Os ingleses vão às urnas neste dia 6 de maio para eleger seus representantes e, indiretamente, escolher seu primeiro ministro.

Na corrida, os tradicionais partidos que polarizam a política inglesa desde o século passado: trabalhistas e conservadores.

A disputa parecia, como sempre foi (os ingleses são um povo que adora tradições), concentrada entre os candidatos Gordon Brown (Partido Trabalhista) e David Cameron (Partido Conservador).

Mas eis que surge uma surpresa, chamada Nick Clegg (do Partido Liberal). Clegg fez uma pregação incisiva e convincente contra a mesmice que condena os ingleses a ficarem alternando-se entre as duas opções tradicionais – e mesmo assim, tais trocas têm levado mais de uma década para acontecer. Os conservadores, com Tatcher e Major, permaneceram quase 20 anos à frente do governo (Tatcher, de 1979 a 1990, Major, de 1990 a 1997). Os trabalhistas vieram na sequência e estão completando 13 anos de governo (começando com Blair, em 1997, e Brown, desde 2007).

Surpresa maior foi que os liberais tomaram para si a tarefa de defender os benefícios da imigração e a propor uma política muito menos agressiva do que a propugnada pelos conservadores e menos restritiva que a dos trabalhistas. Não se pode dizer que os liberais se apresentaram como a alternativa de esquerda (aí seria surpresa demais), mas, justiça seja feita, foram mais corajosos em enfrentar a xenofobia explícita ou enrustida de muitos ingleses.

A questão (ou o “problema”) dos imigrantes rapidamente foi alçada ao centro da disputa. Primeiro, porque, graças a ela, Clegg ganhou o primeiro debate eleitoral no qual os três candidatos se enfrentaram. Diga-se de passagem, o primeiro debate da história britânica que os candidatos fizeram olhando para o público, bem ao estilo das eleições presidenciais. Acostumados a debates semanais no parlamento britânico, ao qual o próprio primeiro ministro comparece e faz seu embate a poucos metros dos narizes dos adversários, os ingleses até então não haviam sentido a necessidade de discutir separadamente a eleição do primeiro ministro. A vantagem de Clegg no primeiro confronto passou a ser vista como o principal adversário dos dois maiores partidos. Resultado: nos debates seguintes, trabalhistas e conservadores escolheram Clegg e a imigração como alvo prioritário.

O tema ocupou o centro do debate, nas últimas semanas, e os ânimos afloraram. Entra em cena, então, a senhora Gillian Duffy, que tornou-se uma personagem emblemática da campanha, depois que interpelou Gordon Brown. A Srª Duffy tem, em sua vantagem, o semblante vincado pelas marcas do tempo e a imagem inofensiva que em geral atribuímos a pessoas de 65 anos, talvez porque venha à nossa memória figuras como a de nossas avós. Mas sua mensagem a Brown era das mais ásperas, para dizer o mínimo. A Srª Duffy associou a imigração ao crescimento dos índices de criminalidade, e foi nestes termos que ela partiu para cima do atual primeiro ministro.

Brown cometeu o pecado ricuperiano (de mesmo de Ricupero, ex-ministro da Fazenda no Governo Itamar Franco) de falar com o microfone aberto quando pensava que ninguém o estava ouvindo: “quem foi que teve a ideia de me colocar pra falar com essa mulher?” “Ela parece um tipo de fanática”. A atitude do trabalhista foi retratada como indelicada, como gafe (pois é, lá também usam a expressão), como ato falho, como desrespeito ao eleitor e coisas piores. Ninguém até agora se deu ao trabalho de qualificar a Srª Duffy por suas declarações. Afinal, a imagem que ela conseguiu expressar dos imigrantes, em tão pouco tempo, demonstram uma carga de preconceito e xenofobia suficiente para que dessemos a ela qualificações nada româticas. No entanto, de repente, não mais que de repente, a imprensa inglesa a transformou num símbolo do cidadão humilde destratado diante do poder.

Devemos aos ingleses terem feito, mais de cem anos antes dos franceses, uma grande revolução, com direito, inclsuive, a decapitação de rei, com uma bela declaração de direitos (Bill of Rights) e um final que apelidam de “glorioso” (Revolução Gloriosa). Ali também se estabeleceram alguns mecanismos fundamentais de controle do poder que depois se tornaram a regra da organização dos estados nacionais, virando a página do absolutismo.

Mas a Srª Duffy tem menos a ver com esta história gloriosa e mais com o desejo do inglês tradicionalista de manter sua Grã-Bretanha como uma ilha a prova de invasões. No passado glorioso, contra a “invencível” armada espanhola, contra Napoleão e, finalmente, contra os nazistas. Agora, a ameaça de “invasão” é de uma onda de imigrantes do Leste europeu, cujo ingresso foi facilitado desde que passaram a fazer parte da União Europeia. O ex-primeiro ministro Winston Churchill cunhou a expressão “cortina de ferro” para dizer que a Europa estava dividida em duas, uma capitalista, outra comunista. Agora, reclama-se que a cortina desabou e que os povos antes mantidos sob rígido controle estão livres para invadir o estado de bem estar social que os britânicos criaram só para si.

A consciência liberal anglossaxônica costuma estar semanalmente alimentada pela também tradicionalíssima revista The Economist. De forma aberta e exemplar, Economist não esconde o jogo, nem finge não ter preferência: é David Cameron. Em matéria desta semana, faz sua profissão de fé em torno de um liberalismo ao mesmo tempo ideológico e pragmático:

“The Economist não tem qualquer fidelidade ancestral a nenhum partido, mas sim um persistente preconceito em favor do liberalismo. Nosso viés em prol de maior liberdade política e econômica tem sido frequentemente temperado por outras considerações: nós exultamos em favor de Barack Obama, em detrimento de John McCain; por Tony Blair, ao invés de Michael Howard; e, seguidamente, em favor dos socialistas italianos, contra Silvio Berlusconi, pois consideramos que eles eram mais inspiradores, competentes e honestos que seus oponentes, mesmo que os preteridos favorecessem um estado menor”.

Mas… quando o assunto é a Grã-Bretanha, as coisas são diferentes. The Economist então invoca Adam Smith contra Thomas Hobbes, conclamando:

“Nestas eleições britânicas, a necessidade mais acachapante que se coloca é a da reforma do setor público. […] Para a Grã-Bretanha prosperar, deve-se dar o devido tratamento a este Leviatã destruidor da liberdade. Os conservadores, mesmo com suas falhas, são os mais preparados para fazê-lo, e esta é a razão pela qual nós recomendamos que se vote neles”.

Embora a redução do estado seja o essencial a The Economist, ela não se furtou a apontar razões pró conservadores no que se refere ao tema da imigração. A revista culpa os trabalhistas, de forma mais elegante que a Srª Duffy, por terem aberto as portas do Reino Unido ao Leste Europeu.

Mas os trabalhistas podem ter uma sobrevida. A derrota do liberalismo mais agressivo, próximo do tatcherismo, e a derrota do xenofobismo dependem, quem diria, de uma votação expressiva dos liberais.

Vejamos que rumo tomarão os ingleses e quantas senhoras Duffy eles têm por lá.

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Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política

Fonte: Carta Maior