A vitória do golpe do impeachment na Câmara dos Deputados virou uma usina de piadas, proporcionada pelo espetáculo de néscios proferindo asneiras nas declarações de votos. Mas o caso é sério. Ao adquirir o maior número possível de deputados na hora da decisão, operação descrita como um dos achados mais geniais da estratégia da direita para liquidar o mandato da presidenta Dilma Rousseff, os golpistas comprovaram que a maioria dos deputados não resistiu aos mil empregos em funções públicas promissoras, ou algo assim, que o vice-presidente da República, Michel Temer, teria a vender num hipotético futuro governo em troca de votos. 

Se não bastassem as proclamações de vingança, desordem e sabotagem ao processo democrático, esses deputados, em sua maioria, mostraram que se entregaram à venalidade. Com esse desastre, o Brasil deu um grande passo na travessia de um território não mapeado e palmilhado por tumulto, rancor e tentativas de virada de mesa por meios cada vez mais escusos. A tensão política tende a se agravar porque a direita não assume que está dando uma rasteira na democracia e vende a tese de que os 367 votos dados pelo golpe por deputados sem o menor compromisso com o mérito da questão confere legalidade a um ato francamente ilegal.

Governo da Suécia

Esses pescadores em água turva estão dispostos a seguir utilizando as mais exóticas “soluções políticas”, um vasto angu em que a única hipótese não admitida é o cumprimento da lei — o respeito ao mandato constitucional da presidenta. A mais esdrúxula dessas imoralidades cívicas foi a utilização de condutas espúrias para manter Eduardo Cunha no cargo de presidente da Câmara, dando legitimidade às manobras de um gângster com o argumento sórdido de que a lei não diz que ele tem de ser um homem bom para abrir e conduzir o processo de impeachment até sua entrega para julgamento do Senado. Com isso, isentaram o operador do golpe de qualquer controle prévio de qualidade ética e moral — de resto uma conduta que condiz integralmente com a natureza política dos golpistas.

Como bem lembrou o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), recorrendo ao céu e a Deus, a alternativa de poder dos golpistas é Michel Temer e o elenco de oportunistas que o acompanha. “Meu Deus do céu! Essa é nossa alternativa de poder?”, indagou Barroso. Sim, é essa turma mesmo; não há outra. Em caso de consumação do golpe, eles não vão importar um governo da Suécia. O espanto do ministro deveria ser compartilhado aos milhões, com as devidas notas explicativas. Uma delas é que a mídia já deu posse aos conspiradores e vem movendo mundos e fundos (principalmente fundos) para desqualificar as provas de que está em andamento um descarado processo golpista.  

A mais recente invenção da sua pululante adjetivação é a “tese do golpe”, no lugar do golpe propriamente dito, que seria uma espécie de jus sperniandi, expressão comum no meio jurídico quando o direito de protestar é exercido de forma abusiva, um falso latinismo que remete ao espernear das crianças inconformadas com as ordens dos pais. A ginástica retórica se expande no encalço das demonstrações de que a dissemântica das “pedaladas fiscais” — a origem da “tese do golpe” — se assemelha ao termo “revolução”, forjado pelo regime militar de 1964, no lugar de “golpe”. A embrulhada, contudo, não resiste à explicação elementar de que focinho de porco não é tomada.

Fermento do golpe

Na verdade, não seria preciso ir além da informação de que a presidenta está sendo acusada de autorizar a tomada de empréstimo pelo governo de alguns bancos públicos — do próprio governo — para ser pago em seguida pelo Tesouro. Mas é preciso destrinchar o caso porque a difusão de que há nisso irregularidade moral e criminal é a alma do golpe. O que houve foi uma questão formal, altamente relevante para não deixar atrasar pagamentos na área social — especialmente os programas “Bolsa Família” e “Minha Casa, Minha Vida” —, logo sanada pelo governo. Mas a deturpação desse caso, como fermento do golpe, é um poderoso instrumento dos propagadores da má-fé e da imbecilidade coletiva entre os setores da sociedade mais vulneráveis à desinformação.

A medida seria desnecessária, é verdade, uma atitude que se resumiu a criar uma imagem menos visível do déficit público que só interessava aos vampiros do mercado financeiro. Tanto que o ex-ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e o ex-secretário do Tesouro Nacional, Marcelo Saintive, correram para rebater a farsa assim que o Tribunal de Contas da União (TCU) — um ente político, com forte presença na engrenagem golpista — mostrou indícios de que estava disposto a criar encrencas para o governo. “Essas operações são regidas por uma portaria de 2012 (do TCU) que continua em vigor e permite que certas despesas sejam pagas anos depois. Seria precipitado fazer um movimento unilateral enquanto não houver clareza da situação”, disse Levy.

Ninguém da mídia se deu ao trabalho de ir atrás dessa portaria. A opção foi pela valorização de uma suposição do jornal O Estado de S. Paulo, publicada sem nenhuma informação que comprovasse a tese, de que existiria uma “estranha conta paralela de um banco privado com R$ 4 bilhões em créditos da União, que estavam relacionados a atrasos nos repasses aos bancos para o pagamento de benefícios sociais”. Não se sabe, até hoje, qual é esse banco e de onde surgiu esse dado, mas a suposição continua sendo espalhada como verdade incontestável. E partir daí começaram as derivações de uma série de invectivas, uma espécie de X-tudo, no qual são enfiados, à medida que vão sendo encontrados, os ingredientes mais diversos e disparatados entre si — qualquer coisa serve, desde que faça volume.

Créditos adicionais

O mais apimentado deles é a divulgação das “pedaladas fiscais” como “crime” sem explicar que não está se falando de crimes desses que aparecem nos programas policiais de rádio e televisão. Seria um crime político-administrativo, cometido por ação ou omissão, que não é tipificado como passivo de sanção criminal (cadeia). A falta dessa informação simples, por parte da mídia, tem o propósito claro de doutrinar o máximo dos que acompanham o fato, divulgando para a sociedade o senso comum de que a presidenta é criminosa. A má-fé cínica fica mais evidente quando são divulgadas teses de pareceres de juristas sem compromisso com a verdade que querem estender o caso para a esfera do Código Penal, se utilizando da farsa do jornal O Estado de S. Paulo.

A maçaroca jurídica, apresentada ao público sem que se possa encontrar o fio da meada, se desfaz com o simples dado de que está se falando de abertura de crédito adicional, o nome correto das “pedaladas fiscais”, um recurso que já constava da Constituição de 1824, que adotou o Orçamento como ferramenta para receitas (dinheiro) e despesas (pagamentos). Hoje, o planejamento orçamentário é balizado por leis específicas, as leis orçamentárias, como o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA), um princípio básico desconhecido — ou desconsiderado — pelos estultos que gritaram “sim” quando votaram no golpe na Câmara dos Deputados.

Os créditos adicionais estão regulamentados no artigo 40 da Lei número 4.320 de 17 de março de 1964 e seu uso está contemplado no artigo 167 da Constituição Federal e na Lei Complementar 101/00. Eles podem ser usados, por exemplo, quando falta recurso para uma despesa prevista no orçamento — como os programas sociais “Bolsa Família” e “Minha Casa, Minha Vida” — ou não há no orçamento previsão para emergências, como um desastre natural. É só isso. Tudo muito claro, tudo muito simples. A deturpação de um tema tão caro para os mais de 54 milhões de brasileiros que votaram em Dilma Rousseff — a maioria votou pela garantia de iniciativas democráticas e progressistas como os programas sociais — é o golpe dentro golpe. A ideia dos golpistas é exatamente reduzir — e até eliminar — esses direitos para aumentar ou manter seus privilégios. Simples assim.