A “Farsa de Inês Pereira” é um clássico do teatro vicentino, bem conhecido nas aulas de literatura. A história desfiada na peça — do casamento por interesse, da ascensão social por meio do oportunismo e da falta de escrúpulos — é emblemática de como a elite faz as coisas no Brasil desde 1500. O dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536) escreveu o texto, desafiado pelos invejosos da época, para comprovar o provérbio “Mais quero um asno que me leve do que um cavalo que me derrube”. A desfaçatez expressa na peça é quase obscena. Ela diz muito, politicamente, sobre o que pensavam os 15 desbravadores que chegaram aqui há pouco mais de 500 anos com uma Capitania Hereditária à sua disposição e perpetuaram seus usos e costumes. Eles estão aí, por exemplo, na forma como o vice-presidente da República, Michel Temer, e seus comparsas estão agindo nessa operação golpista em andamento. Como diz o povo, para conhecer um vilão basta entregar-lhe o bastão.

São usos e costumes que ficaram bem demonstrados nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Seu programa de governo, inimigo mortal da “era Vargas”, é retomado por Temer até na forma, com ataques dissimulados aos direitos sociais e democráticos, e ataques frontais aos fundamentos da nação. FHC chegou ao ponto de anunciar que a taxa de retorno social com as privatizações seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse ele. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continua estratosférica.

Ponto de vista social

Na torre de comando da campanha de Temer, o painel de controle revela abertamente os fios condutores que ligam suas ideias, expostas no documento “Uma ponte para o futuro” (para ver a íntegra, clique aqui), com as daquela época. E mais: revela os mesmos ideais dos que se acham donos do Brasil desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre gorda porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela. A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis. Por esse plano, a metrópole doou 3 milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo. A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento — ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde o Estado detém 60% das terras próprias para agricultura e as aluga em contratos de longo prazo.

A dívida que o país acumulou com seu povo que ainda vive as sequelas da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas Capitanias Hereditárias pelos donatários de dom João I e mantidas por gerações de sucessores só poderia ser paga numa intervenção movida por espírito político radicalmente novo, como começaram a fizer os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Seria algo capaz de mexer na estrutura de poder que foi erigida para mandar no Brasil. Por isso, para garantir seus privilégios a elite brasileira prefere um presidente medíocre a uma presidenta que representa um ponto de vista social bem definido — um asno que a leve a um cavalo que a derrube. Ela sabe que para o conjunto dos brasileiros Dilma Rousseff é infinitamente superior a Temer. Daí o jogo sujo para transmutar questões de princípio em argumentos os mais estapafúrdios na discussão sobre o impeachment da presidenta.

Emprego semi-escravista

A verdade é que, ao galgar uns poucos degraus na escada do progresso social, o povo começou a alterar o padrão de vida dessa elite. Em poucos outros lugares do mundo, por exemplo, era tão fácil manter uma empregada doméstica cativa. O próprio emprego doméstico, com todo seu teor semi-escravagista, começou a ser questionado, o que levaria essa gente a ter de de limpar seus próprios banheiros e passar suas próprias roupas — ou, então, pagar um dinheiro considerável a profissionais especializados pelo capricho de não o fazerem. Com imperativos desta ordem, que implicam a perda de privilégios há muito estabelecidos, não tem lógica para essa elite ajudar o país a galgar a escada do progresso social.

Recentemente, FHC voltou a defender essa imobilidade social ao invocar o “ideal republicano” para atacar os governos progressistas brasileiros. Com suas habituais confusões filosóficas, ele disse que a “concepção de Estado” separa o pensamento tucano do “petismo”. Em uma entrevista ao jornal suíço Le Temps, ele disse que o PT não tem uma “visão democrática”, pois ”ainda pensa que precisa ocupar a máquina estatal para reformar a sociedade”. “É exatamente por causa dessa promiscuidade que nasceram os escândalos em que (o PT) está implicado”, afirmou. Na avaliação do ex-presidente, a “sociedade” deve ser independente do Estado. “O PSDB faz menos retórica e tem uma visão mais republicana na relação entre partido e Estado”, disse. Essa falta de rigor e de integridade da direita se justifica pelo fato de ela existir unicamente para preservar seus próprios privilégios. Tanto que a mais notável tradição “republicana” dessa gente é o quartel. O golpismo está no seu DNA social.

Autoridades coloniais

Um breve exame da história revela muito sobre o que a direita quer dizer com seu “ideal republicano”.  A figura que melhor expressa a essência do ideal da República é a de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746-1789). Não é possível negar que havia um movimento pré-revolucionário nas Minas Gerais. Tanto que os “inconfidentes” aguardavam a “derrama” para iniciar a insurreição. Aquela seria o ponto culminante da crise que atravessava a Capitania e que iria aumentar a indignação do povo, facilitando o levante. Basta recordar a feroz repressão das autoridades coloniais ao movimento liderado por Tiradentes para reconhecer o que ele representava. A República a que aspiravam os partícipes daquele ato patriótico era um símbolo de independência e progresso. Eles planejavam industrializar o país, acabar com os monopólios coloniais, cessar a exportação do ouro e aproveitar as riquezas minerais do país.

Certamente, as autoridades coloniais — como os donos do poder hoje em dia — não fecharam os olhos para esse ideal. Ao punir com tamanho rigor a “inconfidência mineira”, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer a execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade — tinham perfeita consciência que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas.

Lula, ainda presidente da República, comentou essa questão durante a inauguração de uma locomotiva que liga Mariana a Ouro Preto, em Minas Gerais. O ex-presidente disse que está na hora de Tiradentes não ser mais chamado de “inconfidente”, mas sim de “revolucionário”. “Vejo muita gente falar o seguinte: aqui nasceram, aqui moraram os inconfidentes. Inconfidentes para quem, cara pálida? Para quem Tiradentes era inconfidente? Ele era inconfidente para a Coroa portuguesa. Na verdade, eles eram revolucionários, que lutavam pela independência do Brasil, para que as riquezas produzidas nesta região ficassem aqui”, disse. “Acho que quem sabe seja um bom tema para que os nossos historiadores comecem a discutir daqui para a frente. Porque, veja, ele foi um homem que pensou na independência do Brasil. Foi morto. Esquartejado, salgaram a sua carne. Mas as idéias dele continuaram”, afirmou.

Barão de Cotegipe

Após a proclamação da República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso. A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Logo depois houve um recuo — ao impulsivo Floriano Peixoto substitui o chamado “homem moderado”, Prudente de Morais. Ele é o retrato escandaloso da história de concessão de espaços aos conservadores na República.

Hoje, agrupados em torno de Temer, eles continuam com o mesmo pensamento. Um exemplo eloquente disso é a manifestação do ex-presidente nacional do então PFL (atual DEM), Jorge Bornhausen, que repetiu o raciocínio do barão de Cotegipe quando, contrariado com a Abolição, disse que dom Pedro II havia “redimido uma raça”. Pode-se dizer também que a situação e a oposição de agora, guardadas as diferenças impostas pelo tempo, representam os ideais de florianistas e prudentinos. A primeira defende a ideia de que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás. A segunda é abertamente contrária à participação do Estado na economia.

Campo da ilegalidade

Não há problema em defender publicamente essa plataforma política. O problema aparece quando ela se esconde em argumentos hipócritas e em mediocridade profissional. Para os ideólogos do golpe — principalmente certos prelados da mídia —, com suas torpezas e inarredável incompatibilidade com a inteligência coletiva, é fácil provar que o país está mesmo entregue aos “corruptos” e aos “incompetentes”. Eles fazem e desfazem, sem dar satisfações a ninguém, como se fossem reis do mundo, e por isso podem difundir suas torpezas a torto e a direito. Se acham os donos do país, os árbitros da vida e do destino dos brasileiros.

A campanha desencadeada contra o governo, contudo, tem o mérito de escancarar à nação suas reais intenções ao tentar transferir a disputa política democrática para o campo da ilegalidade. Habituados a esse terreno, querem um uma briga sem regras. Num ambiente de legalidade, Dilma Rousseff poderia contar com prazos definidos e direito de defesa. E poderia se defender em um ambiente com uma temperatura mais branda. Com a opção da direita de levar o golpe adiante à força, fica no ar a sensação de que haverá daqui para a frente menos limites ainda para a democracia.

Recentemente, o senador  tucano José Serra disse que “numa perspectiva republicana, o governo é para servir às pessoas, não aos partidos”. Há nessa afirmação dois sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas”. O segundo é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões de classes sociais. Isso se traduz na seguinte questão: Dilma Rousseff fora do Palácio do Planalto seria bom para a direita, mas e para o país? Pode-se criticar muita coisa em seu governo. Pode-se lamentar nela a ausência daquela disposição para lidar com o dissenso. Pode-se — claro, claro — ser contra ela (e eventualmente manifestar essa oposição nas urnas). Só não se pode ser ingênuo a ponto de acreditar nas graves questões de “princípio” e de “ética” erguidas pela direita. O que ela não quer é enfrentar este debate às claras.