz as exportações líquidas, inibindo a oferta de bens de investimento (bens de capital) que ocorre por meio de importações, num contexto de equilíbrio externo. Para que tal oferta não se reduza, torna-se necessário manter o nível das importações de bens de capital, apesar da queda das exportações líquidas, deteriorando-se o saldo em conta corrente.

Resende (2009, Déficits Gêmeos e Poupança Nacional, Revista de Economia Política) demonstrou que não é sempre que o déficit público causa apreciação da taxa de câmbio real e déficit externo, mesmo na ausência de equivalência ricardiana e “crowding out”. Assim, é um falso dilema a controvérsia sobre as causas do déficit em conta corrente: o déficit público pode ensejar o déficit em conta corrente quando provoca apreciação do câmbio real. A apreciação cambial implica insuficiência de poupança nacional em relação ao investimento e, também, deterioração do saldo em conta corrente. Mas esta última decorre da insuficiência de poupança nacional ou da apreciação cambial?

O investimento gera renda e, via multiplicador dos gastos, gera a poupança na economia fechada. Na economia aberta, esse papel do investimento também é exercido pelas exportações, que geram renda e poupança. A receita das exportações é usada para importar bens de capital, ou seja, tudo se passa como se as exportações fossem a própria produção doméstica de bens de capital (poupança nacional). Quando a taxa de câmbio real se aprecia, surgem de modo simultâneo deterioração do saldo em conta corrente e queda da poupança nacional, estando ambos os processos associados à contração das exportações líquidas. Uma vez que elas se reduziram após a apreciação cambial, não haverá mais a troca de bens exportados por importações de bens de capital, ao menos parcialmente. Após a apreciação cambial parcela das importações de bens de capital (parcela do investimento) terá sua correspondência na absorção de poupança externa (déficit em conta corrente). Do ponto de vista do resto do mundo (parceiros comerciais), suas exportações líquidas terão aumentado após a apreciação do câmbio real no país doméstico. Isso quer dizer que o investimento precede a poupança, mas, após a apreciação cambial parcela do investimento (importações de bens de capital) do país doméstico passou a estimular a formação de poupança no resto do mundo e deixou de estimular a formação da poupança no país doméstico.

Esse é o caso do Brasil. Não se trata de insuficiência de poupança. Dado o nível do investimento doméstico, o câmbio apreciado enseja déficit em conta corrente estimulando a formação de poupança no resto do mundo a partir do investimento doméstico, enquanto o estímulo sobre a renda e sobre a poupança brasileira fica reduzido. Eis porque, no Brasil, a reduzida taxa de investimento convive com uma taxa de poupança doméstica ainda menor e com absorção de poupança externa. Na China, o câmbio depreciado produz um resultado diferente.

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Marco da Cunha Resende é professor de economia do Cedeplar/UFMG e diretor da Associação Keynesiana Brasileira

Fonte: jornal Valor Econômico