Há um ano esse cenário seria considerado implausível, até ilógico. Contudo, quando o vice-ministro das Relações Exteriores da China Wang Guangya receber o secretário-assistente de Estado dos EUA Robert O. Blake Jr. em Pequim na 2ª.feira próxima, para o primeiro encontro do recém constituído “Subdiálogo EUA-China sobre o sul da Ásia” [ing. US-China Sub-Dialogue on South Asia], o que parecia movimento fantasioso já terá andado, célere, para o território da realidade geopolítica.

Os encontros de cúpula da Associação para Cooperação Regional do Sul da Ásia [ing. South Asian Association for Regional Cooperation (SAARC)] são mais conhecidos como ocasião para encenações diplomáticas entre Índia e Paquistão. A 16ª. Cúpula da SAARC em Thimpu, capital do Butão, dias 28-29 de abril não seria exceção. Isso, pelo menos, foi o que a mídia regional supôs.

Mas houve outro encontro de primeiros-ministros de Índia e Paquistão, à margem do fórum regional, mais uma tentativa para construir um novo formato de diálogo, no esforço, entre os dois adversários sul-asiáticos para acertar suas intratáveis diferenças.

O novo processo Índia-Paquistão pode ser duradouro, ou fracassar rapidamente. Mesmo assim, quando for analisado em retrospecto, a cúpula de Thimpu será vista como momento histórico, na qual algo mudou fundamentalmente na alquimia da cooperação no sul da Ásia. (A SAARC é constituída de Afeganistão, Bangladesh, Butão, Índia, Paquistão, Nepal, as Maldivas e o Sri Lanka.)

Dito de forma clara, a cooperação – ou a ausência dela, em comparação à maioria de outras regiões – será vista, doravante, como espetáculo internacional ao qual comparecem “as grandes potências” para tomar o pulso daqueles específicos atores.

Ao mesmo tempo, o que emerge é que uma região que sobrevive às infecções da Guerra Fria ao longo de décadas talvez não tenha igual sorte dessa vez, ao aproximar-se do que Ian Brummer, presidente do Eurasia Group, chamou recentemente de “a luta do século” entre China e EUA.

Para começar, o contexto é sem precedentes e intimidante. Os EUA converteram-se em presença militar de longo prazo na Região, pela primeira vez na história. E a China, também pela primeira vez na história, rompeu sua clausura milenar na Ásia Central, saltou a cordilheira do Himalaia e apresentou-se como figura ativa na arena sul-asiática.

De “observador” a participante

É interessante notar que a luta-treino EUA-China no sul da Ásia começa com um round de consultas cautelosas, até que cada um consiga delinear as perspectivas de fundo e intenções não manifestas do adversário. Ainda não se sabe com certeza quem deu o primeiro passo no rumo desses dois dias de consultas que começam em Pequim, na 2ª.feira, mas, dado que o encontro acontece em Pequim, tudo indica que tenha sido a China.

Há outros sete “observadores” na Cúpula SAARC – Irã, União Europeia, Japão, Coreia do Sul, Maurício, Austrália e Myanmar – mas ficarão de fora do encontro sub-regional em Pequim. Evidentemente, China e EUA não os têm em muito alta conta, quanto à capacidade que tenham para carregar o peso da responsabilidade global de supervisionar os agudos problemas de segurança e estabilidade no sul da Ásia.

Quanto às declarações de chineses e de norte-americanos, à Cúpula SAARC, são exemplo de contraste. Blake foi superficial, limitado ao protocolo. Apresentou congratulações, pelo 25º. aniversário da SAARC e considerou “bem-vinda” sua “visão de maior cooperação regional no sul da Ásia”. Com certeza usou o tempo mais proveitosamente em reuniões bilaterais, aproveitando a visita.

O porta-voz do Departamento de Estado dos EUA em Washington, canhestro, sugeriu que a reunião da SAARC nada teria de terrivelmente importante: “Uma dentre várias estruturas importantes que há naquela vasta região da Ásia. São importantes, as consideramos importantes, as encorajamos (…). A secretária [Hillary Clinton] está decidida a estreitar os laços entre os EUA e outras estruturas como a Associação das Nações do Sudeste Asiático [ing. Association of Southeast Asian Nations (ASEAN)]. É indicação de nosso crescente compromisso com a Região.”

Tudo diferente, quando chegou a vez do vice-ministro Wang, de Relações Exteriores da China, manifestamente caloroso. Destacou o desejo de Pequim de elevar “a novo nível” os já “altos laços de amizade” com a SAARC. Considerou a SAARC em termos ideológicos, um fórum no qual “a China aparece ao lado de países em desenvolvimento”.

Wang respondeu ao foco na mudança climática, dessa cúpula da SAARC, conclamando os países desenvolvidos a oferecer assistência financeira, técnica e de construção de capacidades, de modo a ampliar os meios pelos quais os países em desenvolvimento possam enfrentar a mudança climática.

“A China está pronta a aprofundar a cooperação prática com os países do sul da Ásia em face da mudança climática mediante canais bilaterais, e no quadro de cooperação Sul-Sul”, disse ele.

Wang disse também que “sobre a base e em espírito de igualdade e mútuo benefício, a China está disposta a manter diálogos e trocas e a expandir a cooperação prática com a SAARC”. Anunciou contribuição de 300 mil dólares, da China, ao Fundo SAARC de Desenvolvimento, e convidou os altos funcionários dos ministérios de Relações Exteriores presentes a novo encontro em Pequim.

Evidentemente, a China leva a sério o status de “observador”, garantido em 2005. Há notícias de que a China aspira a ser convertida em membro pleno da SAARC, mas a Índia prefere que o corpo regional permaneça limitado aos oito membros atuais – nos termos da região geograficamente definida –, e a carta do Bloco determina que todas as decisões sejam tomadas por unanimidade.

O desafio para a Índia…

A Índia enfrenta dilema existencial semelhante, em alguns sentidos, ao dilema no qual a Rússia vai-se gradualmente envolvendo na Ásia Central (e que os EUA podem vir a enfrentar no Oriente Médio, África e América Latina ou Sudeste Asiático): o nascer de uma estrela vermelha naquela fatia de céu que consideram sua exclusiva esfera de influência, quando dizem que têm direitos especiais incontestáveis no processo de determinar a forma da constelação.

Nenhuma analogia é jamais perfeita. Diferente da Rússia na Ásia Central, a Índia jamais reinou sobre o sul da Ásia, mas o ambiente cultural que tudo envolve, a história e o espaço geográfico partilhados, e os laços de uma força civilizacional comum que flui ao longo de milênios talvez sejam bem mais profundos.

Rússia e Índia tem complicada história de relações com a China nos tempos modernos, e disputaram sangrentas guerras de fronteiras; mas a Rússia, muito mais que a Índia, tem conseguido reconciliar-se com o passado.

Uma das diferenças principais é que a região da Ásia Central abriga regimes autocráticos, em relação aos quais a Rússia é a última barreira a protegê-los do dilúvio; e os países do sul da Ásia são democracias, de um ou de outro tipo, mas que não dependem necessariamente da Índia para a sobrevivência política.

Sobretudo, os países do sul da Ásia veem a China como benfeitor – percepção que a Índia não tem.

Mesmo vizinhos próximos da Índia, como Nepal e Sri Lanka têm interesse em aprofundar o envolvimento dos chineses em seus países. E no passado mais recente, a China tem respondido com visível entusiasmo, o que, evidentemente, preocupa e provoca ansiedade às mentes indianas, embora não haja qualquer sinal de que a China aspire a obstruir a expansão da cooperação entre Índia e seus parceiros regionais.

A dura realidade é que os potenciais de cooperação econômica que a Índia tem a oferecer aos vizinhos – exceto Nepal e Butão, que já recebem ajuda indiana – permanecem ainda completamente inexplorados e há risco crescente de que a China saia da retaguarda e supere a Índia.

… é atuar em conjunto

Diferente da Índia, a China dá a primazia de sua política externa aos vizinhos mais próximos; como disse o vice-ministro Wang, Pequim tem plano de ação definido, pronto para levar avante o ímpeto de cooperação com os vizinhos sul-asiáticos.

O prazo já começou a correr, para que a Índia encontre algo a propor, quando a China já a supera em termos de volume substantivo de cooperação com os parceiros da SAARC. A China já fez praticamente o mesmo movimento em relação ao Japão (e aos EUA) no sudeste da Ásia.

A China é, inclusive, a principal parceira comercial da Índia. A meta a atingir em 2010 no comércio bilateral é 60 bilhões de dólares, e o vice-ministro das Relações Exteriores da China Zhang Zhijun disse semana passada que “acredito que, se fizermos os esforços certos, podemos ultrapassar a meta”.

A China está desenvolvendo ampla cooperação com dos parceiros da Índia na SAARC, de modo estruturado, nas esferas econômica, política e também militar. Curiosamente, a China está sabendo administrar admiravelmente bem o “soft power”.

A diplomacia chinesa concentra-se nos contatos pessoais, inclusive com a Índia. Tenta assim repetir o fenomenal sucesso que a China alcançou na região do Pacífico e do sudeste da Ásia, sempre usando o “soft power” como lâmina mais afiada de sua diplomacia.

Índia e China mantêm tráfego anual de 1 milhão de turistas; com a Coreia do Sul o número salta para 5 milhões. As pequenas ilhas Maldivas, próximas da costa da Índia, ainda recebem mais turistas chineses que indianos.

Não há até aqui qualquer evidência de que a diplomacia indiana trabalhe com olhos só no futuro, no momento em que a China faz-se sentir como parceira chave da SAARC na região.

Mas já há imensa frustração entre países da SAARC como Nepal, Bangladesh, Sri Lanka e Maldivas, por o equilíbrio do corpo regional continuar na dependência dos laços conflituosos da relação Índia-Paquistão. Em extraordinário desabafo em Thimpu, o presidente das Maldivas Mohamed Nasheed, claramente exigiu que Índia e Paquistão “compartimentalizem” a animosidade mútua, para permitir que a cooperação regional ganhe força.

O perfil da China como principal interlocutor também no sul da Ásia chama a atenção para a incapacidade da Índia para liderar a própria subregião e compromete sua credibilidade como poder regional. Essa a dura lição que o establishment de Relações Exteriores da Índia precisa colher do encontro de Thimpu, Butão, depois de a poeira assentar sobre o road-show diplomático de Índia e Paquistão.

Em termos claros, não há como escapar da evidência de que Delhi precisa avaliar os danos provocados pela “militarização” do pensamento da política exterior indiana nos anos recentes. Pode acontecer de a Índia descobrir-se agarrada à extremidade errada do bastão, com sua obsessão pela teoria do “colar de pérolas” –, de que Pequim está cercando a Índia. O que realmente está acontecendo é muito mais perigoso – a diplomacia chinesa pode conseguir que a Índia mostre-se ineficaz como poder regional.

O fato de Blake ter viajado para Pequim imediatamente depois da reunião da SAARC em Thimpu é evidência de uma realidade geopolítica.

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Fonte: Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LE01Df03.html

Tradução: Caia Fittipaldi