Isso quer dizer que há uma variedade de autores que não se insere no conhecido “boom” latino-americano da segunda metade do século XX, quando nossa literatura foi redimensionada no cenário mundial pelas obras de García Márquez, Vargas Llosa, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges etc.

Sob esta perspectiva, o mosaicista equatoriano Javier Guerrero Meza, ao lado dos jovens militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Geniel Moresco e Caio Murilo Padilha, produziu a série de mosaicos “Poetas de América”: 42 retratos de escritores e escritoras do Canadá e EUA à Argentina, passando pelos países do Caribe.

Ex-militante da organização Alfaro Vive (Equador) e hoje radicado em Curitiba (PR), Guerrero finaliza mais uma série de obras com a missão de resgatar ícones latino-americanos.

A primeira exposição foi sobre os “Homens e mulheres de nossa América”, em 2007, um resgate de lutadores de povo de cada país. Agora, o objetivo é um criar um quadro amplo da poesia latino-americana, construindo um eixo histórico ignorado até agora pelas editoras de mercado.

Cantos do passado

Um primeiro sopro de inspiração da poesia na América Latina surgiu ao norte, com o estadunidense Walt Whitman (1819-1892), o poeta da revolução de independência dos EUA, que na verdade ocorreu uma geração antes dele nascer – como analisou o poeta e tradutor Paulo Leminski, que viu em Whitman a capacidade de captar a comoção social desencadeada por aquele processo revolucionário.

Whitman foi o cantor de um mundo anunciado logo no berço das revoluções burguesas, ainda que tenha sido um canto de liberdade frustrado no momento histórico em que a burguesia deixa de ser uma classe revolucionária e passa à repressão contra o proletariado. A poética de Whitman teve peso sobre a poesia centro-americana e caribenha. Na República Dominicana, Pedro Mir (1913-2000) dialoga com os cantos em versos livres de Whitman, na conexão com a sua realidade local. “Este es un país que no merece el nombre de país. Sino de tumba, féretro, hueco o sepultura”, denunciava em um de seus trabalhos.

Na América Latina, observamos uma trajetória diferente dos poetas do século 19. Os chamados “modernistas”, como o mexicano Manuel Gutiérrez Najera (1859-1895) e o hondurenho Juan Ramón Molina (1875-1908), tinham a mirada voltada para a escola europeia do final do século (simbolismo, etc).

Eles cantaram as cores, as musas gregas, as tristezas, em um exercício que hoje soa formalista, principalmente para quem conhece a realidade dos países da mesoamerica: sua rica mitologia, poética e vasta cultura popular, nos revelando que, nesta parte da América Latina, a produção “modernista” não foi o reflexo da chegada da industrialização: foi, na verdade, a chegada apenas do romantismo, primórdios de um Estado oligarca e de um processo liberal incompleto.

Algumas exceções históricas foram encontradas, em sua radicalidade e ousadia de conteúdo. A Sor Juana Inês de La Cruz (cerca de 1648-1695), mexicana, está entre elas. Mestiça. Ladina. Foi a primeira feminista das Américas. Poeta, intelectual e monja. Defendeu o acesso das mulheres aos livros. Deixou sua marca nas letras latinas, sem temer a repressão.

Poética da militância

Na Nicarágua, o clássico Ruben Darío (1867-1916), considerado fundamental para o modernismo da língua espanhola, apresentou uma poesia onde prevalecem os aspectos formais, a exemplo de outros poetas do mesmo momento histórico. No entanto, o século 20 e a resistência popular contra o imperialismo mais tarde produziram uma poética viva, que fez a ligação entre a técnica dos versos e o conteúdo popular de mais de setenta anos de lutas de classes, sob a direção política do sandinismo.

A Nicarágua teve toda uma geração de poetas guerrilheiros e guerrilheiros poetas. Disso resultou o “Exteriorismo”, uma escola que buscava no movimento da realidade o seu ponto de partida: os trabalhadores dos portos, a vida comum, as situações concretas dos trabalhadores. E que tinha, como influência, o formato de versos livres, canto e música, retirada de Withman e do próprio Darío.

O movimento revolucionário na América Central produziu poetas de alta qualidade, como o nicaraguense Leonel Rugama (1949-1970) e Roque Dalton (1935-1975), de El Salvador. Rugama não teve tempo pra muita coisa. Morreu aos 21 anos, assassinado ao lado de dois militantes, encurralado pelas tropas da ditadura de Somoza.

Já Dalton deixou uma poética que se assemelha à do alemão Bertolt Brecht na sua proposta – irônica e comprometida com a luta de classes. Além disso, o poeta militante foi um elaborador do movimento comunista em El Salvador, com livros como Un libro rojo para Lênin e Miguel Mármol y los sucesos de 1932 em El Salvador, e morreu assassinado por militantes de outra corrente política da esquerda naquele país.

A Nicarágua, um bom ponto de encontro para a poesia. Foi ali, à luz da revolução da segunda geração sandinista (1979), que um dos maiores contistas do século 20, o argentino Julio Cortázar (1914-1984), assumiu apoio declarado ao processo, tratando de propagandeá-lo nos meios intelectuais da Europa.

Quando caminhava para os 70 anos, Cortázar assumia a contramão, enquanto outros intelectuais renegavam as ideias de esquerda. Suas seis estadias na Nicarágua, antes e depois da revolução, renderam o livro Nicarágua tão violentamente doce (tradução brasileira de Emir Sader, da extinta editora Brasiliense).

Outros tiveram a militância e a vida pública no mesmo plano da obra literária. A equatoriana Nela Martínez Espinosa (1912-2004) encabeçou a revolução La Gloriosa, de 1944, que derrubou o ditador Carlos Arroyo del Río. Durante dois dias, esteve a cargo do governo equatoriano. Foi militante, brigadista e feminista.

Os poetas cubanos Nicolás Guillén (1902-1989) e Mirta Aguirre (1912-1980) foram dois outros exemplos de uma vida onde texto e ação política estiveram entrelaçados – posição que parece inaceitável para os autores contemporâneos, submissos ao esvaziamento cultural e à individualidade do projeto neoliberal.

Ao lado da obra de Pablo Neruda, de Eduardo Galeano e do brasileiro Thiago de Mello, o uruguaio Mario Benedetti (1920-2008) compõe uma geração que seguiu os acontecimentos políticos do século 20. Ele foi jornalista no periódico Marcha. Em 1956, publicou o livro Poemas de la oficina, em nome da linguagem clara, em luta contra o academicismo. Voltou da Espanha ao seu país passada a ditadura. Augusto Roa Bastos (1917 – 2005), paraguaio traduzido em 25 línguas, também teve uma produção marcada pela vida no exílio político.

Cantos de Negritude

O mapeamento poético dos autores americanos, dos clássicos até os socialistas, passando pelos contestadores, é uma tarefa que no Brasil, apenas a esquerda pode mostrar interesse. Há pouquíssimas informações disponíveis em português e há menos ainda obras traduzidas.

O mundo editorial brasileiro ignora todo esse vasto arsenal, entre eles a poesia negra americana, presente nos escritores dos países caribenhos (Haiti, República Dominicana, Martinica) e nos descendentes africanos radicados nos guetos dos Estados Unidos. “Sou um grande admirador dos latinos e mais ainda dos gregos, mas sei também que há os egípcios e que os gregos e os romanos devem muito ao Egito, à Etiópia, a todo esse mundo. Portanto, à África”, dizia Aimé Césaire (1913-2008), da Martinica, que tem uma vasta obra publicada nas áreas do teatro, ensaio e história. Intelectual mundialmente reconhecido, Cesaire foi um dos criadores do movimento “Negritude”.

Entre a poesia afrodescendente, podem ser citados Pedro Pietri (1944-2004), de Porto Rico, autor de “Puerto Rican Obituary” (1973), seu texto mais conhecido, que tratou dos migrantes que buscaram uma nova América e que morreram por cinco dólares. “Os que morrem mortos”, escreveu. Suas obras eram recitadas em igrejas hispânicas metodistas. A tradição oral foi uma das características desses escritores.

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Fonte: Brasil de Fato